domingo, 28 de abril de 2013

Teimosia




Ensaio sobre o poema de Madre Tereza de Calcutá


"Muitas vezes, no seu caminho aparecerão pessoas egocêntricas, ilógicas
E insensatas.
Perdoe-as assim mesmo.
Quando se é gentil, as pessoas o acusarão de egoísta ou interesseiro.
Seja gentil mesmo assim.
Se você é um vencedor, terá muitos falsos amigos e um exército de inimigos verdadeiros.
Vença igualmente.
Se você é honesto, ingênuo e franco, as pessoas podem enganá-lo.
Seja honesto, ingênuo e franco assim mesmo.
O que você levou anos para construir, alguém pode destruir de uma hora para outra.
Construa mesmo assim.
Se você tem paz e é feliz, as pessoas sentirão inveja.
Seja feliz e tenha paz assim mesmo.
O bem que você faz hoje pode ser esquecido amanhã.
Faça o bem assim mesmo.
Seus erros podem ser lembrados por todos aqueles que o detestam.
Perdoe a si mesmo e esqueça.
Dar sempre o melhor de você pode não ser o bastante.
Dê o melhor assim mesmo.
A morte não é a simples perda da vida.
A morte é o que morre dentro de nós enquanto vivemos.
Portanto, construa sonhos.
Construa suas vitórias.
O Universo espera que você mostre seus sonhos,
E as estrelas estão prontas para aplaudir suas realizações.
A paz somente é conquistada quando desafiamos o mundo e nos escondemos dentro do nosso próprio coração.
Medite, vibre e mantenha a chama do seu entusiasmo sempre acesa.
No final das contas, é tudo entre você e Deus.
Nunca foi entre você e as outras pessoas."




