quinta-feira, 26 de abril de 2012

Jogo Maldito - Parte 4


26 de Abril de 2012 – 3:13 h

Caro diário de bordo, só tenho a você para recorrer! Acordei sobressaltado no meio da noite, perseguido por um pesadelo terrível, envolvendo meus amigos e familiares. Sonhei que a sombra de um garoto armava ciladas mortais para cada um deles, e tirava suas vidas bem diante dos meus olhos, sem que eu pudesse fazer nada para evitar. Acordei arfante há pouco, o suor empapando minha camiseta. Me ergui da cama sufocando com a mão um grito de terror preso em minha garganta seca, o qual escapou em forma de soluço. Olhei o rádio-relógio sobre o criado-mudo e constatei ser pouco mais de três da manhã. Não era um bom agouro.
Segundo os cristãos, três da manhã foi a hora que o Diabo tomou para si, em oposição a Cristo, que morreu às três da tarde. Logo, três da manhã não pode ser um bom horário, já que a crença popular afirma ser quando os portões do inferno se abrem, e o mal está à solta. Tomei um gole de água da jarra que sempre trago comigo antes de dormir e tateei a gaveta do criado-mudo, em busca da pequena lanterna que uso quando vou pescar com meu pai. Em seguida, vim procurá-lo, meu amigo diário de bordo. Sob o pequeno, mas poderoso facho de luz, escrevo agora furiosamente em suas páginas, como se minha existência dependesse disso, o que, de certa forma, é verdade. Escrever tornou-se minha terapia secreta, quase uma obsessiva busca pelo conforto mental.
 Meus pais se mostram cada dia mais preocupados com minha mudança de hábitos e comportamento, mas não posso falar a respeito de nada disso com eles. Não posso envolvê-los nessa história macabra, porque os amo mais que qualquer coisa nessa vida. Eles são meu tudo, e eu não permitirei, de forma alguma, que o mal venha apanhá-los. O mal quer a mim, fui eu que o desafiei, agora preciso arcar com as consequências. Sozinho.
Sentindo que as sombras me cercam, escrevo. Ilhado pela luminosidade, redijo isso que, a cada dia que passa, mais me convenço se tratar de meu testamento. Meu quarto está silencioso e meio imerso na escuridão; entretanto, sei que não estou sozinho. Posso sentir isso. Há um intruso em meus aposentos, mas não aquele tipo de invasor que pode ser impedido por janelas travadas ou portas bem trancadas. Poucas coisas nesse mundo são capazes de deter, ou pelo menos atrasar o garoto que me espia das sombras. Um garoto cujo rosto fantasmagórico vi pela primeira vez em uma foto que gostaria de esquecer.
Prosseguindo com nossa história, a qual você já pode perceber que é pavorosa, no dia seguinte perguntei aos outros integrantes do grupo se eu poderia ver a foto que veio anexa para eles, e inventei uma desculpa, dizendo que meu e-mail não tinha chegado etc. Todos eles concordaram tranquilamente, e não tinham comentado nada a respeito de uma décima pessoa no retrato que chegou para eles. Verifiquei fotografia por fotografia, e todas estavam normais, sem o garotinho que aparecera na minha. Arthur, se era mesmo ele, quisera ser visto apenas por mim. Por quê? Seria devido ao meu ceticismo crônico na época?
Relutei um bom tempo até aceitar aquele fato. Mostrei a foto para Carlos uma vez, e perguntei a ele o que ele via. Ele disse que não viu nada demais. Comparamos a minha foto com a dele, e ele disse que, a seus olhos, eram completamente iguais. Mas não eram. Para mim, não eram.
Eu podia divisar com nitidez o rosto espectral do garoto que me encarava fixamente da fotografia, o queixo ligeiramente erguido, num ângulo aparentemente petulante.
O problema então era comigo, tinha de ser. A única pessoa do grupo que não acreditava no sobrenatural fora escolhida por Arthur para ser sua testemunha. Cansei de analisar aquela foto... Scanneei-a e enviei a um amigo que é realmente talentoso lidando com esses programas como o Adobe Photoshop, para que ele a analisasse. Pouco depois recebi seu e-mail, onde ele respondia que a foto era original e estava intocada, sem nenhum tipo de montagem. Pegando meu celular, disquei o número desse amigo. Tocou duas vezes antes que ele atendesse. Agradeci pela análise rápida que ele havia feito para mim, e perguntei quantas pessoas ele vira na imagem.
