sábado, 24 de maio de 2014

Sobreviver - Parte IV




"A sobrevivência muitas vezes exige coragem."

(Filme A Viagem)




Quando coloca os pés para fora de casa em uma sexta à noite com o objetivo de tomar um ônibus, você talvez espere ver muitas coisas pelo caminho. Entretanto, tenho certeza de que nunca imagina que vai se deparar com um Apocalipse Zumbi. E sei que cogita menos ainda, sequer sonha com a possibilidade de ver um garotinho indefeso de três anos de idade ser impiedosamente triturado por mortos reanimados.
Fui obrigado a assistir todo o horror de uma criança passando pelo que parecia uma espécie de moedor de carne. Essa imagem está gravada em minha retina. Armazenada em minha mente. Caso ocorra o milagre de eu escapar com vida — o que sinceramente duvido muito agora — a lembrança do menininho devorado por mortos-vivos é um fardo que vou carregar pelo resto de meus precários dias, durante os quais terei de lutar contra tudo e todos. Matar ou ser morto: agora esse é o único modo de assegurar meu direito inato de continuar existindo.
E a luta, a verdadeira e selvagem luta pela vida, está apenas começando.
Os zumbis estão vindo. Escalam o corredor com a determinação de alpinistas desejosos de reconhecimento. Se eu for reagir, se eu ainda quiser viver, esse é o momento de tentar fazer alguma coisa.
Procuro ganhar tempo. Olho ao redor e vejo pesadas malas espalhadas. Imediatamente atiro-as pelo corredor, fazendo-as deslizar ladeira abaixo. Surpreendo e desestabilizo meus inimigos. Malas e mortos descem rolando, distanciando-se de mim. Rio como um lunático ao ver meus estúpidos predadores sendo lançados corredor abaixo pelas bagagens, como pinos de boliche tombados por um arremesso certeiro.
Funciona por enquanto, mas necessito de um plano B.
Olho para baixo e percebo que os mortos são genuinamente brasileiros: eles não desistem nunca! Já recomeçaram a escalada. Se eu derrubá-los cem vezes, eles ainda virão atrás de mim. Conseguirei, no máximo, atrasá-los. Tenho mesmo é que dar o fora daqui o quanto antes.
Fito a janela ao meu lado, onde se situa a saída de emergência mais próxima. Os vidros estão parcialmente quebrados. Meu corpo passa por ali, mas, se eu tentar atravessar o vidro despedaçado, vou chegar do outro lado parecendo um frango desfiado. Qual a vantagem de escapar dos zumbis, se eu me cortar todo nos cacos da janela durante a fuga? Posso perder muito sangue e acabar desmaiando bem antes de obter ajuda. Posso contrair tétano. Quem sabe o quanto ainda terei de andar agora, até poder contar com algum tipo de assistência ou recursos médicos, se tais ainda existirem?
Além do mais, aquelas coisas podem farejar minha possível hemorragia, pois já notei que seu olfato é tão aguçado quanto sua audição.
Não. Para sair do ônibus, devo ativar a saída de emergência.
Para isso, seguro e puxo a alavanca. Ela não se move um milímetro sequer. Está emperrada. Não posso permitir que esse ônibus se torne minha tumba. Forço a alavanca de emergência uma, duas vezes. Nenhum resultado. Acabou meu tempo. Os mortos estão perto novamente, preciso cuidar deles antes de medir forças com a janela emperrada outra vez.
Todo aquele esforço para segurar a criança simplesmente me exauriu. As circunstâncias mostraram depois que meu esforço foi em vão, porque, no fim, serviu apenas para drenar minhas energias, já que o menino caiu de um modo ou de outro. Estou fraco justamente quando mais precisava ser forte.
Olho à minha volta com urgência. A morte se acha tão próxima que quase posso sentir seu hálito fétido. Veja então uma bolsa alheia, feita de lona, enganchada na base dos assentos mais próximos. Felizmente ela está ao meu alcance. Estico-me e pego a mala com avidez. Faço o zíper correr e ansiosamente me ponto a vasculhar seu interior.