segunda-feira, 15 de abril de 2013

Anátema - Final



 Pouco tempo depois, chegou ao tal lugar. Estava escuro e deserto. Era um local no meio do nada, cercado por solidão e sombras. Ouvia os grilos cantando e os sapos coaxando. O vento frio da madrugada era impetuoso e agourento. Ricardo se dirigiu então para a escada utilizada pelos turistas (e, em ocasiões como aquelas, por suicidas também), para visitar a imensa ponte ferroviária. Tinha de vencer uma infinidade de degraus, passando por vários patamares enquanto galgava pouco a pouco a íngreme e aparentemente interminável escadaria.
Enquanto subia, sentia o vento gelado sacudi-lo em sua magreza quase doentia. A friagem da madrugada atravessava com facilidade sua velha e desbotada jaqueta camuflada do Exército, tão inseparável como uma segunda pele. Apoiava-se no corrimão enquanto subia, tentando não pensar em nada. Quando finalmente atingiu o topo da escada, viu-se andando solitariamente ao longo da passarela que corria paralela aos trilhos, separada dos mesmos por grades metálicas de proteção, as quais batiam no ombro de um homem alto. Elas balançavam suavemente quando envolvidas pelo vento, o qual passava zunindo por elas. Lançando um olhar desolado ao redor, Ricardo parou subitamente de caminhar e permaneceu ali, imóvel, aspirando profundamente os aromas da fria e silenciosa noite.
 Seus olhos até então não expressavam emoção alguma; apenas vazia indiferença, frio desinteresse. Uma coruja agourenta piou ao longe. Quase em seguida, ele jurou ter ouvido o som de uma ave pouco comum naquela região: uma gralha. Ou corvo, como era chamado o pássaro em outros lugares. Estremeceu. Seria o frio? Ou o mau presságio? Achou que estava louco; não poderia haver um corvo por ali. Apoiando a cabeça nas grades, olhou para baixo e imaginou quantas dezenas de metros o separavam do chão quando saltasse. Provavelmente uma centena. Talvez mais. Ao fundo, as serras que o trem contornava apitando, sacolejando implacavelmente sobre os trilhos maciçamente construídos ali tantos anos antes. Sentiu-se repentinamente só, perdido e sozinho. Quase pensou em voltar atrás. Todavia, seguiu adiante com seu louco intento.
Com facilidade impulsionou seu corpo magro e leve para o alto e escalou a grade de proteção que o separava do negro abismo. Em poucos instantes, estava sustentando-se apenas pelos calcanhares na base da grade, com as costas apoiadas na mesma, balançando perigosamente sobre o precipício. Vivenciando os últimos momentos nesse mundo que apenas o decepcionou. Derradeiros segundos de vida para um homem sem esperança. No fundo, talvez já estivesse morto e não soubesse.
Que seja anátema...”
Surpreendeu-se com a forma repentina e inexplicável que essa frase despontou em sua mente já embotada e vencida por pensamentos autodestrutivos. Parecia a voz da consciência falando, num último e desesperado esforço para fazê-lo desistir daquela insanidade; buscando convencê-lo a desistir de desistir.
 Anátema... Uma palavra que definia alguém rejeitado pela igreja e repudiado por Deus, mas, principalmente, se referia a alguém amaldiçoado. Alguém sem futuro, fadado à morte, condenado irremediavelmente à destruição. Exatamente o que Ricardo Lemos era naquele momento. Anátema. Um homem sentenciado à escuridão sem volta. Moveu a perna direita à frente, e seu pé pendeu fantasmagoricamente sobre o abismo. Era hora de acabar com tudo aquilo, bem ali, naquele momento. Só precisava se soltar. Apenas deixar a dor ir. Apenas fugir. Apenas cair.
Agora sim o coração martelava no peito. Os olhos arregalavam-se encarando a iminência do que estava prestes a acontecer. O suor brotava nas têmporas, na testa, nas axilas. Respirava forte e com dificuldade, tentando se controlar. A adrenalina eletrizava seu corpo embriagado, agora precariamente lúcido devido à situação crucial. Quando finalmente se decidiu, e inclinou-se para frente, o vendo soprou mais forte e Ricardo encheu-se de medo. No instante final, lembrou das faces amadas de sua esposa e filha, e resolveu que desejava vê-las mais uma vez. Decidiu que queria viver. Esse é o instinto mais básico do ser humano: sobreviver. Existir. É para isso e por isso que o homem vem lutando desde o limiar dos tempos, desde a aurora do mundo. Ali não cabia a morte, ele pensou.