Ele demorou um instante para responder, aparentemente surpreso com minha pergunta. Depois, falando devagar como alguém que dialoga com um maluco, ele disse que vira nove pessoas na fotografia.
- Por que a pergunta, Pablo? – ele indagara espantado, após alguns segundos do meu silêncio.
Respondi que não era nada, agradeci e desliguei. Meus companheiros do grupo conseguiam falar com Arthur por meio do tabuleiro, mas eu podia vê-lo em fotografias. Estremeci. O que seria aquilo? Alucinações?
No dia seguinte, tive uma surpresa agradável. No finalzinho da tarde, Julia me ligou e perguntou se eu estava ocupado. Evidentemente respondi que para ela eu nunca estava ocupado e ela riu, aquele riso cristalino e maravilhoso que ainda posso ouvir se fechar meus olhos nesse momento, caro diário. Então ela disse que, como a noite estava agradável, ela pensava em sair para caminhar um pouco, e quis saber se eu não a acompanharia. Aceitei imediatamente e combinamos que eu a buscaria em casa meia-hora mais tarde. Desligando o telefone, fui correndo tomar um banho e me arrumar. Meu pai me levou de carro até a casa dela e cheguei pontualmente. Ela estava deslumbrante, como sempre. Talvez os outros caras não vissem nada demais em Julia, mas para mim ela era perfeita. Não conseguia imaginar um mínimo detalhe nela que eu não gostasse.
Anoitecera. O céu escuro estava crivado de estrelas, como um manto negro cravejado de diamantes. A lua cheia, majestosa, se erguia vagarosamente acima das copas das árvores, das casas e dos prédios. O clima estava agradável, uma brisa refrescante soprava em nossos rostos, bagunçando os cabelos negros dela, que agora estavam soltos e revoltos. Nunca amei tanto o vento antes, porque, devido à ação dele, de tempos em tempos Julia precisava tirar o cabelo da frente de seu rosto, e sempre que isso acontecia, eu via aqueles olhos negros e brilhantes estudando meu rosto com uma atenção enigmática. Eu então, embasbacado, tinha de respirar fundo para recobrar o fôlego. Ela percebia e sorria para mim, um sorriso que, aos meus olhos, era muito mais encantador do que todo aquele céu estrelado, mais lindo que a própria lua, cuja figura prateada e descomunal se elevava gradativamente até seu trono na abóbada celeste revestida de trevas, onde ela reinaria absoluta até os primeiros raios de sol.
Íamos caminhando e conversando sobre várias coisas, mas claro que ela quis falar principalmente sobre o tabuleiro e a manifestação de Arthur. Intimamente fiquei um pouco contrariado por ter de tocar naquele assunto com Julia. Falar do tabuleiro me fazia lembrar da foto. Me fazia lembrar do rosto assustador de Arthur. Para desviar um pouco o assunto, sugeri que passássemos numa sorveteria que ficava a duas quadras de onde estávamos. Caro diário de bordo, a sorveteria se chama “Ice Crime” (isso mesmo, Crime Gelado, traduzido em português), um criativo joguete de palavras que o proprietário fez devido o original “Ice Cream”, que é sorvete, traduzindo. Então, se você, pondo os olhos no letreiro luminoso na entrada da sorveteria, ler a primeira palavra em inglês, e a segunda em português, sem perceber vai estar praticamente falando “sorvete” em inglês.
O Sr. Félix, dono da Ice Crime, é amigo do meu pai de longa data. Desde criança tomo sorvete lá com minha família, e muitas e muitas vezes o Sr. Félix me contou a história de como escolhera o nome para a sorveteria. Além do trocadilho bacana que acabei de explicar, Félix era um grande fã de filmes de gângster, sabe, caro diário? Toda essa coisa de "Os Intocáveis" e "O Poderoso Chefão", aqueles antigos criminosos do cinema norte-americano, que, vamos admitir, definitivamente são caras de estilo.  Por isso Félix batizou seu estabelecimento de Ice Crime e decorou as paredes com fotos dos atores e das cenas de seus filmes favoritos. Para mim, o sorvete de lá é o melhor do mundo, e absolutamente, é literalmente um crime deixar de provar as iguarias geladas de lá. Por isso, fiz questão de levar Julia ali.
