sábado, 31 de março de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte V

"Através da noite ele cavalga, Em seu cavalo enfurecido feito de aço

Nada pode salvar você agora, Perante o renegado você se ajoelhará"
  (Renegade - Hammerfall)



        
 Noite adentro, na velocidade do raio, Sean e seu cavalo maldito cruzavam a imensidão mortal do deserto. Os animais, fossem eles selvagens ou não, devido sua percepção aguçada inata tem maior sensibilidade em relação ao sobrenatural. Por isso, quando Sean e sua montaria estavam por perto, os seres habitantes do deserto conseguiam captar com intensidade a eletricidade diabólica que flutuava no ar. A passagem do cavaleiro amaldiçoado e seu cavalo antinatural despertava o medo no coração dos animais das imediações, independentemente de seu tamanho ou nível de ferocidade. Sentindo o cheiro de enxofre e a atmosfera de vibrações malignas, e ouvindo o castanholar bestial do negro garanhão vampiresco, todos fugiam em debandada: chacais, leões da montanha, coiotes, abutres, serpentes, aranhas e escorpiões. A natureza demonstrava sua sabedoria milenar relativa à própria sobrevivência, visto que ninguém queria ficar no caminho fatal das crias das trevas. 

Sean vencia a distância com uma espécie de ansiedade lúgubre; faltava agora muito pouco e ele já podia antegozar sua vingança, pela qual trilhara todo aquele árduo caminho de escolhas difíceis e situações sangrentas. O vento trazia aos seus ouvidos as notas alegres de um piano e um banjo, o eco jubiloso de risadas e arrastar de cadeiras, o som áspero de copos espumantes deslizando sobre um balcão polido, assim como o rumorejar de cartas que aterrissavam com suavidade sobre o pano verde de mesas sobre as quais se jogava animadamente o pôquer. Resumidamente, embora faltassem ainda uns quatro quilômetros para chegar, o Renegado escutava claramente a movimentação do saloon Night Train, situado na rua principal de Conquest City, no estado do Kansas, encravado no centro-oeste americano, onde se refugiavam seus alvos. A fria noite de sua vingança era uma sexta-feira entre muitas, considerada comum pela maioria, mas escolhida a dedo por Abigor, já que a colheita de almas durante aquela lua, naquele exato mês, fortalecia imensamente o exército apocalíptico que aguardava nas profundezas espirituais o momento da batalha final contra as hostes celestes. 

Finalmente Sean batizara seu cavalo amaldiçoado. Chamava-o agora de Pandemônio. Por mais estranho que isso possa parecer, o Renegado se afeiçoara ao feérico garanhão de um modo que surpreendeu até ele mesmo. Talvez isso houvesse acontecido porque Pandemônio era sua única companhia durante aquela aventura fantástica, uma saga sombria que não poderia acabar bem; uma fábula em cujo desfecho ele viveria infeliz para sempre. E diante dessa inevitável perspectiva, Pandemônio era sua companhia inseparável, apesar de ter sido concebido não por uma égua, mas por obra do diabo. 

Finalmente alcançou a entrada de Conquest City. Quando o eco dos cascos de Pandemônio soou pela rua principal, o vento estagnou-se subitamente. O tempo pareceu congelado por um instante brevíssimo, e um silêncio sepulcral reinou durante milésimos de segundo, envolvendo aquela cidade que sediaria a vingança de um homem condenado pela crueldade alheia, forçado pelas circunstâncias a se tornar um hospedeiro do puro mal. Os olhos cinzentos e superdesenvolvidos de Sean Ridell descobriram sombras que se destacavam de seu garanhão e se alongavam. A seguir, como se possuíssem vida própria, as sombras espectrais percorriam metodicamente as casas e prédios rústicos de madeira que compunham a cidade adormecida, talvez como na noite em que, inúmeros séculos antes, sob a ordem de Deus, o anjo ceifador visitara no Egito a cidade do Faraó, vasculhando as casas em busca de seus alvos, os primogênitos. Tentáculos de escuridão rumaram para o saloon, prenunciando o fim. 

Só então os corvos alojados nos telhados começaram conjuntamente a emitir seu crocitar macabro, um coro aterrador e agourento. O vento, que parecia ausente, repentinamente soprou com força e o sino da igreja começou a repicar na torre, melancólico, uniforme, sinistro. Ao fundo, num volume bem menos intenso, era possível ouvir o som proveniente do saloon. Vagarosamente, num trote tranqüilo, Sean subiu a rua principal e poeirenta de Conquest City. A precária iluminação pública da época impedia anemicamente que as ruas ficassem totalmente imersas na penumbra. A luz tímida lutava bravamente contra as trevas da noite, lançando reflexos bruxuleantes nas portas e janelas cerradas. Era perto de meia-noite e, fora o pessoal no saloon, a população dormia. Impelido pelo vento, um emaranhado de tumbletweed vinha rolando silenciosamente pelo solo poeirento; passou ao lado de Sean e sumiu na escuridão, subindo a rua com a brisa noturna. Páginas de um jornal velho apodrecido giravam no centro de um redemoinho que dobrava a esquina. Um gato preto cruzou a rua em disparada, indo encarapitar-se agilmente no muro de uma casa, e um cachorro vadio ganiu ao longe, assustado. 

Sempre em seu trote lento, Sean Ridell passou pelo armazém de Conquest City, depois pela funerária, o hotel, a redação do jornal, a loja de armas, a oficina do ferreiro e a pequenina escola. Em seguida vinha o escritório do xerife, a barbearia e finalmente o saloon, localizado bem em frente à sede do telégrafo. Conquest City era uma cidade média, composta por poucas vias. Na rua adjacente, ligada à principal por uma praça arborizada, em cujo centro havia um poço público, estavam situados o Banco de John Baldard, a prefeitura, uma loja de roupas e a casa do médico, que também servia como seu consultório. E na rua seguinte havia a modesta mas bela igreja, o estábulo municipal, a estação de trem, o galpão onde eram armazenados os grãos comprados dos fazendeiros na época da colheita, e a sede da agência de mineração. Se você seguisse por essa rua, ao fim dela ia sair da cidade e, se subisse a colina que existia logo em frente, chegaria ao cemitério, situado no topo da mesma. Nas ruas restantes, havia as casas dos moradores e muitos lotes vagos. Tudo mergulhado na semi-escuridão, embalado pelo som do saloon, o grasnar incessante dos corvos e o triste ecoar do sino eclesial. 

Voltemos agora à rua principal, onde o Renegado finalmente alcançara o saloon Night Train. Amarrados diante do mesmo, havia seis cavalos belos e robustos conquanto sujos, cobertos de lama e aparentemente exaustos. Pressentindo a natureza anormal do cavaleiro e sua montaria que se aproximavam, os seis cavalos bufaram e relincharam nervosamente, raspando asperamente suas patas no chão poeirento, e torcendo violentamente os esguios pescoços, na tentativa de ser libertarem das cordas que os impediam de fugir desesperadamente, conforme lhes ordenavam seus instintos. Com um meio sorriso, Sean apeou de seu próprio animal e afagou-o, dando um tapinha amistoso no pescoço largo, depois alisando a crina sedosa, longa e negra. Não pensou em atar Pandemônio, pois sabia que seu garanhão negro fantasma não iria a lugar algum; aguardaria seu dono, para que, depois de cumprida a missão naquela cidade, galopassem juntos por toda a aflitiva eternidade. Os olhos cinzentos de Sean contemplaram pensativamente a fachada do saloon, decorada com letras douradas e um crânio de boi pendurado logo acima da porta para, segundo a crença popular, afastar a má sorte e os maus espíritos. A música, que em qualquer outra situação seria convidativa e bem vinda, chegava com clareza aos seus ouvidos preternaturais. A claridade procedente do interior do estabelecimento escapava travessamente sob as duplas portinholas vaivém, e desenhava um quadrado de luz amarela na rua obscurecida. Determinadamente Sean Ridell subiu os poucos degraus de madeira na varanda e entrou na casa de entretenimento. 