Vou descartando sumariamente os itens que encontro à medida que constato a sua inutilidade em relação ao meu momento extremo de sobrevivência: loção pós-barba, uma revista, um DVD de uma das milhares de duplas sertanejas que fazem sucesso na atualidade, um saco de fumo, uma agenda, uma muda de roupas, incluindo um par de cuecas (eca!). A bolsa está ficando vazia. Meu desespero é crescente.
Os monstros vão me alcançar a qualquer momento. Eu que nem sou muito de rezar, faço uma prece silenciosa de última hora. Falta ainda um objeto para eu verificar. É minha última chance. Esperem... O que é aquilo?
Aperto os olhos. Parece uma bainha de couro. Meu coração descompassado vibra, atravessado por um feixe de esperança. Sim, é uma bainha! Seguro o cabo ornado, feito de chifre bovino e dotado de uma bela empunhadura, então o puxo, para ver surgir diante de meus olhos a grande lâmina de uma majestosa faca de pescador. A folha de aço trabalhado tem o gume impressionante, e nas costas do mesmo existe uma parte dentada, ligeiramente serrilhada. Muito mais do que uma arma, eu tenho uma legítima relíquia em mãos. É o tipo de coisa que dura muito. Examino a lâmina de perto, porque há algo inscrito nela: MADE IN USA.
Obrigado, meu Deus!
Empunho firmemente a faca com a mão direita e giro o corpo bem a tempo. Reúno todas as forças restantes. A cabeça do primeiro zumbi já emerge na semi-escuridão, bem junto ao meu tênis. Naquela cabeça odienta oscila um boné verde escuro da John John. Me preparo para desferir o golpe, e a visão daquele boné faz meus olhos castanhos faiscarem.
Há uma coisa que me esqueci de contar a vocês.
No começo da viagem, tão logo subi no ônibus, procurei meu lugar. O bilhete da passagem dizia que o meu assento era o de número dez. Mas, adivinhem só?
Havia um otário no meu lugar. E no assento ao lado do otário, havia um amigo do otário, tão otário quanto o primeiro. E não digo que são eram otários somente porque ocupavam meu lugar. São otários por natureza mesmo. Aquele tipo de gente que se autodenomina orgulhosamente como “malas”: boné para trás, bermudas longas e largas, chinelos. Se acham os maiorais, pensam que podem tudo. Não trabalham e não tem perspectiva de futuro. São uma vergonha para a família e um peso para a sociedade. Consideram-se os tais, e gostam de intimidar as pessoas de bem. Não falo pelas roupas, porque acho que cada um tem direito de escolher seu próprio estilo. Falo é de seu comportamento mesmo.
O otário nº1, que vamos chamar de John John devido o boné, estava jogado no assento, as pernas erguidas e apoiadas no encosto de mão do banco de maneira displicente. Lastimável.
Ele perguntou se aquele era meu lugar. Assenti. Ele me olhou com cinismo e nem se mexeu. O otário nº2 soltou uma risadinha de hiena e disse para eu procurar outro banco, porque havia outros vagos. Mirei-os com raiva. Poderia ter criado um escarcéu se quisesse. Poderia ter pedido ao motorista para tirá-los de lá. Poderia ter batido o pé e insistido. Seria impagável ver o sorriso idiota desaparecendo da cara imbecil deles. Porém, algo misteriosamente me dissuadiu, dizendo para eu deixar isso para lá. E foi exatamente o que fiz.
Eu ia descer logo, não achei que valesse a pena criar confusão. Fechando a cara, procurei outro lugar e encontrei um mais ao fundo do lotação. E agora vejo que a dupla de otários tinha, mesmo sem saber, me feito um grande favor. Ocupando meu lugar, foram os primeiros a se ferrar. Morreram logo, fosse pelo acidente, fosse pela contaminação.
E agora, cá estamos. Tenho diante de mim a versão zumbi do John John. Repleto de deleite, entendo que é hora da desforra.
— Quer um pedaço de carne, idiota? — rosno desafiadoramente — Vou te dar o que merece!
Já joguei Resident Evil e assisti The Walking Dead o suficiente para saber que minha melhor aposta, se quero de fato parar um morto-vivo, é neutralizando seu cérebro. Por isso, inspiro fundo e golpeio o John John brutalmente na têmpora. A faca atravessa a carne e se choca desagradavelmente contra o crânio. O sangue espirra. O otário nº1 pára subitamente de se agitar freneticamente e volta a ser apenas um cadáver de expressão bestificada. Mesmo assim, o esfaqueio de novo na cabeça. A força dos golpes é tanta, que lhe arranca o boné da cabeça.