Ao me ver, o Sr. Félix esboçou um sorriso e acenou para mim, embora olhasse um pouco assombrado para a minha companheira. Sorri; Félix era de outro tempo, não adiantaria explicar que aquela garota ali do meu lado, com seus piercings, maquiagem pesada, roupas escuras e cabelos pretos como a noite era a dona do meu coração. Acho que ele surtaria se eu tentasse dizer-lhe isso. Julia nem percebeu que o homem a estudava, tão admirada estava com a decoração bacana do lugar. Pedi dois milk-shakes: um de morango, conforme eu sabia que ela adorava, e um de chocolate para mim, já que sou chocólatra de nascença. Ambos os sorvetes eram ovomaltine. Paguei, despedi-me de Félix e deixamos a Ice Crime.
Quando estávamos caminhando novamente pela rua, ela tomou um gole do milk-shake pelo canudinho, arregalou os olhos e, suspirando de satisfação, disse:
- É realmente maravilhoso, Pablo! Como eu nunca soube desse lugar? – e com seu sorriso perfeito – Obrigada.
Caminhamos durante mais algum tempo, ela rindo como criança e me mostrando a lua cheia boiando contra o céu estrelado como um imenso balão redondo e prateado. Ela era apaixonada pela lua, assim como o era por sorvetes de morango. Terminando nossos milk-shakes, jogamos os copos no lixo e estacamos. Lambendo os lábios melecados de sorvete, ela olhou subitamente para mim com uma intensidade que me deixou rubro:
- Você é um garoto corajoso, Pablo? Gosta de aventuras?
- Bom... acho que sim – respondi desconcertado pela pergunta surpresa, sem fazer ideia de onde ela queria chegar com aquilo.
Como se lesse meus pensamentos, Julia explicou:
- Pergunto, porque estou a fim de um garoto assim para me acompanhar em uma aventura noturna agora mesmo.
Subitamente fingindo estar sério, olhei demoradamente ao redor e então pousei meus olhos nela e, dando de ombros, disse em tom de brincadeira:
- Bem, acho que você deu azar; o garoto mais perto sou eu, e você vai ter de se contentar com isso.
Rindo a valer, ela apenas se virou e fez sinal para que a seguisse. E então disparou a correr, descendo a rua. Imediatamente a segui, é claro, sem saber o que aquela maluca ia fazer. Eu tinha de fazer um enorme esforço para não rir, porque isso me tiraria o fôlego e eu não ia querer perder ela de vista. As pessoas passavam por nós na rua e se viravam para nos olhar, como se fôssemos uma dupla de extraterrestres em desabalada carreira pelas vias noturnas da cidade. Quando finalmente alcancei Julia, ela estava parada sob um poste, e a luz amarelada que a banhava delineava suas maravilhosas formas juvenis. Ela se voltou para olhar enquanto eu me aproximava, e então eu tive a impressão de que estava vendo uma foto em sépia de algum anjo noturno, propositalmente deixado na Terra para iluminar as noites escuras de caras solitários como eu. Puxa vida, isso foi poético, não foi meu amigo diário de bordo?
Quando eu já estava bem perto, Julia me mostrou o muro alto e pintado de branco à nossa frente e só então me dei conta de que a seguira até o cemitério. Sem me dar tempo para pensar, ela saiu correndo em direção ao campo santo. Com uma agilidade felina, ela escalou o muro e estacou encarapitada lá no alto, me fitando de modo desafiador. Como alguém tão pequeno pudera galgar a parede com aquela velocidade e habilidade? Provavelmente ela já fizera aquilo diversas vezes, pois a segurança que demonstrara ao saber exatamente onde apoiar os pés, conhecer cada saliência, por menor que fosse, e a precisão com que dera dois passos na parede para pegar impulso, deixavam clara a sua reincidência. Fiquei lá embaixo, boquiaberto, olhando para ela, tomado por uma sensação de irrealidade. Julia não parava nunca de me surpreender.
- E então? Você vem ou não? – ela me provocou.
- Você é maluca! – eu disse e continuei imóvel, hesitante.
- Se vier, vai ser bem recompensado. – ela disse languidamente e piscou de um modo travesso.
Cara, aquilo era música para meus ouvidos. Mal terminou de falar, ela passou as pernas por cima do muro e deixou-se cair para o lado de dentro do cemitério. Cocei nervosamente o queixo e olhei ao redor, para ver se havia alguém se aproximando. Meu pulso estava acelerado, nunca fizera algo parecido. Quando tive certeza de que não haveria testemunhas, corri em direção ao cemitério e saltei o mais alto que pude. Meus dedos agarraram-se ao topo do muro e eu fiquei esperneando desajeitadamente por alguns segundos, tentando achar apoio para os pés.