A princípio, poucas pessoas repararam nele. Aos olhos de muitos, era apenas mais um viajante em busca de um trago para refrescar-se, música para distrair-se, e talvez uma boa companhia feminina com quem pudesse passar a noite. Entretanto, quando ele se dirigiu ao balcão repleto de clientes, algo diferente aconteceu. Um vento sibilante empurrou as duplas portinholas, que protestaram com um rangido doloroso de suas dobradiças. A temperatura do local esfriou repentinamente, trazendo aquela sensação malévola e inexplicável de que algo está muito errado. Velas e lampiões tremeluziram, quase derrotadas pelo sopro do vento intruso e sinistro. O medo subiu pela espinha dos presentes como uma aranha gelada e abominável, assim como se eriçaram os cabelos da nuca dos mais destemidos. A música cessou por um instante e todos os olhares se voltaram automaticamente para a porta. Só então repararam melhor no recém-chegado: um homem de boa aparência, alto e forte, rosto marcante e impassível, de traços firmes como granito; olhos tristes e enigmáticos, cinzentos como um dia nublado. O rosto era parcialmente sombreado pela aba larga e caída de seu chapéu preto amarfanhado. Um lenço preto envolvia seu pescoço taurino e luvas negras, suas mãos grandes. Usava botas de couro marrom de cano longo e esporas escarlates, assim com um sobretudo de couro vermelho-escuro que lhe ia até os pés, fechado até a altura da garganta por botões de cobre. Ao chegar, ele desabotoara o mesmo, deixando à mostra as roupas escuras que usava sob o sobretudo, e um cinturão ajustado ao redor do quadril, de onde pendiam dois coldres com armas de cabos negros ricamente ornados, um de cada lado de sua cintura. 

O velho Larry Parker, ocupado atrás do balcão, estremeceu ao contemplar a figura calamitosa que acabara de adentrar seu recinto. 

- Malditos corvos... – repetiu para si, dessa vez bem baixinho, num sussurro amedrontado. 

Onde estava aquele patife do xerife quando mais se precisava dele? - era o que pensava Larry, prevendo bagunça e prejuízo em seu estabelecimento. Josh Wilkins, o xerife de Conquest City, àquela altura já devia estar ciente da presença dos seis assassinos do Chamas do Inferno na cidade. E se de fato soubesse, o representante da lei jamais seria idiota o bastante para botar o nariz para fora de casa; carregava a estrela de latão no peito, mas não queria morrer, pois, como qualquer cidadão comum, ele tinha uma família que dependia dele. Seria suicídio para Josh pisar no Night Train aquela noite, porque homens da lei muito mais habilidosos do que ele tinham morrido nas mãos daqueles bandidos. 

Tão solenemente quanto se participasse de um velório, Sean Ridell caminhou em direção ao bar, o qual não ficava distante da porta; suas esporas retiniram em contraste com os sinos que ainda tocavam lá fora. Pasmos, os homens que se amontoavam ao redor do balcão deram um jeito de abrir espaço para o forasteiro. 

- Um uísque duplo, por favor. – pediu Sean olhando nos olhos de Larry. 

Parker o serviu de imediato e o fitou com uma mistura de curiosidade e temor. Céus! Que diabo de cheiro era aquele que vinha do estranho? Não era possível! A mente do velho dono do saloon estaria lhe pregando uma peça doentia, ou aquele estrangeiro trazia consigo odor de enxofre? 

O Renegado sorveu avidamente, de um único gole sua bebida e, com um profundo suspiro de satisfação, depositou o copo no balcão. 

- Mais uma dose dupla. – pediu, sedento. 

Larry reencheu o copo, e mais uma vez o conteúdo foi entornado em questão de segundos. Desde que selara o pacto, quase nada nesse mundo afetava Sean. Não podia se embriagar, porque seu corpo, sempre quente como se assolado por uma febre de quarenta e dois graus, não mais sucumbia ao efeito do álcool, não importasse quanto ele bebesse. Fazia parte de sua sina estar sempre sóbrio para se lembrar de cada mínimo detalhe doloroso de sua trajetória. Sua sede implacável também não podia nunca ser saciada, no máximo era minimizada por algum tempo. Abigor era um torturador nato, e tinha um péssimo, sádico senso de humor, pensava Sean. Depois de uma queda de braço com o seu demônio particular, ingerindo três doses de uísque duplo, quatro cervejas, dois chopes e uma garrafa inteira de vinho, Sean finalmente desistiu e pagou a conta. Abigor não permitiria mesmo que ele se aliviasse pelo menor instante que fosse, se afundando na bebida. Continuava sóbrio, sedento e febril. 

Ao colocar o copo no balcão, Sean causou um murmúrio de espanto entre Larry e os demais clientes do bar. Apenas as pessoas que estavam junto ao balcão perceberam o estranho fato: o vidro do copo estava todo chamuscado, com marcas enegrecidas de dedos que pareciam muito mais pertencer a um espírito de fogo do que um ser humano. 

Indiferente à expressão chocada dos homens que fitavam o copo que ele usara, Sean Ridell percorreu o ambiente infecto com seus olhos cinzentos, perscrutadores e sem vida. Aos poucos os presentes iam quase todos se esquecendo dele, o movimento já tinha praticamente voltado ao normal ali, de modo que a música, as risadas e as conversas enchiam o ar novamente. Por isso, quando o Renegado falou, precisou elevar bastante o tom de voz para que fosse ouvido acima de todo aquele barulho: 

- Estou à procura de seis bandidos cujos nomes desconheço, e não faço a menor questão de saber. Tudo o que sei é que são patifes covardes e assassinos, que integram um asqueroso bando chamado de Chamas do Inferno. 

Assim que ele terminou de falar, um silêncio pesado e mortal invadiu novamente o recinto, mas agora a apreensão era palpável, beirava o pânico e a loucura. Três homens de aspecto sombrio e repugnante sentados a uma mesa do canto se ergueram vagarosamente, como zumbis se levantando das tumbas. Os presentes, aterrorizados, agora fugiam em debandada, empurrando mesas e cadeiras. Buscavam refúgio nos cantos do saloon, tentando estar fora da linha de fogo do tiroteio que se iniciaria em poucos instantes. Homens e mulheres gritavam e corriam em todas as direções, esbarrando-se como baratas tontas. Assemelhavam-se a um bando de ratos assustados em fuga no porão de um navio indo a naufrágio. 

Olhando para Sean como se ele fosse um louco, os clientes no bar afastaram-se rapidamente, procurando proteção. De olhos arregalados, Larry Parker fitava Sean Ridell com o coração cheio de pena. Arrependera-se de servir tantas bebidas ao forasteiro, porque ele estava bêbado e agora ia morrer. Parker precisava admitir que parte dele admirava aquele excêntrico rapaz, o qual, depois de desafiar um grupo de assassinos temidos em todo o Oeste, permanecia de pé com toda a calma do mundo, como se soubesse exatamente o que estava fazendo. 

- Pobre tolo... – murmurou Larry, pesaroso. E se abaixou rapidamente atrás do balcão, para escapar dos tiros. 