No último segundo, o vento fez Ricardo mudar de idéia, ao mesmo tempo em que o desequilibrava. Perdendo o apoio uma fração de segundo depois de soltar-se, o homem viu o vento tentar barrar sua tentativa de agarrar-se à vida da qual pensava desistir.
Por um milésimo de segundo o qual pareceu durar uma sofrida eternidade, Ricardo Lemos bracejou angustiosamente à procura de apoio e oscilou mortalmente para o precipício. Quando estava prestes a mergulhar na escuridão, caindo como um fardo, girou o quadril e sua mão direita agarrou a base da grade, de modo que o homem ficou balançando arquejante acima das trevas famintas, que ansiavam por engoli-lo imediatamente.
Precisou esperar que o vento diminuísse seu soprar furioso para que começasse a árdua subida, seus braços tremendo dolorosamente. Havia se esfolado todo ao quase cair e, principalmente, na subida. Passou por cima da grade e tombou do lado de dentro, de bruços sobre o chão cimentado da passarela. Ficou ali por alguns momentos, se recompondo, respirando fundo, sentindo-se plenamente vivo. O sangue pulsava em suas veias irrigadas de álcool.
Quando finalmente se viu em condições, se levantou e desceu correndo a gigantesca escadaria, apoiado no corrimão e saltando alguns degraus, tomado por uma alegria quase infantil. Queria rever sua família. Queria largar a bebida e a depressão. Queria ser alguém melhor. Queria passar uma borracha em seu passado sombrio e construir a partir dali uma vida melhor e luminosa para si, e para aqueles que o cercavam. Terminando de descer a escada, continuou correndo euforicamente de volta para casa.
Esbaforido, em pouco tempo alcançou as ruas do bairro vizinho àquela famigerada ponte. Pensava encontrar algum telefone público e chamar um táxi  ou talvez, um moto-táxi. Queria estar em casa o quanto antes. Sempre correndo em direção à segura claridade dos postes de iluminação pública, acabou descuidando-se. Esqueceu que era madrugada, e que estava em um dos bairros mais perigosos da cidade. Não percebeu a sombra que o observava há alguns momentos, e que se destacou da sombra de uma frondosa árvore assim que ele passou. Seguindo-o.
Finalmente saindo um pouco de seus devaneios, Ricardo ouviu passos rápidos atrás de si e virou-se bruscamente, balançando os braços. Seu perseguidor, um jovem franzino metido em uma blusa com capuz levantado, assustou-se com o gesto. Provavelmente era um viciado querendo dinheiro para comprar drogas. Trazia na mão um revólver e nervosamente se preparava para abordar a vítima quando foi surpreendido.
Achando que Ricardo estava reagindo, o gesto foi instintivo: o dedo do magrelo acionou o gatilho. Um estampido seco. Um homem caindo no chão frio. O assassino revistou a vítima rapidamente, pescou do bolso da jaqueta a carteira e fugiu do local, abandonando Ricardo ali sangrando, sozinho, morrendo. Um buraco considerável no meio do peito.
— Estou morrendo! — balbuciou ele vendo suas mãos empapadas de sangue, e completou com um suspiro quase resignado — Anátema...
Ouvindo o tiro, alguns vizinhos acordaram. Algumas luzes se acenderam nas casas próximas. Pessoas apavoradas cochichavam dentro de casa, procurando o telefone para avisar a polícia, os bombeiros, qualquer um. Ricardo sabia que o socorro viria, disso não tinha dúvidas. Por outro lado, sabia que seria tarde demais. As vistas escureciam. Tossiu sangue. O pulmão ardia em brasa, como se queimado pelo fogo do inferno.
Num flash, viu o rosto de Liane banhado em lágrimas. Queria tê-la amado mais, cuidado mais dela. Divisou também o rosto da filha e lamentou não poder vê-la crescer. Percebeu com tristeza a ironia de tudo: naquela noite, não fora ele quem escolhera a morte. Não; fora a morte que escolhera Ricardo. E ninguém tapeia a morte. Que seja anátema, Ricardo.
Nos últimos segundos que lhe restavam ali naquele chão frio, respirando penosamente, à beira de iniciar sua jornada ao outro mundo, Ricardo ouviu novamente aquilo que julgou ser o pássaro agourento tão pouco usual em sua região. Quase sorriu em meio às lágrimas e ao sangue, morrendo sozinho. Seu último pensamento nesta vida carregou- o aos anos de escola, quando estudava literatura. Um verso de um poema que gostava muito. Como era mesmo? Ah sim, lembrou-se e recitou baixinho enquanto seus olhos pesavam, fechando-se sozinhos:
“E o corvo disse: Nunca mais!”