Se pudesse, sei que você riria de mim, caro diário de bordo, mas saltar o muro do cemitério foi bem mais complicado do que parecia, principalmente por minha falta de prática. Duas coisas agiram a meu favor: primeiro era o fato de eu ser alto, pois isso me ajudou, ainda que penosamente, a içar meu corpo magrelo até o topo do muro. A segunda coisa, pela qual fiquei realmente feliz, era o fato de Julia já estar me esperando do outro lado, e não poder ver a situação ridícula em que eu me achava, esperneando, até conseguir encontrar apoio para os pés.
Instantes depois, ofegante e com a barriga toda ralada, lá estava eu ao lado de uma sorridente Julia.
- Não devíamos estar aqui, você sabe – eu disse a ela em voz baixa – Se alguém nos apanhar, estaremos encrencados.
- Então não faça barulho, rapaz.  – ela disse após um sorriso divertido e fez sinal mais uma vez para que a seguisse.
Andamos por alguns minutos entre lápides entalhadas em granito, sepulturas adornadas com vasos de diversas flores, e velas cuja cera estava quase toda derretida. Anjos e santos de mármore colocados sobre os túmulos pareciam me fitar com olhar reprovador. Os grilos cricrilavam e uma coruja piou ao longe. Para a nossa sorte, a luz possante e prateada do luar iluminava intensamente nosso bizarro tour pelo campo santo.
- Por que vocês, góticos, curtem tanto esse tipo de lugar, Julia? – sussurrei para ela, enquanto a seguia rapidamente, tomando cuidado para não tropeçar em nada.
- Apreciamos o silêncio e a paz – ela respondeu também em voz, baixa, sem se virar ou parar de caminhar – Gostamos de vir para escrever, pintar, ler, ou simplesmente pensar na vida. Mas não foi por isso que eu te trouxe aqui.
Ela parou e apontou o dedo para um túmulo a um canto. Na lápide estava escrito um nome que me fez prender a respiração: ”Arthur Dias Azevedo”. Tentando não permitir que ela percebesse, estremeci. Abaixo das frases de saudade de família e amigos, havia a data de nascimento e a data de falecimento. O Arthur enterrado ali tinha acabado de fazer dezessete anos quando faleceu.
- Encontrei enquanto procurava por aqui da última vez em que vim. – ela disse, me tirando do estado de perplexidade em que eu mergulhara – Você acha que é ele, Pablo? Acha que é o “nosso” Arthur?
Fiquei um pouco zonzo quando ela perguntou isso, mas, resolutamente percorri com os olhos a sepultura até achar uma foto emoldurada, maltratada pelo tempo. Nela aparecia um garoto branco, sério, de cabelo loiro, liso e curto, algumas sardas no rosto juvenil. Também naquela foto, Arthur parecia estar olhando diretamente para mim.
- Talvez seja ele. – falei desviando a vista, enquanto engolia em seco.
Como Julia não respondesse nada, olhei para ela e a percebi muito próxima de mim, seus olhos negros refletindo intensamente a luz da lua, presos nos meus, pedindo algo. Ela me fitava de um modo diferente de todas as outras vezes. E o silêncio me disse exatamente o que eu deveria fazer.
Engraçada essa vida, não é, querido diário de bordo? Realmente irônico que o primeiro beijo na garota que gosto tenha sido em um cemitério, em noite de lua cheia, bem diante do túmulo de alguém que há pouco começara a me assombrar. Vivendo intensamente aquele momento único, esqueci-me completamente de Arthur. Preferi me concentrar no beijo de Julia, sorvendo da boca dela o gosto de morango do milk-shake da Ice Crime.
Subitamente um facho poderoso de lanterna nos atingiu em cheio. Assustados, nos voltamos em direção à luz. Um cão furioso rosnava e uma voz masculina zangada cortou o ar:
- Ei, vocês dois! Tratem de arrumar outro lugar para fazer isso, seus pirralhos! Quando eu puser minhas mãos em vocês, vou ter o prazer de entregá-los à polícia!
Sem esperar mais, corremos o mais rápido que podíamos em direção ao muro. Julia ia à frente, rindo feito uma desmiolada, e ligeira como um coelho. E eu logo atrás, apavorado, arfante, ouvindo atrás de nós os passos pesados do vigia e os latidos desvairados do cão. O bicho ainda mordeu e rasgou boa parte da barra da minha calça novinha. Apesar disso tudo, conseguimos escapar e voltamos correndo para a casa da Julia.