Sean Ridell, o Renegado infernal, continuava de pé próximo ao balcão, altivo e imóvel como um totem indígena. Seus olhos cinzentos giravam atentamente de um lado para outro do saloon, sempre vigiando o trio de bandidos que agora o encarava friamente. Onde estariam os outros três bandoleiros? Usou seus sentidos diabolicamente amplificados a fim de vasculhar o ambiente, à caça dos demais integrantes do bando. 

- Espero que tenha apreciado seus tragos essa noite, amigo – vociferou um dos assassinos subitamente, sua voz rasgando tenebrosamente o silêncio pesado – Pois acredito que no inferno os drinques servidos sejam diferentes. 

Antes que Sean pudesse localizar os outros miseráveis, algo inesperado aconteceu. Embora nenhum dos três impiedosos tipos tivesse se movido, o cano de uma arma surgiu de trás deles, e foi apoiada no ombro do pistoleiro do meio. O quarto bandido estava escondido atrás dos companheiros o tempo todo, e agora apontava sua arma para o Renegado. Seu movimento ligeiro foi tão surpreendente, que apanhou desprevenido o próprio Sean. A arma que o bandido empunhava não era uma peça qualquer: tratava-se de um poderoso rifle Winchester 73, de longo alcance e poder de fogo devastador, capaz de acertar o alvo a 150 metros de distância sem que o projétil fosse desviado pelo vento. Naquela curta distância que separava os bandidos de seu aparentemente insano desafiante, a bala poderia atravessar o corpo de um homem sem muito esforço. 

Mirando por cima do ombro de seus comparsas, o bandido do Chamas do Inferno não hesitou em apertar o gatilho de sua ferramenta de trabalho. Ao mesmo tempo em que sua ponta flamejava, o Winchester trovejou, lançando sua chuva de chumbo e morte com um zumbido assustador. 

A bala fervente alcançou o tórax de Sean Ridell numa velocidade incalculável, com um impacto capaz de estraçalhar um búfalo. Assistindo seu peito explodir numa nuvem vermelha de sangue e fragmentos de ossos, e com a impressão de que até seu espírito fora trespassado, Ridell arregalou os olhos e emitiu um grunhido de dor. Sentiu como se tivesse sido atropelado pelo estouro de uma boiada. Brutalmente foi projetado de costas contra o balcão, onde ricocheteou. A seguir, ainda ferozmente desequilibrado pelo balaço, com passos rápidos e trôpegos viu-se arremessado contra a porta por um segundo tiro que dilacerou suas costas. A dupla portinhola vaivém cedeu sob o peso de seu corpanzil e se abriu com um rangido; o Renegado, experimentando uma dor inimaginável, sob murmúrios penalizados dos clientes e risadas humilhantes dos inimigos, foi cair na varanda. Desceu rolando pesadamente os degraus de madeira, que ficaram manchados com seu sangue profuso, e estacou no meio da rua. Permaneceu ali, de bruços e imóvel, bem ao lado de seu cavalo.

Danilo Alex

quinta-feira, 29 de março de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte IV

"Ele espreita em terras das sombras, Silencioso, com a arma na mão
Atacando como um réptil, tão feroz
Não há como escapar, Não há tempo para uma última oração
Quando o gatuno se aproxima por trás"

(Renegade - Hammerfall)



Era essa a dolorosa história que diariamente desfilava diante dos olhos cinzentos de Sean Ridell. Uma história pior do que qualquer pesadelo, a qual o acompanharia durante seu período de suplício neste mundo. E depois de ter vivido tanto sofrimento, ter presenciado tanta dor e morte, ter passado por tantos dias sangrentos, quem poderia julgá-lo? Era um homem espiritualmente em frangalhos, que perdera tudo, até sua alma imortal. Um emissário do inferno, um Renegado pertencente às profundezas eternais.

Galopava agora através do deserto aparentemente infinito, rodeado por cactos, animais selvagens e um mar interminável de terra e areia. À leste e ao sul, imensas montanhas vermelhas e rochosas se erguiam contra o céu noturno do deserto, formando um descomunal cinturão de montanhas, passos e canyons que abarcava boa parte do horizonte longínquo. A temperatura gélida e o vento impetuoso estariam congelando qualquer pessoa normal, que com toda certeza morreria de hipotermia. Mas desde o encontro com Abigor, Sean Ridell não era mais um ser humano comum.

A despeito da obscuridade aterradora, seus olhos estavam diferentes, mais potentes; ele conseguia enxergar com inacreditável nitidez o deserto em seus mínimos detalhes. Não precisava da lua ou das estrelas, seus olhos eram capazes de ver na escuridão com a mesma precisão que durante o dia. Não sentia mais tanta fome ou sede, podia permanecer muito tempo sem comer ou beber nada. O frio não o afetava como antes, bem como o calor. E, conforme Abigor explicara, a Morte não tinha permissão para tocá-lo. Fizera o teste: apanhara um escorpião de barriga amarela no deserto e o irritou, até que o mortífero aracnídeo o picou. Assim que o escorpião atingiu sua mão com seu ferrão venenoso, Sean sentou-se em uma pedra no meio deserto e esperou pacientemente, com o sol impiedoso sobre sua cabeça. Ainda podia sentir dor, e ela o angustiou durante horas. O local ferido inchou e a pele escureceu, necrosada. Fora isso, não aconteceu mais nada em seu organismo. Em dado momento, durante a tarde, os corvos levantaram vôo e seguiram em formação rumo a Conquest City. Como já sabemos, estavam indo anunciar a chegada do Renegado maldito que procurava vingança.

Quando começou a escurecer, percebendo que o veneno tinha sido neutralizado de forma preternatural por seu sombrio guardião, Sean Ridell se levantou e olhou a mão ferida. Espantado, notou que não havia mais nem sinal de machucado na mesma, ela estava tão sadia quanto antes. Constrangido, ouviu a risada sarcástica de Abigor em seus ouvidos, a gargalhada fúnebre e grave parecia vir de todos os lados, embora o anjo caído não estivesse visível. Então, com um suspiro conformado, Sean sacou um dos revólveres que Abigor lhe havia dado, e o apontou para o alto. Sem olhar para cima, apertou o gatilho uma única vez. A arma amaldiçoada trovejou pelo deserto, como o brado colérico de mil demônios em ataque. Então, Sean esperou.

Instantes após o disparo do revólver diabólico, alguma coisa caiu do alto e ficou estatelada aos seus pés. Os olhos cinzentos de Sean vislumbraram o abutre sangrando esticado no solo arenoso, morto pelo balaço, as asas tragicamente abertas. O Renegado apanhou então a ave morta e se aproximou de seu cavalo maldito. Com sua proximidade, o enfeitiçado garanhão negro sentiu o cheiro de sangue e ergueu as orelhas, animado. Simplesmente arrepiante a cena que veio a seguir: Sean espremeu a ferida da ave e deixou que as gotas vermelhas e ainda quentes caíssem na boca de sua montaria bestial, que as sorveu com avidez.

Depois de alimentar o cavalo, Sean Ridell montou-o e retomou seu caminho. Não tinha pressa nenhuma, sabia que seus alvos não poderiam escapar dele, não importava o quão longe fossem. O único modo do bando Chamas do Inferno sobreviver à ira de Sean Ridell era se refugiando em uma igreja, ou sendo gloriosamente arrebatado às alturas, em carne e osso, por algum anjo complacente invocado por eles. Ambas as alternativas pareciam improváveis, dada a conduta daquele sexteto maldito. Havia ainda o fato de que os assassinos certamente não pensavam em fugir ou se esconder, pois não temiam nada nem ninguém, e não faziam a menor idéia de quem, ou melhor, do que estava perseguindo seus passos. Pior para eles. Melhor para o Renegado infernal.

