“As
trevas escondem o acontecimento futuro.”
(Teógnis
Mégara)
Tudo começa em uma noite fatídica de sexta-feira. Aliás, até onde sei, toda história de terror que se preze acontece algum tempo depois que o sol se põe. É quando os anjos parecem fechar os olhos. O momento de trevas o qual Deus chamou de noite durante o processo da Criação, ao separar a luz da escuridão. Enfim, a meu ver é quando o mal decide dar uma volta por aí para esticar as pernas.
Goethe escreveu que a noite é a metade da vida, e a metade melhor. Já concordei com ele. Agora, não mais.
Como dizia, é sexta à noite. No céu escuro como um pecado mortal cintilam poucas estrelas. A lua ainda não deu as caras.
Depois de uma semana estafante, eu preciso urgentemente espairecer, arejar minha cabeça. E estou sentindo falta da minha garota. Ontem ela foi com os pais para um rancho da família, situado a uns quarenta quilômetros da cidade. Uma coisa interessante sobre relacionamentos é que, se você realmente gosta de alguém, quanto mais tempo fica com a pessoa, mais ainda quer estar com ela. Esse é o caso, principalmente porque a namorada e eu nos habituamos a nos ver todos os dias. Por isso a saudade aperta tanto agora.
A boa notícia é que estou indo vê-la. Minha mãe me deu uma carona até o ponto, onde eu tomarei o ônibus. Moro em um bairro suburbano, e o ponto não é tão longe da minha casa. Na verdade, o tal lugar é um tipo de mercearia na saída da cidade, já chegando à rodovia.
Durante a espera, dou uma boa olhada em meus futuros companheiros de viagem. Vejo muitas famílias, todas animadas porque o destino final do ônibus que esperamos é uma cidade turística de águas termais que dista cerca de duzentos quilômetros de onde resido. A tal cidade turística é procurada por pessoas de todo o Brasil, e está localizada no estado vizinho. Ao que parece, as águas quentes de lá são proporcionadas pela presença de um vulcão local adormecido.
Enquanto aguardo a condução, que por sinal já está consideravelmente atrasada, decido matar o tempo. Coloco os fones e ligo meu MP3 no volume máximo para ouvir uma de minhas bandas favoritas: Bullet for My Valentine. Conforme já imaginava, as pessoas me dirigem um olhar de estranheza. Que se poderia esperar de uma cidade mineira interiorana, onde os hits nas rádios são unanimemente sertanejos?
Indiferente aos olhares que desperto, tranquilamente ouço meu som pesado e vasculho minha mochila até encontrar o que procuro.
Com um suspiro de satisfação, abro o pacote de Doritos que trouxe: quatrocentos gramas de minha iguaria salgada favorita em forma de nachos industrializados. Ao passo que o vocal gutural do frontman do Bullet tortura os tímpanos dos demais, curto a música mastigando ruidosamente. Rio sozinho ao lembrar de minha mãe torcendo o nariz quando degusto meu Doritos. Ela diz que esse salgadinho é horrível, tem gosto de raspa de comida queimada, aquela que gruda no fundo da panela.
À minha direita, uma jovem mãe segura o filho o qual deve ter, no máximo, uns três anos. Percebo que o garoto não tira os olhos do meu salgadinho. Então, como bom menino que sou (ou pelo menos tento ser), esboço meu melhor sorriso antes de perguntar à mãe:
— Posso oferecer um pouco a ele?
A mulher me olha, em dúvida. Conservando meu sorriso simpático, estendo a embalagem aberta, tentando mostrar que sou inofensivo e até — por que não dizer? — um cara legal.
Quando descobrem que você é roqueiro, boa parte das pessoas tende a achar que você mastiga a cabeça de morcegos vivos, ou que não pensaria duas vezes antes de chacinar seus pais em um sacrifício ritualístico. Na mente de muitos brasileiros, se você escuta rock, tem sérios problemas: ou é usuário de drogas, ou adora ao Diabo. Ou, pensam, o mais provável é que você faça as duas coisas.
Por outro lado, Bonde do Tigrão e Valesca Popozuda são considerados patrimônio da cultura nacional, tendo sido esta última recentemente classificada de "pensadora contemporânea." Honestamente? Já desisti de tentar entender esse país.