Caro diário de bordo, obrigado por me receber quando eu mais precisava.  Registrar em suas páginas essas boas lembranças me acalmaram, e acho que agora consigo voltar a dormir. De manhã, justo no primeiro horário tenho uma prova complicadíssima de álgebra, e nem sei como vou fazer se chegar lá na escola parecendo um zumbi. Me despeço de você, amigo diário de bordo, renovando a promessa de que logo estarei de volta para continuarmos navegando nesse oceano inescrutável e sombrio em que estou condenado a vagar desde que comprei aquele maldito tabuleiro na loja do senhor Ramón. Bem que ele tentou me avisar...
Preciso ir agora, meu amigo encadernado.
Até breve!

 Danilo Alex



segunda-feira, 23 de abril de 2012

Jogo Maldito - Parte 3


 23 de Abril de 2012 – 23 h

Olá, meu diário de bordo, meu porto seguro! Estas páginas tem sido minha pequena porção de paz, luz e consciência em meio a um mar de trevas, insanidade e perigos. Me sinto ilhado pelo mal, um mal que eu mesmo trouxe à tona, eu mesmo provoquei. Estou começando a cansar de lutar sozinho, caro diário. Se eu desistir, será que as ondas vão me arrastar para onde? Serei tragado para as profundezas insondáveis e eternas? Talvez seja melhor. Basicamente qualquer coisa parece melhor do que ter de enfrentar dolorosamente, dia após dia e, principalmente, noite após noite, esse turbilhão de coisas inexplicáveis que me rondam e me acontecem. O que será isso? Esquizofrenia? Alucinações? Estafa mental? O Mal existente desde o princípio, conforme tantas pessoas ao redor do mundo afirmam, e do qual eu tanto duvidava?
Depois daquela primeira tentativa de comunicação com o Além por meio do tabuleiro Ouija (ou tábuas falantes, segundo o dito popular), feita em minha casa, em que a única coisa que realmente valeu a noite foi o beijo no rosto que ganhei de Julia, tentamos algumas outras vezes, na casa de outras pessoas. Não obtivemos êxito, aparentemente o “mundo espiritual” estava de portas fechadas para nós, o que a cada dia apenas aumentava minha incredulidade. As pessoas que realmente acreditavam naquela baboseira pesquisaram um pouco sobre o que deveriam ou não perguntar durante o jogo, como identificar se o espírito contatado era bom ou ruim, a forma certa de se iniciar ou encerrar a brincadeira e o modo de se fechar corretamente o tabuleiro a cada partida. Mesmo assim, apesar de nossa insistência, não conseguimos nada.
Julia, ao contrário de Carlos, sempre estava presente. Não importava onde ou quando fossemos tentar a fúnebre comunicação, lá estava ela em nosso meio, ansiosa, torcendo para que algo anormal ocorresse.
Devido nossos insucessos, nosso grupo de inicialmente quinze pessoas caiu para dez, e depois para oito. Carlos nunca estava conosco, ele fazia o possível e o impossível para se esquivar de nossas brincadeiras macabras, mesmo eu tendo repetidamente lhe contado que as reuniões eram infrutíferas em seu sentido principal. Para mim, no entanto, eram ótimas, dificilmente poderiam ser melhores. Conversava já intimamente com Julia e consegui convidá-la para sair. Fomos ao cinema ver um filme de terror que ela queria assistir, e depois tomamos sorvete. Foi bem legal, gostei muito, conversamos e rimos a valer. Se rolou algo? Ainda não, Julia é uma garota bem inacessível afetivamente, quase inatingível, eu diria. A sorte é que sou praticamente incansável quando busco um objetivo. Além do que, não tenho pressa. Me considero muito jovem para namorar; só de estar perto dela já me sinto muito bem.
Há alguns dias, Carlos finalmente apareceu em uma de nossas reuniões. E foi quando tudo realmente começou. Iríamos nos reunir pela tarde, porque durante as noites estava ficando complicado de convencer os pais a nos levar, e eles começavam a desconfiar dessa nossa súbita e anormal maratona de estudos nas casas dos colegas. Quem vai entender os adultos? Se os jovens nunca se reúnem para estudar, não querem nada com a vida. E se resolvem se reunir demais, estão necessariamente aprontando alguma coisa. Eu até chamaria isso de preconceito, se em nosso caso eles não estivessem absolutamente certos.