 Conforme Abigor predissera, o animal de Sean não se cansava nunca. Já viajara a galope durante um dia inteiro, sem parar, e o garanhão negro não demonstrara o menor sinal de cansaço. As poucas vezes em que o bicho apenas reduziu notoriamente a velocidade indicaram a Sean que era hora de sua macabra refeição. Absorvida a dose diária de sangue, o cavalo recomeçava seu galope fantasmagórico sem que Sean ao menos precisasse tocar as rédeas. Montar aquele cavalo era como cavalgar o vento impetuoso. Durante as tardes, o pelo luzidio, de tão negro, adquiria um tom azulado sob o sol forte que irradiava calor ao deserto, ao mesmo tempo em que cauda e crina esvoaçavam ao vento cáustico. Durante a noite, ele praticamente se tornava invisível, com exceção do par de olhos vermelhos e vampíricos que brilhavam tetricamente em meio às trevas. As patas enormes e peludas atingiam o terreno acidentado com força, quase com raiva, erguendo uma densa nuvem de poeira, produzindo um castanholar lúgubre e irregular que se diferenciava de qualquer animal deste mundo.

Sean já reparara que as ferraduras deixavam marcas ferventes e enegrecidas no solo, como se algo sobrenaturalmente quente houvesse pisado ali. Além do que, também ficavam vestígios amarelados de enxofre nos sulcos deixados pelas ferraduras do sombrio animal.  E Sean Ridell viajava sem pensar em pausa para descanso. A noite não lhe era ameaçadora, muito pelo contrário. As sombras o protegiam e pareciam fortalecer seu dantesco garanhão. Alguns dias atrás era um pacato cidadão, esposo e pai dedicado. Agora era um cavaleiro desalmado imortal, sem nada a perder, movido apenas pelo desejo de vingança. Não podia nem mesmo morrer, já que estava unido a um demônio por um pacto de sangue que condenara sua alma, a única coisa de valor que ainda possuía. Mas não se arrependia. Não. Absolutamente. Se, como Abigor dissera, Deus o abandonara, ele não hesitara em devolver na mesma moeda, voltando-Lhe as costas.

Ainda naquela noite, corrompendo qualquer resquício de humanidade que houvesse em si, Sean Ridell quebraria a Lei Sagrada e mataria o seu próximo. Repetiria o crime de Caim e, pior, se comprazeria com isso. Já recebera o seu castigo: as portas do Paraíso estavam cerradas para ele por todo o sempre desde o momento em que empunhou aquela pena de corvo para assinar o contrato diabólico com seu próprio sangue. Profanação! Heresia! Sacrilégio! Cometera o pior dos pecados, pois sangue era vida, e Sean ofertara a sua ao Diabo, recusando deliberadamente qualquer esperança de salvação e abraçando o tormento eterno, exatamente como Judas. Barganhara sua alma.

Embora a intenção assassina de Sean não fosse nem um pouco altruísta, ele acreditava que alguém se favoreceria, ainda que indiretamente, com sua vingança. Afinal, aqueles malditos precisavam ser detidos, e a justiça humana não era capaz disso. Muitos xerifes e delegados honestos, tentando desempenhar essa tarefa, haviam partido desse mundo, deixando suas famílias desamparadas e o dever por cumprir. Quem sabe a reciprocidade de Sean ao mal que lhe haviam feito fosse um favor a todos os cidadãos de bem. Quantas vidas seriam salvas quando ele varresse aquela escória desse mundo? Quantos roubos, estupros e homicídios seriam evitados? Quanto sangue inocente seria poupado? Talvez a condenação da alma de um homem servisse como oblação pelo bem de tantos outros. No fim das contas, podia ser que todo aquele mal trouxesse algum benefício.

Estava justamente no meio dessas divagações quando, do alto de seu cavalo, avistou ao longe uma caravana de viajantes, composta por quatro carroções. Os veículos estavam cercados pelo negrume da noite e um numeroso bando de malfeitores. Mesmo àquela distância, com seus poderes sobrenaturais Sean Ridell pode sentir a maldade no coração dos patifes e farejar suas almas. E elas fediam a podridão.

Os pensamentos daqueles homens eram os piores. Sean foi alvejado por um instante de dúvida e ponderou. Se não interferisse imediatamente, haveria mais banhos de sangue. Mulheres seriam violentadas diante de suas crianças e maridos, e depois elas seriam obrigadas a assistir enquanto aqueles miseráveis matavam seus entes queridos.

Se Sean decidisse simplesmente virar a face e seguir seu caminho, viajantes inocentes, pessoas honestas e decentes teriam suas vidas estraçalhadas nas mãos daqueles tipos que já deviam ter ido para o inferno há muito tempo. Mas aquilo realmente competia a ele? Pensou durante mais alguns segundos e o espocar de tiros o arrancou de sua reflexão. Não pudera salvar sua família, mas tinha a chance de salvar mais de uma ali. Os viajantes poderiam morrer na linha de fogo. Sean, não. Era isso, lutaria. Usaria fogo contra fogo, reverteria o inferno em suas veias contra aqueles diabos de carne e osso. Partiu num galope velocíssimo em socorro daquelas pobres almas que não resistiriam mais muito tempo ao cerco dos bandoleiros; a passagem de seu cavalo produziu chispas.

Mesmo na escuridão, pode contar quinze bandidos disparando contra a caravana, enquanto os viajantes se encolhiam dentro dos carroções e alguns respondiam aos tiros da melhor forma que podiam, expondo-se o mínimo possível. Os facínoras entraram em pânico quando um garanhão negro como  o carvão surgiu das sombras subitamente e atropelou meia dúzia deles, esmagando ossos e cauterizando peles com suas ferraduras escaldantes. Tentaram disparar contra ele, mas o bicho desapareceu como fumaça, bem diante de seus olhos. E então, um vulto apocalíptico aproximou-se deles.

- Essa é a noite do Juízo Final para vocês, abutres. – rosnou uma voz amedrontadora no seio da escuridão.

- Mal... maldição! – gaguejou um dos pistoleiros – É o Demônio! Sabia que uma hora ele vinha nos buscar.

 Os pistoleiros são homens extremamente supersticiosos e, embora não soubessem que naquela noite havia realmente motivos para temer, o horror começou a se alastrar entre os que sobreviveram à investida daquele cavalo demoníaco.

- Demônio ou não – bradou o que parecia ser o líder, tentando apaziguar os ânimos – Vamos dar a ele as nossas boas vindas, rapazes!

Quando inúmeros revólveres começaram a disparar em sua direção, nem mesmo Sean Ridell se reconheceu. Guiado por mãos invisíveis, esquivou-se das balas como se elas fossem mosquitos e viessem com a lentidão de uma lesma. Nenhum projétil sequer roçou sua carne. Sean sentiu cheiro de enxofre e um vento frio gelou seus ossos. A presença malévola de Abigor se manifestou em sua invisibilidade, assumindo as rédeas da alma de seu protegido.

- Vamos, Renegado, agora mostre a eles do que somos capazes. – sussurrou o mensageiro do inferno junto ao ouvido direito de Sean.