Fim




Meus queridos, me perdoem o sumiço! Ando meio ocupado ultimamente, e o tempinho que tenho tento dedicar ao livro no qual estou trabalhando, a saga de Sean Ridell, o mesmo Renegado que criou vida neste blog, graças ao incentivo de vocês.
Agradeço a companhia de sempre, espero que tenham gostado do conto. Vou estar meio sumido às vezes, mas sempre lembro de vocês, vou dar um jeito de sempre aparecer para postar algo aqui. Vocês merecem.

Boa semana!

Abraços

Danilo Alex




sexta-feira, 12 de abril de 2013

Anátema - Parte II




O tempo e as circunstâncias o ensinaram a abominar a si próprio daquele modo, e o transformaram naquilo que ele, mais do que nunca, era essa noite: um suicida em potencial. Achava que fazia parte da escória do mundo, e julgava que devia lidar com isso. Devia resolver o problema que ele mesmo representava aos que o cercavam, precisava fazer isso para o bem de todos. Sem mais dúvidas ou procrastinação. O fim tem seus fins.
Enquanto perambulava ao acaso pelas ruas vazias de sua diminuta cidade imersa nas trevas da noite sem lua, enfiando a mão nos bolsos frouxos das calças jeans puídas, Ricardo pôs-se desanimadamente a pensar na vida, da qual estava prestes a dar cabo. Ricardo Lemos tinha trinta e nove anos de idade, e há vinte era funcionário público municipal; trabalhava em escritório, realizando um serviço burocrático repetitivo, nada enriquecedor e, a seu ver, inútil. Recebia ofícios, organizava os cartões de ponto dos colegas. Atendia ao telefone, cujo toque soava no mínimo cinqüenta vezes, todos os dias durante o expediente. Transferia ligações, anotava recados, reclamações e sugestões. Ouvia insultos e tinha de aturar calado o mau humor alheio, sendo obrigado a servir de saco de pancadas verbal para pessoas que nem se davam ao trabalho de lembrar de que ele, por estar trabalhando, talvez merecesse um pouco de respeito. Apenas, talvez, pensava.
Evidentemente sabia que boa parte da culpa era sua, e por isso também se odiava; por ter parado no tempo, estagnado. Devia ter estudado mais, investido em uma faculdade, prestado um concurso para outra área, outra coisa. Quem sabe tentar trabalhar em algo que realmente gostasse, e não somente porque precisava do salário, uma vez que era casado e tinha criança em casa. Liane havia sido desde o início a sua luz no fim do túnel. O que uma mulher como ela vira em um homem como ele? Boa pergunta.
Todos esses pensamentos a rondar sua mente sombria, tudo aquilo parecia ter acontecido com outra pessoa e, mesmo assim, há muito, muito tempo. Sentia estar vivendo um passado alheio. No presente, a única preocupação que o alcançava era saber de que forma iria morrer. Pensou em várias coisas, mas nada lhe agradou. Talvez se atirar na frente de um ônibus ou caminhão? Teve essa idéia quando passou em frente ao mercado municipal e viu um ônibus solitário engolindo os raros passageiros que se aventuravam a esperar o lotação àquela hora. Provavelmente aquele era o último ônibus daquela linha naquela noite, o qual, terminando de despejar seus passageiros, seguiria para a garagem. Ricardo logo descartou essa forma de morrer esmagado sob um veículo tão pesado e grande: não queria ser recolhido numa pá pelos bombeiros.
Quando viu na esquina uma drogaria que funcionava vinte e quatro horas, ele então analisou a hipótese de overdose por remédios. Também não conseguiu se habituar ao pensamento de que envenenaria a si próprio e teria de ficar esperando que isso surtisse efeito. Eliminou mais essa opção da sua “lista” de possibilidades para suicídio. Caminhando mais alguns quarteirões viu ao longe, elegantemente iluminada, a torre do prédio o qual, antigamente, era a estação ferroviária da cidade, onde agora funcionava a sede da prefeitura. Uma edificação imponente, graciosa, restaurada por ser patrimônio e cartão postal da cidade, a qual agora se erguia majestosamente espiando a noite do alto, sua cúpula cinza desafiando o céu escuro, banhada pela luz poderosa de holofotes estrategicamente posicionados, instalados em sua base. A visão de tão impressionante monumento lembrou a Ricardo de que morava em uma cidade erguida sobre um histórico amplamente ferroviário. Muitas linhas de trem cortavam vários bairros e, embora os vagões de passageiros estivessem extintos, os de carga continuavam partindo repletos de soja, por exemplo, rodando sobre os trilhos para inúmeros pontos do país. E contemplar a torre fez Ricardo se lembrar de que havia na cidade uma altíssima ponte por onde a composição quase sempre passava rumo ao seu destino. De vez em quando se tinha notícia de que um ou outro amargurado saltara de lá. Pelo menos não haveria erro. Pelo menos seria uma morte rápida, embora dolorosa.
Antes que perdesse a coragem, Ricardo Lemos decidiu-se. A tal ponte distava um bocado, chegar até ela levaria no mínimo meia hora andando. Mas ele não tinha pressa. Com as mãos nos bolsos, e um peso no coração, começou a solitariamente cumprir seu trajeto mortal. Cada passo o aproximava da morte e a noite ainda não passava de uma criança. Letal criança.