Cumpridos os procedimentos iniciais, pousamos nosso dedo indicador sobre o ponteiro que era, na verdade, uma palheta triangular de vidro. Carlos, um tanto trêmulo, nos imitou, embora resmungasse que aquilo não estava certo, e que havia outros jogos mais saudáveis os quais poderíamos realizar. Banco Imobiliário, por exemplo. Ele era um grande fã, seu sonho era um dia se tornar um grande administrador de empresas, exatamente como o pai. Era desestimulante jogar Banco Imobiliário com Carlos, porque ele sempre vencia. Naquele tarde, entretanto, ele resignou-se a participar de nossa sombria brincadeira, um jogo que, futuramente viríamos a descobrir, podia ser tão perigoso quanto a Roleta-russa.
Carlos estava em casa quando cheguei de surpresa para buscá-lo. Sem poder inventar uma desculpa convincente, ele não teve escapatória senão concordar em ir comigo. Naquela tarde, a reunião seria na casa de Fábio, um dos integrantes remanescentes do já desanimado grupo de jogadores. Conforme o costume já adotado, o dono da casa saudou os seres espirituais que estivessem por perto, pediu permissão a eles para iniciarmos o jogo, e perguntou se havia alguém ali conosco, em espírito.
Tomamos um susto quando o ponteiro se moveu repentinamente sob nossos indicadores, encaminhando-se para a beirada do tabuleiro, e só parou quando chegou ao destino. “Sim”, foi a resposta que pudemos ler. Olhei desconfiadamente ao redor, fitando com atenção o rosto de meus companheiros, tentando descobrir quem era o espertinho que estava movimentando o ponteiro de modo a parecer que havia um fantasma por ali. Todavia, o assombro de todos era genuíno, sincero. Até Julia estava mais pálida que o habitual. Um tremor quase convulsivo se apoderara de Carlos, e pedi em voz baixa que ele se acalmasse. O que era aquilo? Não podia ser real, alguém entre nós tinha de ter movido aquela peça. Alguém de carne e osso.
Engolindo em seco, o pessoal, em uníssono, cumprimentou o espírito. Até eu me juntei ao coro, apesar de me sentir um pouco ridículo fazendo isso. Novamente o ponteiro se moveu vigorosamente sobre o tabuleiro, produzindo um som levemente rascante, mas imensamente sombrio. Dessa vez até eu senti os cabelos da nuca eriçar enquanto meus olhos liam a nova resposta, que foi “Olá”. Como podia ser aquilo? A ciência explica que o tabuleiro não tem nenhuma propriedade sobrenatural. O que acontece é que o cursor é movido inconscientemente pelos próprios jogadores. Isso se chama Efeito Ideomotor.  Sim, tinha de ser essa a explicação; depois de tanto tempo esperando que algo incrível acontecesse, os participantes do jogo começaram a manipular o resultado sem perceber. Era o inconsciente agindo para solucionar uma frustração.
Minha cabeça funcionava a mil. Podia ouvir em minha mente a razão digladiando com as sugestões do emocional, do mesmo modo que um leão, certo da derrota, ainda luta bravamente contra um bando de hienas que o tenha cercado, buscando sobreviver. Enquanto eu pensava intensamente sobre tudo isso, a galera fazia diversas perguntas ao nosso estranho e invisível visitante. 
- Qual seu nome? – quis saber Julia, animadíssima.
Mal ela terminou de perguntar, a palheta se moveu arrastando nossos indicadores consigo, mostrando uma letra por vez, até formar um nome masculino.
- Arthur... – leu Carlos num sussurro amedrontado.
- Quantos anos tinha quando faleceu? – indagou Fábio extasiado.
E lá se foi novamente o ponteiro viajando pela tábua mística. Eu queria soltar a palheta, mas algo me impedia, um magnetismo inexplicável. Para você ter uma idéia de como a palheta se movimentava, era mais ou menos como quando você coloca uma moeda sobre a mesa e um imã por baixo da mesma, sabe? Daí você puxa o imã sob a mesa, levando-o de um lado a outro, e a moeda, desliza aparentemente sozinha na superfície polida acima. Cheguei a verificar sob a mesa se alguém manipulava o jogo de uma maneira similar a essa do imã, mesmo sabendo que o ponteiro era de vidro.
 Meus olhos acompanhavam hipnoticamente o movimento da palheta, a qual naquele momento acabava de mostrar a idade de nosso interrogado. Arthur tinha dezessete anos quando faleceu. Mecanicamente olhamos todos para Carlos, pois entre nós ele era o único que ainda não completara dezoito anos de idade. Meu melhor amigo engoliu em seco.