Atendendo a ordem do sombrio mestre, como se tivessem vida própria, as mãos de Sean Ridell sacaram as armas com uma velocidade alucinante. Empunhou os revólveres com determinação: era um par de Colts calibre 45 pretos e foscos. Os opacos canos mortíferos estavam marcados com inscrições infernais e os cabos eram feitos de chifre negro, provavelmente de algum animal caprino. Os dedos de Sean acionaram os gatilhos com a velocidade da luz e a precisão do ataque do falcão. O rugido das armas era pavoroso, parecia uma sinfonia da morte; uma mistura de uivos das almas condenadas com a risada maligna de mil anjos caídos torturando essas mesmas almas infelizes. Um turbilhão de fogo e chumbo emergiu daquelas bocas letais, e Sean perdeu a conta de quantas vezes ele disparou. A única coisa que soube é que tudo se passou em muito pouco tempo, e que quando parou de pressionar os gatilhos, não havia nenhum daqueles bandidos de pé mais.

 Enquanto o vento assobiava espectralmente, arranhando o silêncio mortal que se seguiu à batalha, Sean se pôs atentamente à escuta. Não ouviu mais a respiração abominável dos patifes e nem o pulsar de seus corações imundos. Tampouco foi capaz de captar a presença de suas almas malévolas; provavelmente Abigor já as levara consigo. Uma poça de sangue quente lavava o deserto e o garanhão negro imediatamente se adiantou para lambê-la.

Sean aproximou o cano das armas fumegantes de seu nariz e aspirou: elas tinham cheiro de morte, de metal fundido no inferno. Ao contrário do que pensava, não achou o odor repugnante. Tinha que ter cuidado, pois aquilo parecia viciante, exatamente como o aroma do ópio. Devolveu as armas aos coldres que trazia na cintura, apoiou o pé no estribo e voou para o alto de seu cavalo medonho. Então, sob o olhar atônito dos viajantes que espiavam emudecidos pelas frestas das lonas e do alto dos carroções, Sean Ridell sorriu, levou dois dedos à aba do chapéu à guisa de cumprimento e, galopando, desapareceu na escuridão. Deixando para trás uma pilha de corpos que serviriam de alimento para coiotes, chacais e abutres, levou consigo o inferno que trouxera aos malfeitores, o mesmo inferno que agora o seguia por toda parte. 


Danilo Alex

quarta-feira, 28 de março de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte III

"Renegado, renegado
Cometeu o pior dos pecados
Renegado, renegado
Desta vez o gatuno irá vencer"


(Renegade - Hammerfall)



Sean temeu perder de vez sua sanidade. Embrenhou-se no deserto imenso e ficou perdido, vagando, tentando inutilmente fugir de seu próprio desespero. Lágrimas ardentes queimavam seus olhos cinzentos, que já se encontravam vermelhos e irritados. O coração mal pulsava e a alma destroçada gritava de agonia em seu interior. Todo o seu mundo, arduamente construído com muito suor e dedicação, viera abaixo em pouquíssimo tempo, transformando-o em um ser corroído pela angústia mortal, assim como as velas que queimam nos altares das igrejas são consumidas pela chama.

O sol abrasador do deserto não se compadeceu de sua dor e o puniu com seus raios mortais, tostando de maneira inclemente sua pele branca. De tanto chorar e suar, Sean começou a se desidratar rapidamente. Seus lábios se ressecaram e sua língua, áspera e seca como uma lixa, colava-se dolorosamente ao céu da boca. Depois de três dias no deserto, enfrentando o calor infernal e o frio insuportável noturno, sofrendo privação de água e comida, seu cavalo, que já estava demasiadamente exausto e ferido, acabou morrendo na imensidão de areia vermelha, deixando Sean sozinho e perdido.

Já que negaram a ele qualquer chance de felicidade, ele perdeu toda e qualquer vontade de viver. Simplesmente desistiu. Agachou-se junto de seu cavalo morto e retirou dele a corda que servia como rédea. Depois se ergueu e olhou para uma imensa árvore desfolhada a alguns metros dele. A árvore estava seca, mas seu tronco era grosso e seus galhos, que pareciam fantasmagóricos braços retorcidos apontados para o céu, eram fortes o suficiente para suportar o peso de seu corpo.

 Vertendo o que ainda restava de lágrimas em seus olhos, aproximou-se silenciosamente da fatídica árvore. Escalou-a até que ficasse a uma altura boa do chão. Depois sentou-se sobre um galho e, com firmeza e habilidade, amarrou uma ponta da corda ao galho mais grosso que encontrou. A seguir, com as mãos tremendo um pouco, começou a tecer o laço que ia envolver seu pescoço. Entretido nessa funesta tarefa, não percebeu que a temperatura variava consideravelmente. Um inexplicável vento frio afugentou o calor opressivo por instantes e, para aumento da aflição de Sean, uma súbita revoada de corvos aninhou-se na mesma árvore onde ele se achava pronto para dar cabo da própria existência.

Sean Ridell, tentando ignorar o bando de gralhas barulhentas que viera incomodá-lo em seus últimos momentos de vida, passou o laço pela cabeça e o ajustou firmemente ao redor do pescoço. Respirou fundo e olhou para baixo, tentando não pensar em nada. Decidira que não queria mais viver nesse mundo sem sua mulher e filho. Era apenas um rapaz da Costa Leste, experiente somente na vida nas cidades grandes, tarimbado nos assuntos relativos às comunidades ditas civilizadas. Apesar do infinito desejo de vingança, jamais soubera disparar sequer um tiro, seria uma presa fácil nas mãos daqueles homens que ganhavam a vida com armas em punho. O incêndio destruíra sua casa e o pouco dinheiro que tinha no banco não era o bastante para recomeçar a vida, tampouco servia para contratar um pistoleiro que desse fim aos malditos assassinos de seu empregado e sua família. Então, sentindo-se inútil, quis morrer. Desistir de tudo no meio do deserto árido como sua alma, tendo apenas o sol e os corvos como testemunhas. As gralhas, pousadas nos galhos, agitavam suas asas negras e grasnavam abrindo bastante o bico, como se empolgados pela iminência de uma morte.

Quando estava prestes a soltar o peso do corpo e balançar-se pendurado pelo pescoço até quebrá-lo, Sean ouviu uma voz que o fez estremecer:

- Essa não é uma boa idéia, garoto.

Sean olhou espantado na direção em que viera voz e só então se deu conta que havia um homem ali, a poucos passos dele, parado à sombra de um cacto. Era um sujeito muito alto, tenebrosamente magro, metido em roupas escuras e envolto em um longo negro sobretudo de couro, de estilo indígena. Usava botas pretas de cano longo, tinha um lenço vermelho cobrindo-lhe o queixo, a boca e o nariz, à maneira dos cowboys que queriam se proteger da poeira do deserto; de modo que apenas seus olhos, malévolos e brilhantes como diamantes, eram visíveis sob a aba caída de seu chapéu puído de couro preto. Luvas negras, próprias para cavalgar, ocultavam suas mãos. Também era possível ver que o homem tinha cabelos longos e escuros que saiam de seu chapéu, se derramando numa cascata encaracolada pela nuca. Havia um corvo empoleirado em seu largo ombro direito.

- Quem é você? O que está fazendo aqui? – indagou Sean, temeroso.

- Meu nome é Abigor, e eu habito essa região. – disse o estranho funestamente, sua voz profunda soando abafada pelo lenço no rosto, mas ainda assim capaz de fazer gelar os mais bravos e estremecer os mortos. Sua voz era grave, cavernosa, assustadora. Possuía um timbre definitivamente espectral. A aparição de Abigor causou arrepios no quase jovem suicida.