Digam o que quiserem, mas eu tive minha revanche. Sou assolado por um sentimento mórbido de satisfação. Experimento a euforia do estudante que vê seu nome na lista de aprovados do vestibular, e o êxtase do jogador que marca o gol decisivo ao cobrar o pênalti em final de campeonato.
Vejo a lâmina escura de sangue. Chuto a boca do monstro com a sola do tênis, e ele desaparece rolando pelo corredor. Minha sorte é que, apesar de magrelão, o John John é bastante alto, e o peso de seu corpo morto arrasta consigo seus companheiros, interrompendo sua escalada e jogando todos lá embaixo.
Agora é a minha deixa!
Guardo a faca na bainha, e a bainha na cintura.
Seguro a alavanca com as duas mãos e apoio o corpo com os pés na parede. Aplico toda a minha força. Meu coração parece querer sair pela boca. Os pulmões ardem. Meus músculos se distendem sofridamente. Meu corpo reclama de dor e cansaço, está à beira da exaustão. O suor encharca minha testa, meu rosto e minhas mãos, e empapa minha camiseta na altura das axilas. A posição incomodamente vertical dificulta minha tarefa ao extremo.
Ouço os mortos rastejando novamente corredor acima.
Por um momento angustiante chego a acreditar que não vou conseguir. Minha sina aparentemente é morrer tentando.
Finalmente a janela cede. Com um rangido enferrujado de protesto, vencida, a alavanca se move e a janela se desencaixa. Uso os dois pés para empurrá-la para fora, liberando definitivamente a saída. Reprimo a custo um grande berro de vitória.
Tenho que sair. Não posso perder mais tempo.
Os grunhidos dos zumbis estão soando cada vez mais alto. Acho que já distingo vagamente seus vultos na semi-escuridão.
Quando estou prestes a sair, diviso a cara feia e cadavérica do otário nº2. Ele é quem lidera a fila dos meus perseguidores. Hesito um instante. Se o zumbi fosse qualquer outro passageiro do ônibus, eu teria partido no mesmo instante. No entanto, como é aquele babaca, resolvo permanecer mais alguns momentos.
Meu tênis é próprio para alpinistas; tem cano médio e grosso solado com pequeninas travas de borracha. Pesado. Dura muito. Paguei os olhos da cara por ele e não me arrependo. Sei que valeu cada centavo. Agora, mais do que nunca estou feliz em tê-lo adquirido.
Quando escoiceio violentamente a cabeça do otário nº2, ele estremece como se tivesse levado uma tijolada bem no meio da cara. Desaparece na mesma hora, sempre caindo e levando consigo o resto da horda durante sua desastrada descida.
Sorrio, satisfeito. Agora sim, posso ir.
Passo pelo vão da janela e respiro fundo o ar fresco da noite. Grilos cantam na escuridão e o cerrado, vegetação predominante em minha região, se estende agressivamente ao meu redor, amortalhado pelas trevas e ocultando perigos indizíveis, como serpentes venenosíssimas.
Preciso seguir com muito cuidado. O terreno é íngreme, e por isso avanço cautelosamente, quase me arrastando, bendizendo mais uma vez meu tênis o qual, além de não escorregar, me ajuda sobremaneira na escalada.
Enquanto gradativamente meus pés encontram pontos de apoio, minhas mãos procuram pedras e raízes, nas quais se agarram para me sustentar em minha árdua subida. Deslocadas por meu peso enquanto escalo, constantemente porções de cascalho rolam pela ladeira e são imediatamente engolidas pela noite escura lembrando que, se eu não for cuidadoso, terei um fim semelhante.
Entretanto, não serei tão tolo assim. Já tive meu batismo de fogo hoje.
Não lutei tanto para acabar morto desse jeito, quebrando o pescoço em uma queda idiota.
Pouco a pouco eu avanço. Passo a passo. Centímetro por centímetro.
Já posso ver a estrada. Sigo colado ao chão como uma cobra.
Agora nada vai me deter.