Enquanto a mãe hesita, refletindo se deve ou não permitir que o filho aceite Doritos do marginal metaleiro com quem são lamentavelmente obrigados a dividir o mesmo espaço do ponto de ônibus, sem se fazer de rogado o pequenino se adianta e enfia a mão no pacote para apanhar um punhado de salgadinhos. Meu sorriso se amplia. Que garotinho adorável! Felizmente as crianças são imunes às frescuras e preconceitos que impregnam os adultos. Elas são inteligentes e espontâneas demais para isso.
Minutos mais tarde, um novo personagem entra em cena. Chega de táxi. E ele é tão excêntrico que logo o pessoal do ponto de ônibus me esquece. Solidário a eles, também me ponho a analisar o recém-chegado.
É um tipo engomadinho; com gel no cabelo, barba bem feita, sapatos engraxados rebrilhando, metido em um bem cortado terno de linho. Valise na mão direita. Seu visual de executivo destoa totalmente do destino final de nosso ônibus o qual, conforme já dissemos, é uma cidade de águas termais e clubes aquáticos, onde os turistas costumam circular de chinelos e roupas de banho. É também um homem jovem - talvez dois ou três anos mais velho do que eu. Tem expressão altiva e não demonstra preocupação por ser um estranho no ninho.
Ele arranca do bolso um desses celulares moderníssimos, que faz praticamente tudo, só falta buscar o jornal para você pela manhã - e cujo preço invariavelmente figura nas lojas em cifras compostas por não menos de quatro algarismos. Disca um número na tela luminosa de tecnologia Touch Screen e se põe a falar com alguém em um nível de decibéis mais elevado que o rock emanado de meu MP3. É sério, gente. A voz do cara é impressionante. Parece ter um megafone na garganta. Poderia muito bem ganhar a vida como tenor de ópera, ou vocalista de heavy metal. Pobres de nossos tímpanos.
Na mesma proporção que o Luciano Pavarotti ali fala — ou melhor, se esgoela- no celular, inevitavelmente todos ouvimos sua conversa. É um sujeito de negócios. Está nervoso. Fala de modo rápido, atropelando as palavras. Uma verdadeira metralhadora verbal. Seu interlocutor provavelmente é um parente próximo.
Ele conta ao telefone que esteve em São Paulo – Capital. Ficou preso em um engarrafamento gigantesco ocasionado por uma multidão maciça, que manifestava publicamente sua insatisfação contra o governo. Expulsaram o Pavarotti de seu carro, no qual atearam fogo. Os manifestantes entraram em confronto direto contra a Polícia. O almofadinha reclama que teve sorte em escapar com vida. Diz que a balbúrdia foi causada por um grupo de anarquistas que se consideram revolucionários.
Sei bem do que ele está falando. Aliás, qualquer um que tenha ligado a TV ou acessado a Internet recentemente sabe. No Facebook não se fala de outra coisa. Ultimamente o clima anda meio tenso no país. Estamos às vésperas das eleições presidenciais, e a situação política beira o caos. O atual presidente que, na opinião do povo, permitiu intervenções estrangeiras além da conta nos assuntos de ordem nacional, está sendo pressionado para abrir mão de seu mandato. O grupo responsável por essa ousada coação se auto-intitula “Os Reformadores.” Ninguém conhece seus rostos, mas eles têm grande influência junto à população e são perigosamente hábeis manipuladores das massas. Ainda não se sabe ao certo quem os encabeça e/ou patrocina. Todavia, pairam fortes suspeitas que seja um Partido da Oposição.
Mais do que nunca, a Internet é uma poderosa ferramenta para se organizar grandes manifestações; um meio incontestavelmente eficiente de se arrebanhar multidões descontentes, que marcham agora pelas grandes vias com expressões ferozes e munidos de cartazes onde se lê “O Brasil para os brasileiros!”, e coisas do tipo, que costumam tirar o sono e o sossego dos governantes.
Os Reformadores conseguiram colocar milhares de pessoas indignadas nas ruas de diversas capitais do país, e estipularam que se o presidente não renunciasse dentro de, no máximo, vinte e quatro horas, ele seria o responsável “pela vinda do Inferno para a Terra.” Usaram exatamente essas enigmáticas palavras. Fosse lá o que isso significasse, o prazo determinado pelos Reformadores expirou há exatas doze horas. O presidente, obviamente não cedeu à chantagem. Não levou a ameaça a sério. Achou que era um blefe grotesco. Fez um pronunciamento em rede nacional, frisando que não se deixaria amedrontar. Foi quando a dita “Revolução” teve seu início. E o nosso amigo Pavarotti teve o azar de estar bem no meio da bagunça quando ela explodiu.