- Como é que você chegou sem que eu visse ou escutasse? – a Sean, aquilo não parecia certo. Sentia uma onda desagradável de medo crescer em seu âmago.

Abigor soltou uma gargalhada metálica e, com um gesto amplo com as mãos, mostrou o deserto antes de dizer:

- Esse é o quintal da minha casa, filho. Meu lar, meu habitat. Posso me mover por ele sem ser notado, se assim eu desejar.

- Vá embora, preciso fazer algo aqui e você está me atrapalhando. – rosnou Sean, tentando ser o mais hostil o possível.

- Você não quer realmente se matar, Sean. – Abigor falou com a naturalidade de quem conhece alguém há tempos. – Sabe que não.

O queixo de Sean caiu e ele apenas conseguiu balbuciar:

- Como? Como você sabe meu nome?

Agindo como se não tivesse ouvido a pergunta, Abigor prosseguiu com a mesma infalível tranqüilidade:

- Embora a corda seja confiável, o nó que você fez não é. Ele não resistiria quando você tentasse se enforcar, e você cairia, talvez frustrado, talvez aliviado. Estou mais inclinado a acreditar na segunda opção.

Esboçando uma careta de raiva, Sean apontou o dedo em riste para o sombrio recém-chegado, rugindo:

- Como pode dizer que meu nó foi ruim, se quando o trancei você não estava aqui? Tenho certeza que não estava, pois levantei a cabeça e olhei ao redor antes de atar as pontas da corda.

- O fato de você não me ver quando olhou, não significa que eu já não estivesse bem aqui, caro Sean. – rebateu Abigor com uma risadinha enigmática e irônica, que fez o sangue gelar nas veias do jovem Ridell. Antes que seu interlocutor pudesse digerir a informação, Abigor continuou, com sua voz cavernosa e perturbadora:

- Ambos sabemos que você poderia ter feito um nó bem melhor, porque seu pai foi um homem do mar, e, quando você tinha doze anos, ele te ensinou pelo menos quinze tipos diferentes de nós, os quais são praticamente impossíveis de desatar. Quando você amarrou as pontas, estava conscientemente determinado a tirar a própria vida, mas seu subconsciente não tinha a mesma certeza; por isso, sem perceber, você fez o laço de modo que houvesse uma chance de escapar dessa aventura com vida.

Os olhos brilhantes e malévolos de Abigor, semelhantes aos olhos do corvo em seu ombro, fixaram-se desdenhosamente por um instante no estupefato Sean. Em seguida, o estranho homem abriu a boca e continuou seu discurso com sua medonha voz trovejante:

- Você sabe que não quer morrer, Sean Ridell. Não agora. Não antes do que precisa ser feito. Seis homens devem morrer antes que chegue a sua vez, não é assim?

Agora a expressão de Sean não era mais de medo ou perplexidade, mas de sincera curiosidade:

- Você não é humano, é?

- Não, não sou humano. – disse Abigor, divertindo-se com a pergunta – E essa não é minha verdadeira forma. Se eu aparecesse a você em minha aparência original, você fugiria correndo como um coelho assustado.

- Você é um anjo?

- Digamos que já fui um, há muito tempo. – respondeu Abigor depois de refletir um pouco.

- Um anjo de Deus? – mal fez a pergunta, Sean se arrependeu.

A transformação em Abigor foi horripilante. Ao ouvir o Nome Sagrado, ele rugiu como um tigre enraivecido e agitou as mãos de modo pavoroso, os punhos macabramente cerrados. Dando dois passos em direção a Sean, que ainda se achava sentado no galho da árvore, foi a vez de Abigor apontar o dedo em riste e rosnar:

- Nunca mais repita esse nome em minha presença! E saiba que Deus não tem nada a ver com isso. Ele não se importa com sua dor, nem com a de qualquer outro humano.

De onde estava, Sean olhava para baixo e fitava Abigor sem piscar, quase hipnoticamente. O sol a pino produzia sombras infindas em qualquer coisa que estivesse de pé naquele deserto escaldante. Enquanto Abigor estava parado perto do cacto, sua sombra mesclava-se à da planta. Entretanto, quando ele caminhou em direção a Sean, sua sombra destacou-se da do cacto e acompanhou-o, revelando a verdadeira natureza de seu dono. A silhueta negra projetada no chão árido, que era idêntica a Abigor, mostrava uma figura alta, magra e alada, embora suas duas asas estivessem quebradas e inclinadas para baixo.

Fascinado, esquecendo-se da corda e de seu intento suicida, o rapaz desceu da árvore e postou-se diante da criatura quase humana parada diante de si. Imediatamente sentiu o cheiro ardente de enxofre e percebeu as emanações malignas que vinham do ser, bem como o ar gélido antinatural, sobretudo naquele lugar cujo calor era infernal.

Fingindo não notar o interesse quase infantil de Sean, Abigor prosseguiu:

- Trabalho para outro chefe, um que verdadeiramente se importa e se compadece da humanidade. Um injustiçado, assim como você. Desde sempre temos observado você, Sean Ridell. Sabemos que é um sujeito decente. E vimos o que aconteceu com sua família recentemente. Saiba que seu Deus não estava lá. Mas nós estávamos. Nós vimos o medo nos olhos de Kate e de James. Testemunhamos a bravura e a morte de Berthan, que enfrentou sozinho seis assassinos profissionais para tentar defender sua família. Mortos. Todos eles. Partiram desse mundo precocemente, em meio a um grande sofrimento. Vimos suas almas tomadas por confusão, tentando achar seu caminho depois de deixar os corpos. E você ficou aqui, para carregar o fardo da culpa pelo resto de sua vida. Essa é a recompensa que você merece por ter sido bom todos esses anos?

Vendo Sean ranger os dentes e cerrar os punhos com uma brasa de ódio começando a surgir no fundo de seus olhos cinzentos, Abigor sorriu, satisfeito. E deu continuidade ao seu diabólico discurso:

- Aqueles seis homens devem pagar pela dor que te causaram, Sean. E meu chefe quer que sua família seja vingada. Sua justiça, se assim concordar, pode vir dos abismos ardentes. Posso ajudar você a ter o que deseja, sua sede de vingança parece justa para mim.

- Me ajudar? Como? – o mensageiro infernal fazia jus à fama de que a oratória do diabo é impecável, irresistível às almas desesperadas.

- Muito simples, caro Sean. Você, sendo um rapaz bem educado, habituado a ambientes civilizados, não está acostumado à selvageria do Oeste. E não conseguiria enfrentar os seis assassinos de revólver em punho, já que nunca lidou com armas. Posso tornar você invencível. Vai ter o prazer de enviá-los pessoalmente ao meu senhor.

- Por que você me ajudaria? Eu não tenho dinheiro para o pagamento. – disse Sean, desconfiado.

- Mas tem algo muito mais valioso, Sean Ridell – falou Abigor sombriamente, com um brilho satânico nos olhos negros e inumanos – Você pode oferecer sua alma.

- Minha alma? – repetiu Sean, estremecendo.

- Sim, sua alma. Só precisa assinar um pacto comigo, e providenciarei um cavalo incansável para você, bem como armas que nunca precisarão ser recarregadas. Sem mencionar que, quando você disparar, jamais errará o alvo, e nenhum homem na Terra poderá se mover ou atirar tão rápido quanto você. Parece bom?

- Não sei, nunca antes pensei em negociar minha alma...