Continua...



Danilo Alex da Silva



quarta-feira, 7 de maio de 2014

Sobreviver - Parte III



"Nós somos os mortos-vivos."

(Rick Grimes - The Walking Dead - HQ)



Abro os olhos lentamente. Não posso precisar quanto tempo se passou. Meu cérebro lateja dolorosamente. Algo quente e viscoso escorre do lado direito da minha testa. Sinto uma ligeira náusea. Acho que sofri uma pequena concussão.
Devagar, movo minhas mãos, tateando apreensivamente meu próprio corpo para saber se estou inteiro. Fico feliz em saber que, com exceção da pancada na cabeça, não sofri nada mais sério. Menos mal. Como dizem por aí, vão-se os anéis, mas ficam os dedos. Quase posso respirar aliviado.
Quanta ingenuidade a minha! Em poucos instantes constato que estou longe de poder respirar aliviado. Ainda tenho um longo caminho a percorrer. Preciso lutar muito se quiser de fato sobreviver. Um grunhido animalesco vindo de um ponto abaixo de mim deixa isso bem claro.
 Cuidadosamente mexo a cabeça e corro os olhos pelo panorama de destruição. Vidros quebrados. Malas espalhadas, algumas abertas, exibindo seu conteúdo. Bancos rasgados. Muitos corpos inertes e ensanguentados. O ônibus se converteu em um grande caixão metálico. Um ou outro gemido de dor se faz ouvir aqui e ali. Mas o pior são os grunhidos animalescos. Estão se multiplicando.
Acho que a infestação esteve se alastrando durante meu período de inconsciência, o que me leva a crer que passei tempo demais desacordado. Receio que isso possa ter reduzido radicalmente minhas chances de escapar com vida desta enrascada.
Quando o ônibus deixou a pista em alta velocidade e capotou, mesmo tombado de lado ele deslizou por um barranco e só parou porque bateu em uma árvore centenária, ali permanecendo estático, bem no meio da ladeira. Então, nesse exato instante o grande veículo — ou o que restou dele — está inclinado, sua frente sanfonada, violentamente prensada contra o grosso tronco da árvore. Imagino que muita gente foi lançada para fora. As pessoas que ocupavam os assentos da parte traseira do ônibus foram projetadas para a parte dianteira no momento da colisão. As que não morreram no impacto ficaram gravemente feridas e, sem poder se locomover, tiveram um destino horrendo: foram devoradas por aquelas coisas que urram e rastejam lá embaixo, na parte posterior do que sobrou do lotação. Coisas que já foram gente, e que agora comem gente. Mal posso crer em meus olhos.
Horrorizado, sou obrigado a assistir ao banquete macabro, transformado a contragosto em testemunha ocular da fome infinita que tais seres diabólicos sentem. Estremeço e ranjo os dentes diante do apetite insaciável deles por sangue e carne humana. Eles estão lá embaixo, e eu estou aqui em cima, a salvo deles por enquanto. Não posso deixar que me notem. A inclinação do ônibus e a gravidade não me ajudarão para sempre.
Mais uma vez dou graças por ter afivelado o cinto de segurança no princípio da viagem. Foi ele que, conforme eu previra, me manteve seguro quando desmaiei após o choque do veículo, e fiquei inerte, perigosamente suspenso um pouco acima da horda de mortos-vivos canibais que se deleitam agora com os passageiros feridos. Os gritos de angústia daqueles que estão sendo devorados vivos é terrível, e dilacera meu cérebro, dificultando o fluxo do meu raciocínio. Não fosse o cinto, eu seria nesse momento mais um dos despedaçados por aqueles chacais. Minha mente embotada trabalha o mais rápido possível. Mas há uma coisa que não entendo.
Não vi o motorista no meio da bagunça. E nem a mulher que foi atacada pelo Pavarotti. Devem ter sido arremessados para fora na hora da batida, ou talvez foram esmagados quando a frente do veículo se amassou contra o sólido tronco da árvore, uma vez que ocupavam ambos a cabine do condutor quando aconteceu o abalroamento. Tecnicamente, além do Pavarotti, os dois seriam os únicos capazes de disseminar a doença. Ainda assim, vejo pelo menos uma dezena de mortos-vivos asquerosos se remexendo juntos, como um monte inquieto de larvas.
Será que agora, além de mordidas e arranhões, essa porcaria também se propaga por outros meios, tais como o ar, ou contato com fluídos contaminados? Teria o vírus — ou o que quer que transmita essa enfermidade dos diabos — evoluído? Será que de algum modo eu fui infectado? Vou me tornar uma daquelas coisas? Espero sinceramente que não.