Continua...



quinta-feira, 11 de abril de 2013

Anátema




— Já bebeu demais por hoje, camarada. – declarou secamente o barman, recusando-se a atender ao pedido do freguês, o qual solicitara mais uma garrafa. Naquela noite, seria a oitava a tomar, caso o atendente não intervisse.
Segurando o copo vazio com a mão direita, o homem pousou seus olhos turvos no barman enquanto, com os dedos da mão livre, tamborilava com impaciência sobre o tampo ensebado do balcão.
 — E você, quem é? Minha mãe? – grunhiu com insolência — Quero outra cerveja agora. E bem gelada.
— Vá para casa, Ricardo. É tarde, sua esposa deve estar preocupada. Se não fizer isso por você, faça ao menos por Liane. Ela é uma boa mulher.
O freguês, o qual o barman chamou de Ricardo, deu uma risada metálica que mais parecia um latido, antes de replicar desdenhosamente:
— Ora, vamos, Roger! Te conheço bem, sei que você não é tão altruísta assim. Não é por causa de Liane que você quer que eu vá embora. Diga de uma vez o que quer dizer, e poupe a nós dois desse falso discurso moralista.
O rosto de Roger apresentou uma expressão dura diante dessas palavras, e ele cruzou os braços diante do peito, do mesmo modo que o faria um majestoso chefe índio desses filmes americanos de faroeste.
— Como preferir. Você extrapolou hoje. Sua cota mensal alcançou um valor absurdo. Nesse estabelecimento você não bebe mais nenhuma gota; pelo menos não até que eu veja a cor do dinheiro. Acerte o que me deve, e depois pode tomar quantas cervejas quiser e morrer de uma maldita cirrose. – fazendo uma pausa, Roger deu de ombros — Dane-se! Tanto faz.
Ricardo riu de novo ao dizer:
— Agora sim, estamos sendo sinceros. Roger, meu caro, me faça um grande favor, e vá para o diabo que o carregue, sim? – sua voz estava um pouco engrolada, mas seus reflexos pareciam intactos.
Irritadamente ele se levantou e saiu do bar quase vazio. O vento frio e úmido da noite o atingiu quando ele chegou à rua. Passavam quinze minutos da meia-noite. O céu escuro estava avermelhado, prenunciando chuva durante a madrugada.
 Embora naquele momento Ricardo detestasse o barman, em um ponto tinha que concordar com ele; sua esposa Liane era uma boa pessoa. Ultimamente era ela quem vinha segurando as pontas. Lembrou-se do olhar horrorizado dela quando, dois dias antes, Ricardo lhe dissera que estava desgostoso da vida e desejava morrer.
— Não diga uma coisa dessas nem de brincadeira. – censurou-o a mulher, arregalando os olhos — Os anjos podem ouvir seu pedido e dizer amém!
Ele ria do medo supersticioso da mulher. Que idéia! Em todo caso, Liane era sim, de fato uma boa esposa. Fazia o que podia ao lidar com um marido alcoólatra inveterado, o qual tomava remédios fortíssimos contra a depressão. Além disso, ela cuidava sozinha da filha pequena do casal, bem como se desdobrava no emprego de meio período como secretária, para depois ainda pelejar com as tarefas do lar. Ricardo sabia que não teria o direito de odiá-la caso descobrisse que ela, uma hora ou outra, tinha arranjado um amante. Tinha consciência de que era um esposo ausente e, mesmo àquela hora, vagando pelas ruas ermas da cidade adormecida, banhado pela amarelada e mortiça luz proveniente dos postes, não foi capaz de evitar o mórbido pensamento sobre quem seria o homem a ocupar seu lugar quando ele partisse.
Liane era uma década mais jovem que ele, e uma mulher bonita. Certamente que alguém surgiria para consolá-la. Provavelmente o melhor amigo de Ricardo. Afinal, os maiores canalhas geralmente não são aqueles que estão mais perto? Todavia, o fim estava próximo.
 Naquela noite nublada, Ricardo Lemos, um fracasso em forma de gente, deixaria de existir. O idiota do Roger, proprietário e barman daquele boteco que ele freqüentava levaria um calote dos grandes, porque os mortos não pagam suas dívidas. Por outro lado, Liane estaria livre de um fardo. Sim, era assim que Ricardo se via: como lixo, como peso morto. Tanto fazia se os anjos dissessem ou não amém: ele iria morrer naquela noite. Já se decidira.

Continua...