- E para que você vai querer uma alma torturada como essa? Manchada de culpa, de sangue inocente da sua família, embebida no líquido inflamável que é o anseio por vingança? Ela será mais útil para mim do que para ti. Não seja ridículo, Sean. Ainda preso a velhos conceitos cristãos? Ainda fiel ao Deus que esqueceu você?

- Minha alma... – balbuciou ele, verdadeiramente em dúvida.

- Sim. Sua vingança garantida com sua alma angustiada como paga. Isso, ou pode seguir em frente com seu enforcamento, depois que refizer o nó e torná-lo decente. Vamos lá, quero assistir a morte de mais um covarde. Preciso avisá-lo que no inferno os suicidas não tem nenhuma utilidade; são arremessados em um abismo sem fim, onde permanecem em queda por toda a eternidade. Realmente triste ser alguém em quem nem o próprio Diabo tem interesse, não concorda?

- Está certo, vamos fazer isso. – decidiu Sean Ridell friamente.  

Com uma abjeta risada vitoriosa, imediatamente Abigor abriu o sobretudo e, de dentro dele, retirou um velho papiro amarelado, todo escrito em vermelho, com símbolos e caracteres estranhos. Desenrolou o papiro sem pressa. Depois, do corvo pousado em seu ombro, extraiu uma pena negra como ébano. Guardando a pluma no bolso por um instante, sacou um punhal cuja lâmina curva era cheia de inscrições místicas, e o cabo vermelho era adornado com figuras horripilantes.

- Estenda a mão. – ordenou a Sean.

Quando o rapaz obedeceu, fez um corte rápido na palma e o sangue vermelho escorreu, mas, antes que pingasse no chão, Abigor fez com que as gotas caíssem no documento diabólico. Assim que uma quantidade satisfatória manchou o papel amarelado, o anjo caído guardou o punhal e estendeu a pena do corvo para Sean:

- Assine no fim da folha usando seu sangue como tinta.

Quando Sean Ridell assinou o documento maldito, o vento quente do deserto gemeu em agonia, como se a própria natureza lamentasse a perda de mais uma alma humana.

- Está feito. – disse Abigor, agora sem esconder sua satisfação – Ali, atrás daquele rochedo encontrará um cavalo negro já selado e as armas das quais lhe falei. Não tente me ludibriar, Sean; este pacto é inquebrável enquanto eu tiver posse desse contrato. Para o seu próprio bem, fique longe de igrejas e locais consagrados; evitará muita dor se seguir este conselho. Tudo o que tem a fazer é montar seu cavalo e cavalgar. O animal sabe onde estão os assassinos de sua família, e o levará até eles. A ração do seu cavalo é um pouco, digamos, diferente: alimente-o com sangue uma vez por dia. Pode ser o seu, ou o de algum animal que encontrar durante a viagem. A partir de agora, você é meu servo, Ridell. Permanecerá na Terra enquanto eu precisar de você; eu determinarei seu tempo de vida. Quando chegar a hora, mandarei buscá-lo. Agora vai.

Sean foi buscar o cavalo: era negro como a pena do corvo com que assinara o acordo; seus olhos eram vermelhos e injetados, malignos e inquietos. Tratava-se de um animal grande e forte, de musculosa compleição, patas grandes e peludas, e crinas e cauda longas, esvoaçantes. Do alto de seu cavalo, o homem olhou uma vez mais para a figura apocalíptica de Abigor a fitá-lo.

- Vai, meu Renegado, e espalha o terror sobre a face da Terra. - bradou o anjo caído de modo ensandecido - Segue o caminho da tua vingança e, em meu nome, regue a terra com sangue maculado. Ceife almas para o meu mestre, que agora também é vosso! Vai!

O cavalo amaldiçoado de Sean empinou-se sobre as patas traseiras e relinchou de modo demoníaco. Em seguida, o rapaz girou o animal, que automaticamente escolheu uma direção e se pôs a galopar furiosamente, veloz como vento. Enquanto se afastava do local maldito, Sean percebeu que a revoada de corvos abandonara a árvore onde ele quase se enforcara. Uma nuvem de asas negras e ruidosas agora o acompanhava do alto. Envolto pela atmosfera de poeira que o galope erguia, e suando sob o sol inclemente da tarde desértica, durante muito tempo Sean Ridell ainda ouviu as risadas metálicas e arrepiantes de Abigor, até que elas se perdessem na distância.

Danilo Alex

terça-feira, 27 de março de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte II

"Veja, o criminoso está sozinho sob o sol ardente
Os desertos hostis agora são seu lar
Não há sinal de vitória, Ele perdeu sua liberdade
E a única mulher que amou"

(Renegade - Hammerfall)


Ao cair da noite seis cavaleiros adentraram Conquest City ruidosamente. O tropel das patas mesclava-se à respiração resfolegante dos animais suados e cobertos de lama, provavelmente do rio Greymer, que não ficava distante da cidade. Os homens sobre as selas pareciam tão ou mais cansados que suas montarias, o que significava que haviam viajado bastante até ali. Conduziram seus cavalos num trote tranquilo pela rua principal, as ferraduras afundando constantemente na terra fofa. Depois de tantos quilômetros, suas montarias mereciam algum descanso.
Desse modo, os seis viajantes detiveram-se diante do saloon Night Train e desmontaram. Amarraram seus animais na grade de madeira diante da varanda do estabelecimento, e entraram para tomar um trago primeiro, para depois irem registrar-se naquela espelunca que os habitantes da cidade chamavam de hotel. Antes que entrassem, um dos seis pensou ter ouvido o crocitar de um corvo dentro da noite, em algum lugar acima deles, e estremeceu. Assim como o velho Larry, o viajante também acreditava que corvos eram aves diabólicas. Foi subitamente assolado por um mau pressentimento, mas o mesmo durou apenas um instante. A seguir, deu de ombros e, girando nos calcanhares, acompanhou seus amigos.
 Quando empurraram as duplas portinholas vaivém, a música cessou abruptamente e o riso morreu nos lábios dos presentes. Todos os olhares convergiram para a entrada do saloon. Mesmo nunca antes tendo pisado em Conquest City, os seis recém-chegados foram imediatamente reconhecidos.
Isto se deu, porque seus rostos estavam estampados em cartazes de foragidos da lei em quase todas as cidades da região. Eram malfeitores da pior espécie, procurados em metade dos estados do país, por acusações que iam desde roubo de gado até estupro e homicídios. Não havia em todo o Oeste um só xerife, um só delegado federal que não soubesse quem eram aqueles seis, e o que eles eram capazes de fazer. Cada representante da lei daquelas bandas almejava capturar aqueles bandidos, mas todos os que tentaram estavam agora prestando contas diante do Altíssimo, talvez antes do planejado. A velocidade dos facínoras ao gatilho parecia muito acima do natural; um presente sombrio do diabo aos seus embaixadores na Terra.
Portanto, como ninguém ali queria morrer, os músicos voltaram a trabalhar e o barman, que já conhecemos porque era o velho Larry, proprietário do saloon, tratou de apressar-se em servir os perigosos novos clientes. Acreditava que aqueles pistoleiros, se fossem bem atendidos, talvez não causassem nenhum problema.
- Sabia que boa coisa não vinha por aí... – rosnou baixinho Larry para si mesmo, enquanto tentava servir os bandidos sem que suas mãos tremessem tanto – Malditos corvos!
Da mesma forma, tentando disfarçar a repugnância que sentiam quando tocadas por aqueles homens, duas coristas resignadas, acompanhando dois daqueles patifes, subiram a velha escada de madeira em direção aos reservados, os degraus rangendo alto quando eles passavam. Os outros permaneceram no andar de baixo com o restante dos clientes, jogando, apreciando a música alegre do piano e do banjo, e se embebedando.
Lá fora a noite avançava inexoravelmente. O vento uivava sinistramente pelas ruas ermas, batendo janelas e sussurrando promessas de morte. Os corvos grasnavam com insistência, como o grito pavoroso da banshee. O destino era selado, e a morte galopava através das trevas.