Então, era esse o grande plano dos Reformadores? Bioterrorismo? Zumbis? Sério mesmo? Não consigo ver qual a genialidade em espalhar uma praga mortal no meio da população com o fim único de forçar o presidente a uma desistência política. Ao pensar sobre isso, lembro de uma notícia de semanas atrás, a respeito da carga de um caminhão do Exército que foi roubada. Conteúdo Ultra Secreto. Certamente resultado de experiências científicas. Agora as peças começam a se encaixar. Os Reformadores estão dando ao governo um osso de sua própria sopa. No entanto, acho que eles não previram tamanho caos. A situação com certeza fugiu do controle e eu sei que, nesse exato momento, assim como eu, os Reformadores também estão comendo o pão que o Diabo amassou.
Volto a mim. Chega de devaneios. Preciso me mover.
Eis que surge um novo problema. Lembram do garotinho com quem compartilhei meu Doritos? Pois é. Ele é o novo problema.
Do meu lugar vejo a criança recuperar os sentidos. Ele também desmaiou quando o ônibus capotou antes de bater na árvore. Está sentado do lado oposto ao meu, uma poltrona abaixo. A jovem mãe está ao seu lado, lívida e imóvel. Pela posição da cabeça da moça, ela quebrou o pescoço durante o acidente. Morte instantânea, com certeza. E o seu filhinho infelizmente vai descobrir isso em breve. Que tristeza!!!
Ele está sacudindo a mãe, tentando inutilmente despertá-la de seu trágico sono eterno. Vendo que ela não se mexe, ele faz o que qualquer outra criança em seu lugar teria feito: começa a chorar alto, desesperadamente. Nunca devia ter feito isso, porque acaba de se condenar. Seu choro pode denunciar sua localização.
Abaixo de nós, os monstros erguem as cabeças, movendo os rostos desfigurados. Suas faces estão cobertas de sangue e gosma esverdeada. Há pedaços de carne fresca humana presos em seus dentes. Os olhos mortos, preenchidos por uma esclera amarelada vasculham a parte de cima do ônibus, procurando ansiosamente a origem do pranto.
Aqueles filhos da mãe são atraídos por sons de qualquer espécie.
Gesticulo nervosamente, o mais silenciosamente possível, tentando me expor o suficiente apenas para ser visto pelo garoto. Dá certo. Ele me enxerga. Levo meu indicador da mão direita à frente dos meus lábios:
— Shhhhhhhhhhhhhhhh! — e mostro os zumbis com um gesto.
Ele dá mostras de ter entendido, pois procura engolir o choro. Por sinais, peço que ele venha silenciosamente ao meu encontro. É subida. Vai ser difícil para ele, eu sei. Mas é o único jeito de ele sobreviver. Além disso, me posiciono. Ficarei pendurado sem tentar fazer barulho. Esticarei o corpo e estenderei a mão para resgatar meu amiguinho. Somos as últimas duas pessoas normais nessa bagunça. Estamos presos como sardinhas enlatadas nessa armadilha infernal, infestada de cadáveres reanimados e famintos.
A despeito das circunstâncias, estou otimista. O garoto está bem perto agora. Isso mesmo, rapazinho. Continue vindo. Ele avança silenciosamente, tomando muito cuidado para não cair deslizando corredor abaixo, pois o mesmo se tornou uma espécie de tobogã sinistro o qual leva direito aos braços da morte. Ou, melhor dizendo, leva direito à garganta da morte.
Estico a mão direita. Vamos conseguir. Afinal, alguma coisa tem que dar certo no meio de toda essa loucura. Na semiobscuridade eu já posso ver a mãozinha rosada e gorducha. Estendo-me ao máximo em sua direção...
Engraçado como uma pequena coisa, um mínimo detalhe pode mudar totalmente uma situação, não é? Acho que às vezes há algo de muito sórdido na mudança de ventos, ou no fato da roleta da sorte resolver subitamente girar ao contrário. O destino apronta, nos prega suas peças mortais e depois simplesmente ri em nossa cara, sádico.
Nos últimos quarenta centímetros que nos separam, o garoto não controla a afobação e acaba esbarrando com o pé em um dos assentos. As molas dentro do estofado rangem com o chute inesperado. Sustenho a respiração. O ruído produzido pelo esbarrão, embora não tenha sido realmente alto, foi o bastante.
Os mortos se alvoroçam lá embaixo. Seus malditos olhos amarelos e apodrecidos estão levantados e focalizam avidamente o menininho apavorado. Tensão extrema no ar.
Como é que viemos parar bem no meio de um filme de George Romero? Acho que não fui um bom menino esse ano.
Os monstros se amontoam e iniciam sua escalada assassina. Estão formando um aglomerado, uma espécie de escada, ajudando uns aos outros a rastejar corredor acima. Mesmo na penumbra posso contar pelo menos onze deles. Seu cheiro rançoso e abjeto faz aumentar minhas náuseas, e meu esforço para não vomitar é hercúleo. Espartano, eu diria até. Como tudo já está ferrado mesmo, mando a discrição para o espaço e grito:
— Vamos, rapaz! Continue subindo! Eles estão vindo!
O garoto está paralisado. Possivelmente em estado de choque. E quem pode culpá-lo? Afinal, ele tem apenas três anos, acabou de ver a mãe morta e precisa confiar em um estranho se quiser sair vivo daqui.