Depois de algumas perguntas, o nosso sinistro convidado contatado pareceu perder um pouco do interesse e, em dado momento, ao invés de responder o que lhe pediram, conduziu o ponteiro para “Adeus” e não mais se manifestou naquela tarde. Então, decidiu-se encerrar a partida, e cumpriram o ritual próprio para isso. Terminada a funesta brincadeira, com exceção de Carlos e de mim, os presentes se cumprimentaram, satisfeitíssimos pelo acontecido. Carlos beirava o pânico e eu ainda não estava convencido. A meu ver, alguém entre nós tinha feito aquilo.
Julia propôs que todos guardassem segredo sobre o acontecido, pois, não era justo que as pessoas que desistiram antes soubessem da comunicação com Arthur. Segundo ela, era um mérito apenas do nosso grupinho de oito pessoas, nove contando com Carlos naquela fatídica tarde. Resolveram registrar a cena e puseram em minha mão uma máquina fotográfica de última geração, para que todos os presentes tivessem uma recordação daquele primeiro contato com o sobrenatural. Ali, na quase penumbra da sala de Fábio, entre velas e o tabuleiro, eu enquadrei meu grupo de camaradas e me preparei para tirar a foto.
- Vamos nos lembrar desse dia durante o resto de nossas vidas. – disse Julia com um sorriso encantador, segundos antes que eu os fotografasse. Ela não poderia fazer idéia na época do quão proféticas seriam suas palavras.
Acionei o botão e ouviu-se um clique. O flash percorreu a sala com a luminosidade e brevidade de um relâmpago em noite chuvosa. Estava feito. Acendemos as luzes, guardamos o tabuleiro e voltamos para nossas casas.
Quando escureceu, eu já estava em casa. Depois de fazer minhas lições escolares e tomar banho, sentei-me diante do computador, como fazia toda noite, para checar e-mails, atualizar minhas redes sociais ou simplesmente jogar on-line ouvindo um bom e velho Rock and Roll. Acessei minha caixa de e-mails e percebi que menos de cinco minutos antes Julia me enviara uma mensagem intitulada “A foto mais importante das nossas vidas”. Tranquilamente abri o e-mail e percebi que ela o encaminhara apenas para as pessoas que estavam presentes na casa do Fábio naquela tarde. A foto viera como um arquivo anexo. Cliquei para fazer o download e, durante os poucos segundos gastos para que se realizasse essa operação, aproveitei para responder um amigo que me chamava desesperadamente em um chat, em outra página do navegador.  
Instantes depois, voltei à foto, que já estava aberta e ampliada no centro do monitor. Sorri vendo os rostos sorridentes dos companheiros, admirei embevecido a face de Julia e me diverti com a expressão assustada de Carlos. Entretanto, subitamente parei de sorrir e franzi a sobrancelha. Havia algo errado.
Caro diário de bordo, desculpe minha letra tremida neste trecho da história, mas isso só acontece devido o pânico de recordar o que contarei a seguir. Havia dez pessoas na foto, quando na verdade, apenas nove tinham estado na casa de Fábio naquela tarde. Na semi-escuridão da sala de nosso anfitrião, um décimo rosto aparecia flutuando pouco acima da cabeça de Julia. Era um garoto sério, de cabelos loiros, lisos e curtos, e olhar indecifrável. Seus olhos brilhavam mais do que os de qualquer outra pessoa na foto. E o mais estranho de tudo era que ele parecia olhar diretamente para mim. Não suportei a visão daquele olhar e fechei a página imediatamente. Aquela foi a primeira noite em que não consegui dormir.
Meu caro diário de bordo, meu caderno de confissões, talvez agora você comece a compreender em que tipo de situação minha incredulidade me meteu. Se meu navio afundar, espero que estas páginas escapem ao naufrágio, para que no futuro alguém possa conhecer essa história e entender o desfecho dos personagens, que talvez seja inexplicável pela lógica humana. Finais não tão felizes de histórias como essa dificilmente são explicáveis ou compreensíveis.
Caro diário, vou parando por aqui essa noite. Era preciso contar-te a respeito dessa tarde, mas me lembrar da malfadada foto extingue totalmente minha vontade de escrever. Acho que vou descer e comer alguma coisa, talvez faça companhia ao meu pai na sala durante algum tempo; daqui posso ouvir a televisão ligada lá embaixo. Se ainda assim o sono não vier, talvez tenha de recorrer a um copo de leite ou a um calmante, como praticamente já é minha rotina. Tão logo me recupere dessas lembranças macabras e inquietantes, voltarei aqui, caro diário de bordo. Ainda há muito a contar.
Boa noite, e
Até breve!