Não muito distante de Conquest City, um homem cruzava as planícies veloz e obstinadamente inclinado sobre a sela de seu garanhão incansável, negro como a noite que o cercava. Vencia a distância impiedosa, sem aparentemente se importar com o frio da noite desértica ou o manto espesso da escuridão que teimava em envolvê-lo. Nada disso o atrapalhava, nada disso o importava. Na verdade, aprendera a gostar da noite.  
Enquanto outros viajantes talvez estivessem acampados no deserto àquela hora, acomodados ao redor de uma fogueira, dormindo com um olho aberto e um fechado para se prevenir contra ataques de coiotes, bandidos do deserto e índios, ele apenas cavalgava. Aproveitava a noite sem lua e de poucas estrelas para alcançar logo seu destino. Os perigos da noite no deserto não o amedrontavam.
 Na verdade, ultimamente pouca coisa nesse mundo podia assustá-lo, ou mesmo feri-lo. Um Renegado. Era isso o que se tornara. Sem família, sem amigos, sem objetivos na vida. Um espectro vivo, preso dolorosamente ao passado, consumido por dor e ódio com apenas trinta anos de idade. No fundo de seus olhos opacos e cinzentos desenrolava-se uma história impressa em seu ser, registrada para sempre em sua memória devido seu caráter pungente e desesperador. Uma história que o torturava a todo instante, sob a forma de imagens que teimosamente dançavam diante de seus olhos, para que ele jamais esquecesse o que fora tirado dele. Uma história semelhante a um pesadelo, que o transformou no que era agora.
Poucas semanas antes, Sean Ridell era um homem casado e feliz. Aos trinta anos de idade, tinha tudo o que poderia desejar na vida: uma esposa linda, dedicada e virtuosa, um filho pequeno e adorável, que era a cara do pai; herdara, inclusive, os mesmos olhos sérios e cinzentos, uma propriedade muito bem situada, a qual gerava lucros consideráveis. Seu rancho, chamado “Ridell’s Paradise”, ficava localizado no norte de Kansas, próximo a uma cidade chamada Meridian.
Sean se casara havia dois anos e sua esposa acabara de dar à luz ao pequeno James quando decidiram se mudar para o Oeste. Eram de uma cidade não muito distante de Nova Iorque, no Nordeste dos Estados Unidos, e Sean, recebendo uma considerável herança de família decidiu arriscar, investindo em um pedaço de terra no lendário Oeste americano. Dizia-se que ali era a terra da oportunidade, da prosperidade. Uma região bravia, é verdade, repleta de índios ferozes e bandidos impiedosos. Por outro lado, era a mãe dos filhos em ascensão, uma das grandes fontes de riqueza.
Mudaram-se então, Sean sendo apoiado por sua bela esposa Kate, agora a senhora Ridell. Sean nunca em sua vida amara alguém como amava a Kate Ridell. Com certeza namorara antes dela, e naturalmente nutrira sentimentos por outras mulheres, mas Kate era diferente. Ela desde o primeiro minuto se mostrou a mulher por quem Sean esperara todos os anos. A única mulher que amou na vida. Companheira, decidida, carinhosa, sincera. Agradecia todos os dias aos Céus por tê-la ao lado, por ter conseguido conquistar seu coração. E pela benção que era o seu pequeno James, que mal completara um ano.
Mas o destino por vezes nos prega peças um tanto quanto mortais...
Certa vez, quando havia pouco tempo que os Ridell tinham se mudado para o “Ridell’s Paradise”, Sean precisou ir à cidade, vender alguns de seus produtos, comprar suprimentos e ver se conseguia contratar alguns empregados, porque até agora só possuía um. Deu um beijo na esposa, outro no filho e prometeu que voltaria em breve, antes de o sol se por. Faltavam duas horas para o anoitecer quando partiu, deixando em casa sua esposa e seu filho sob os cuidados do único empregado que pudera contratar até aquele momento.
Selou seu cavalo e seguiu a galope, para que fosse possível estar de volta o quanto antes. Na cidade, enquanto entabulava conversa com o dono do armazém para se inteirar dos acontecimentos já que era novo por ali, soube de uma gangue de bandidos do deserto que estava rondando a área e preocupando as autoridades, não apenas as de Meridian, mas de todo o Kansas. Seis elementos perigosíssimos que roubavam gado, assaltavam ranchos, violavam mulheres, matavam famílias inteiras e depois ateavam fogo em todo o local; essa era a marca do temível bando incendiário conhecido como Chamas do Inferno. Ouvindo isso, Sean Ridell teve um horrível pressentimento. Sentindo o pulso acelerar violentamente, perguntou o último paradeiro da corja. Quando o dono do estabelecimento começou a dizer que os patifes tinham sido vistos a poucas milhas a leste da cidade, Ridell soltou um grito sufocado de horror e deixou cair os embrulhos que tinha nas mãos. Chocado, sem dizer palavra, voltou as costas para seu interlocutor e saiu correndo porta afora. Saltou sobre seu cavalo e o esporeou como um louco.
Castigando seu animal, cumpriu em vinte minutos a distância que normalmente demorava quarenta. Respirava rápido, apavorado, o coração martelando no peito. A noite descia seu manto negro e fúnebre sobre a terra quando ele fez uma curva e ao longe avistou sua casa de dois andares no rancho. Lá, o céu estava tingido de laranja e vermelho, mas as cores não tinham nada a ver com o crepúsculo. Os matizes derivavam de um incêndio pavoroso que devorava a casa dos Ridell. Controlando-se para não perder a sanidade nem a consciência, Sean fustigou ainda mais seu cavalo que, a essa altura, tinha o pelo coberto de suor e sangue. O animal nem tinha cessado seu galope quando Sean Ridell saltou da sela.
 Em agonia mortal encontrou sua esposa nua, amarrada a uma árvore diante da casa. Extremamente pálida, com a garganta cortada, os olhos vidrados de Kate indicavam que ela acabara de morrer.  A nudez, as lacerações e as marcas de mordida em seu corpo, assim como os vestígios de lágrimas no canto dos olhos mostravam que ela desejara ter morrido muito antes que lhe cortassem a garganta. Fora vítima da selvageria daqueles seis animais que atacavam pessoas indefesas em ranchos. Berthan, o empregado, estava caído nos degraus da varanda com um furo de bala na testa e o revólver fumegante nas mãos; prova de que morrera lutando, tentando defender os Ridell. E quanto ao pequeno James? Sean ouviu um débil choro de criança vindo da casa em chamas. Tentou desesperadamente entrar na mesma, mas só conseguiu se queimar e engolir fumaça negra. De joelhos, o rosto banhado em lágrimas, ele ouviu as chamas mastigarem as tábuas da sua casa e viu o incêndio lamber o céu escuro da noite, pintando-o de vermelho e laranja. Urrando enlouquecido e puxando os cabelos, Sean montou seu cavalo quase morto e cavalgou rumo ao deserto escuro, ouvindo atrás de si o crepitar das chamas implacáveis.



Danilo Alex




Queridos amigos e leitores, em breve postarei a terceira parte.
Espero que estejam gostando!


Boa leitura!


Abraços