O menino hesita. Os zumbis, não. Estão chegando perto.
Grito até ficar rouco, empregando todas as forças dos pulmões. O tempo urge.
Finalmente a criança desperta de sua imobilidade traumática. Volta a subir. Agarro firme sua mão. Pouco abaixo dele posso ver a cara horrenda dos zumbis incansáveis. Preciso puxar o garoto até onde estou, distanciando-o das criaturas canibais. E essa ainda nem é a pior parte.  
Depois de resgatá-lo, ainda tenho que abrir a saída de emergência, puxando a alavanca para fazer a janela se soltar e nos dar passagem. É preciso rapidez, ou meu companheiro e eu ficaremos encurralados.
Estou puxando o menino apenas com a força do braço direito. O esquerdo serve de apoio. Os músculos reclamam e doem. Minha mão começa a suar.
Droga! Não, não e não! Ele está escorregando. Câimbras terríveis me acometem. Sinto-me inútil. Lágrimas de frustração brotam em meus olhos. Não foi bem esse o final que imaginei.
O destino está sendo inevitavelmente selado. Uma mão cadavérica alcança e agarra o tornozelo da criança chorosa. Mais peso é acrescentado ao fardo improvisado que tenho de segurar. Meu braço direito não vai suportar sozinho. Que se dane! Uso a mão esquerda também.
Com as pernas enrodilhadas ao cinto de segurança, estou de cabeça para baixo, como um trapezista pronto a segurar as mãos do companheiro que vem voando pelo ar. Minhas mãos continuam suando profusamente, então passo a segurar os antebraços do garoto. Sinto ferroadas no cérebro. Concentro-me em desdobrar o corpo ao meso tempo em que procuro içar o menino. Outra mão putrefata se prende em sua panturrilha. E depois outra. Tenho a impressão de que a criança pesa uma tonelada agora. O suor é abundante. O meu assento estala. Não vai suportar tamanha carga. Dentro de instantes, todos cairemos.
— Balance os pés, amigão! — grito para o pequeno de modo frenético, desesperado — Chute! Mexa as pernas com toda a sua força!
Ele obedece. Percebo que é em vão. Os monstros continuam lá, pendurados, obstinadamente aferrados. Mais mãos seguram as pernas rechonchudas e pueris. Mais peso. Estou no meu limite. Meus músculos tremem. Acho que meus nervos vão arrebentar como cordas de violão. Recuso-me a desistir. Em um momento de trágica lucidez, uma luz de inconveniente compreensão invade minha mente febril, mostrando que essa é uma batalha que não posso vencer. Os inimigos têm a força da gravidade a seu favor.
O suor faz a criança escorregar mais alguns centímetros, deixando-a um passo mais perto da horda de carniceiros, que agora grunhe e rosna em uníssono, como um bando de animais selvagens.
Me odeio por não conseguir ser mais forte. O suor continua surgindo, esse maldito.
Sinto as palpitações do coração do pequenino na mão diminuta entrelaçada à minha. Com o rosto banhado em lágrimas, miro o rosto infantil. Aqueles marcantes olhos, grandes e inocentes, me encaram de volta. Vejo muito medo neles. Mas também vejo amor. E perdão. No segundo derradeiro ele me perdoa. Sabe que fiz o que pude.
Sem que eu possa mais evitar ou adiar isso, nossas mãos se soltam e ele escorrega pelo corredor, cercado de mortos-vivos.
Quando chegam ao fim daquele escorregador mortal, na parte frontal do ônibus, dezenas de mãos, dentes e bocas ferozes dilaceram impiedosamente a carne tenra.
Cortam. Rasgam. Com sofreguidão demoníaca, eles estraçalham tecidos, terminações nervosas, e ossos que ainda estavam em formação.
Debato-me furiosamente, como se ainda pudesse fazer algo pelo menino. Um anjo cruelmente retalhado por demônios. Um cordeiro entre lobos.
Um único grito estridente e doloroso escapa da pobre criança enquanto seu corpinho rapidamente é feito em pedaços pelas feras. Uma onda vermelha e espessa, semelhante a extrato de tomate, emerge da confusão de braços e rostos ferinos que se agitam onde o menino caiu. Ouço o som abominável de ossos sendo partidos. A mastigação macabra, o ruído da trituração, ameaça o que me restou de sanidade.
Sinto algo implodir dentro de minha cabeça. Só então me dou conta de que estou gritando feito louco. Raiva. Dor. Frustração. Um misto de emoções é extravasado através do meu berro insano.
À medida que alguns poucos mortos ainda disputam entre si as vísceras do garotinho, os outros se ocupam em me olhar. Agrupam-se e reiniciam sua escalada funesta. Corredor acima, a morte vem rastejando em minha direção.
Paro repentinamente de gritar. Calo-me. Engulo em seco. Arregalo os olhos.
Tomara que essas não sejam minhas últimas palavras, porque só consigo pensar em uma coisa para dizer agora:
— Ah, merda!