Daqui de
onde estou, vejo-o esbravejar ao celular, gesticulando dramaticamente, como se
o interlocutor pudesse vê-lo naquele momento. Está dizendo que a Seguradora se
encontra atônita, desorientada, porque um número impressionante de carros foi
depredado pelos baderneiros, provocando um prejuízo incalculável. Como o
almofadinha alegasse irritado que precisava chegar a seu destino o quanto
antes, colocaram-no em um voo com escala, mas ele não pôde tomar o
outro avião após descer do seu, porque a situação piorara muito e quase
nada funcionava. Ninguém entrava nem saía. Metade dos voos estava
alarmantemente atrasada, e a outra metade fora cancelada. O melhor que puderam
lhe arranjar foi um ônibus.
À medida que ele fala, vejo que faz uma pausa. Retira um lenço do bolso do blazer, com o qual tapa a boca para tossir. Posso estar enganado, mas acho que vi respingos vermelhos no lenço branco. Sem saber que o observo, o Pavarotti diz ao celular que os anarquistas usaram uma fumaça verde escura durante o conflito, possivelmente para confundir a tropa de choque da Polícia. Pragueja, reclamando que aquilo devia ser tóxico, pois o estava fazendo tossir até arder os pulmões.
Finalmente nosso ônibus chega, e meus ouvidos agradecem profundamente a oportunidade de eu poder me livrar do Pavarotti por ora. Os passageiros não se mostram impressionados com o que o almofadinha fala, porque os grandes veículos da mídia garantiram que agora a situação está sob controle. Não sei bem porquê, porém, não me sai da cabeça a imagem das gotas vermelhas naquele lenço.
A porta dobrável do lotação se abre com um rangido. O motorista, um homem com cara de poucos amigos e na casa dos quarenta anos de idade, surge, desce e se posiciona junto à entrada para recolher bilhetes de passagem. Pergunto-lhe se pode, por favor, parar o ônibus para mim na entrada da comunidade rural onde se situa o rancho da família de minha namorada — eles vão me esperar na estrada, porque o ponto onde vou apear dista doze quilômetros da casa deles.
O motorista meneia a cabeça e assente em silêncio. Depois de destacar a parte que precisa da minha passagem, ele devolve-a sem me olhar. Entro no veículo e procuro por meu assento. Pela janela, vejo o motorista se afastar da porta para abrir a tampa do bagageiro na lateral do ônibus. Ao passo que ele vai guardando as pesadas malas uma a uma, os passageiros o cercam e gesticulam. Não posso ouvi-los daqui. Entretanto, vejo expressões aborrecidas. Imagino que o motorista esteja sendo crucificado devido ao atraso. Sinto uma ponta de pena do homem.
O almofadinha se move gingando ao longo do corredor e passa por mim, indo sentar-se duas poltronas atrás da minha.
Todos embarcam. O motorista se enclausura em sua cabine e se acomoda atrás do grande volante. A porta dobrável se fecha com um som de engrenagens pneumáticas. O imenso motor Scania ronrona e o ônibus roda maciamente para a pista. As luzes se apagam e o ar condicionado faz com que abotoemos nossos casacos ou subamos o zíper de nossas jaquetas.
Meu celular vibra. Atendo. É a namorada querendo saber o motivo da minha demora. Explico que o ônibus atrasou. Depois de mais algumas palavras, nos despedimos. Apenas meia-hora de viagem nos separam agora. Enternecido pela lembrança de seu rosto amado, espio as sombras que passam velozmente pela janela. O ônibus segue noite adentro, disparando pela rodovia e devorando quilômetros. A luz amarelada e mortiça da iluminação pública ficou para trás há pouco.
Recosto-me em minha poltrona. Penso que dá até para tirar um breve cochilo. Meus olhos estão quase se fechando quando a paz reinante é interrompida. Um som estranho e rascante que muda tudo da água para o vinho. Embora ignorássemos o perigo, a morte estava a bordo de nosso ônibus. E estávamos prestes a descobrir isso da pior maneira possível.
Continua...
Danilo Alex da Silva