Continua...

Danilo Alex da Silva

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Sobreviver - Parte II



"Quando o Inferno está cheio, os mortos andam na Terra. "

(Madrugada dos Mortos)




Alguém está tendo um acesso de tosse na parte do fundo do ônibus. Se você acha que é o bom e velho Pavarotti, acertou. Uma tosse seca e intermitente, ruidosa, mesmo com a tentativa dele de abafá-la sob o lenço manchado. Os passageiros se remexem e cochicham entre si, incomodados. Alguém reclama com veemência. Ouço um princípio de discussão. Um som estranho substitui a tosse. Parece o rosnado de um animal feroz.
— Meu Deus! — exclama uma voz feminina, carregada de dor, medo e surpresa — Ele me arranhou o pescoço! Estou sangrando!
Ouvindo o intenso burburinho, o motorista encosta o ônibus e vem saber o que está acontecendo. As pessoas se queixam do Pavarotti. O motorista vai então até a poltrona do alvo das reclamações e começa a dizer:
— É verdade que unhou uma mulher? O senhor precisa se acalmar imediatamente, ou terei de... Senhor? Está se sentindo bem? — preocupado, o condutor do lotação estende a mão e toca o ombro do almofadinha, cujo rosto estava arroxeado, como se ele estivesse sufocando.
Na mesma hora o Pavarotti reage. Arreganhando os dentes e rosnando como um cão raivoso, atira-se sobre o motorista o qual, a despeito da surpresa, para total espanto de todos, consegue se esquivar a tempo, tirando o corpo do caminho e fazendo o almofadinha passar direto. Cambaleando, o Pavarotti se volta. Ainda não desistiu de atacar o motorista. Eu, que levantei o pescoço e me virei para ver o que se passava, pouso meus olhos no rosto lívido do almofadinha, rosto esse parcialmente protegido pela meia-luz. Ao fitar aquela face, me arrependo na mesma hora de tê-lo feito. E estremeço.
O homem de terno passou por uma transformação inexplicável e agora está fora de si. Não fala mais em altíssimos decibéis. Na verdade, não fala mais nada. Apenas emite guinchos animalescos e arreganha os dentes de forma ameaçadora, como um bicho acuado. Seu corpo retesado assume uma postura assassina. Uma gosma verde escorre pelos cantos de sua boca contraída. Os braços pendem ao longo do corpo, e da ponta dos dedos da mão direita goteja o sangue da mulher que ele acabou de arranhar.
Mas o pior mesmo... Ah, Céus! O pior mesmo são os olhos.
Os olhos do Pavarotti são assustadores. Eles não têm mais movimento, nem luz. E nem expressam mais sentimentos. Deixaram de ser a janela da alma, porque a alma não mais parece habitar aquele corpo, que agora é horripilante. Olhos vidrados e líquidos. A esclera está amarelada e indica o princípio do que suspeito ser um processo de decomposição. Sim. É isso. Aqueles olhos estão mortos. Não sou mais capaz de encará-los.
O homem de terno perdeu toda a racionalidade. Parece agora agir apenas pela força dos instintos mais primitivos. Arranhando as cordas vocais naquele rosnado ferino, investe mais uma vez contra o motorista.
O homem atacado não demonstra medo. Na verdade, está profundamente irritado. Imagino que seu dia foi infernal e ele deve estar, de certo modo, grato por ter em quem descontar todo o seu estresse.
Dessa forma, se adianta prontamente pelo corredor e lança com toda força o punho direito para frente. Desfere um soco cruzado fenomenal. Aquele murro cinematográfico me faz enxergá-lo como um Maguila ou Popó Freitas da vida. A situação é surreal demais até para mim, que estou acostumado a ver e ouvir as coisas mais bizarras que se passam todos os dias nesse nosso mundo tenebroso.
Quando o motorista dispara o soco, a cena se desenrola em câmera lenta diante de meus olhos. Dentro de minha cabeça começa a tocar Eye of the Tiger, do Survivors, a música tema de Rocky IV, cujo papel principal é interpretado por Sylvester Stallone. Quase rio. Seria cômico se não fosse trágico. Cristo! Devo estar enlouquecendo. Fecho os olhos por um momento e torço para que tudo não passe do fenômeno do delírio coletivo o qual, por alguma razão desconhecida, tenha assolado os passageiros. Esse tipo de coisa, embora raro, não é incomum. Basta que você pesquise na Internet para conhecer alguns casos e então perceber que o que falo não é totalmente ilógico, sobretudo em dadas circunstâncias.
Abro os olhos, temporariamente esperançoso. O punho cerrado do condutor acaba de atingir o alvo. Todos no ônibus ouvem o queixo do almofadinha estalar sinistramente com o violento impacto. Desequilibrado, ele cai pesadamente para trás. Ato contínuo, o motorista o agarra pela nuca e o obriga a levantar, praticamente arrastando-o até a porta. Esbraveja:
— Seu maluco dos diabos! No meu ônibus você não fica nem mais um minuto!
Acionando um botão no painel, o motorista abre a porta dobrável, e por ela arremessa o ensandecido homem de terno. Fecha novamente a porta. O lenço manchado de rubro ficou caído no corredor.
Perante o olhar assustado dos passageiros, o condutor do veículo se desculpa pelo ocorrido, alegando que essa não é a primeira vez que precisa expulsar um encrenqueiro do ônibus. Diz acreditar que o rapaz estava sob a ação de alucinógenos.
Acalmando razoavelmente seus passageiros, o motorista reassume a direção e o ônibus finalmente segue viagem. Intimamente, eu discordo do que ele falou. O Pavarotti não estava drogado. A meu ver, é um sujeito muito doente. Ele claramente precisava de ajuda. O motorista estava aborrecido demais para notar que havia algo muito errado com o homem de terno. Pelo amor de Deus! Todo mundo perdeu a cabeça nesse ônibus, e só eu consigo pensar razoavelmente por aqui?
Cinco minutos transcorrem com a lentidão de um século. O ônibus se move roncando dentro da noite. Nunca uma viagem tão curta pareceu tão torturantemente longa. Ouço uma tosse seca novamente e me sobressalto. Meus sentidos entram em estado de alerta. Pelo canto dos olhos, com minha visão periférica percebo um movimento. Na quase escuridão do veículo uma mulher se desloca pelo corredor. Vem do fundo do veículo. Ela passa por mim. Num átimo, vislumbro as marcas de arranhão em seu pescoço e entendo tudo. Tenho um terrível pressentimento porque a vejo rumar avidamente para a cabine do motorista.
Ela caminha um tanto trôpega. Acho que os passageiros que a estão vendo cambalear acreditam ser o motivo de seu balanço e inconstância a velocidade na qual viajamos — a qual, pelos meus cálculos, deve beirar os 90 Km/h. Mas eu sei que não é isso.
Ela se move como o Pavarotti se movia durante o ataque ao motorista, e também tosse igual a ele. Deve ter contraído sua doença por meio dos arranhões. Tornou-se a nova ameaça a bordo.
Preciso intervir. Tenho de impedi-la. Não me entendam mal, por favor. Não acho que seja um anseio heroico aquilo que me impele. Acredito que seja mais uma questão de sobrevivência. Disponho-me a me levantar rapidamente. Sinto um agarrão na cintura, retendo-me no banco. Baixo os olhos e praguejo ao ver o cinto de segurança bem afivelado, engastalhando-me naquele instante crucial.

Luto para me desvencilhar. Porém, isso toma tempo. Segundos preciosos se vão. Percebo que é tarde demais, porque a mulher de alguma forma já invadiu a cabine do motorista. Então desisto de soltar o cinto de segurança. A partir de agora, ele será minha tábua de salvação durante a tragédia que está para acontecer.
Surpreendendo o motorista, a mulher salta-lhe em cima e crava os dentes em seu pescoço, arrancando dali um grande naco de carne e um impetuoso jorro quente de sangue. O homem gorgoleja mortalmente ferido. Num espasmo, gira o volante em um desastrado golpe de direção. O ônibus, desgovernado, passa direto em uma curva acentuada, sai da pista em alta velocidade e capota.
O impacto ecoa como um trovão em nossos ouvidos e joga os passageiros uns contra os outros, embolando-os. As malas alojadas nos compartimentos acima dos bancos, próximo ao teto, passam a cair pesadamente sobre nós. Gritos de dor e pânico. Um barulho ensurdecedor de vidros estilhaçando. Tudo gira, parecendo ruir apocalipticamente.
Algo atinge minha cabeça com força, causando um estalo contra meu crânio.
 Vácuo. Fria escuridão. E depois, somente o silêncio.


Continua...


Danilo Alex da Silva