Danilo Alex da Silva

domingo, 22 de abril de 2012

Jogo Maldito - Parte 2

   
  22 de Abril de 2012 - 21:38 h

   Caro caderno, eis-me aqui de novo, para desabafar em suas páginas. Não chamarei você de diário, porque isso é coisa de menina; a menos , é claro, que eu considerasse você uma espécie de diário de bordo. Sim, isso daria mais certo. Me sinto como um capitão de navio, enfrentando uma tempestade terrível, da qual nem o homem do mar mais experiente pode dizer se escapará com vida. Enfim, onde paramos mesmo? Ah, sim! Falávamos da minha compra na loja do senhor Ramón. 

O objeto em que estive tão empenhado em comprar, e que assustou tanto meu camarada Carlos, era aquilo conhecido como tabuleiro de ouija. Talvez você já tenha ouvido falar. Desde a antiguidade é utilizado por bruxos, adivinhos, necromantes e ocultistas para comunicação com espíritos bons e maus, e às vezes até com demônios. Uma tábua de madeira com vários símbolos como lua e sol, pentagramas, caveiras e estrelas, além do básico: os dizeres “sim” e “não” dispostos em extremidades diferentes do tabuleiro, bem como “olá” e “adeus”. Também há as letras do alfabeto e os números de 0 a 9.
 O que comprei era uma tábua plana envernizada, toda trabalhada artisticamente, tinha as bordas e a parte de baixo marrons, e a face onde ficavam as letras era mais clara, da cor da madeira, para facilitar a visibilidade. O tabuleiro era acompanhado de uma palheta triangular vermelho-escura com uma abertura circular no centro, através da qual eram lidas as letras ou palavras que a entidade invocada quisesse mostrar.
Saí da loja esfregando as mãos de contentamento, enquanto Carlos segurava a sacola com o tabuleiro, esboçando uma careta que mesclava contrariedade e receio.
- Agora, vamos aproveitar que as férias estão chegando, para marcar algumas “sessões” com o tabuleiro em nossas casas. Isso vai ser só um pretexto para Julia e as amigas se encontrem conosco fora da escola, já que essa geringonça – falei batendo com o nó dos dedos na sacola contendo o jogo – com certeza não atrai nada além de pessoas ingênuas.
- Não sei não, cara. Não sei não... – repetia Carlos inquieto, entre um muxoxo e outro de desagrado, tanto por minhas maquinações, quanto por estar segurando um tabuleiro que lhe causava emoções tão ruins.
Com um meio sorriso, dei-lhe um tapinha amigável nas costas e continuamos andando,  falando sobre  amenidades para não perturbá-lo mais.
No dia seguinte, quando contamos a novidade na escola, imediatamente nos tornamos o centro das atenções da turma. Nos intervalos dos horários ou no recreio, Carlos e eu éramos rodeados e crivados de perguntas a respeito do macabro jogo. Queriam saber se já tínhamos usado o tabuleiro, se algum espírito se manifestara, se eles também poderiam jogar conosco. Similarmente aos participantes de reality shows, de uma hora para outra ficamos famosos por uma razão esdrúxula.
Mas o melhor de tudo era que Julia quase sempre estava entre os curiosos. Carlos respondia as perguntas de modo reticente e com ar de enfado, mas eu estava adorando aquela inesperada notoriedade. Quando percebia Julia na súbita platéia, eu falava com bastante empolgação, explicava como era o tabuleiro, gesticulava, comentava como planejava jogar, o que perguntaria. E nossa popularidade subia meteoricamente, já que nossos colegas estavam cansados de improvisar com canetas e copos, e queriam mesmo era sentir a emoção de contatar um espírito por meio de um tabuleiro próprio para essa comunicação sobrenatural.
Como eu não poderia levar o jogo para a escola, porque era contra as normas, os poucos corajosos que estavam determinados a seguir até as últimas conseqüências naquela brincadeira maluca teriam de ir até minha casa. Assim que expus a idéia e vi o pessoal concordando, principalmente as garotas, incluindo uma entusiasmada Julia, olhei para Carlos e pisquei disfarçadamente, como quem diz que tudo está saindo melhor que encomenda. Mas ele abanou a cabeça com indiferença. Definitivamente meu melhor amigo não gostara da minha compra. No fundo, ele sabia que havia algo muito errado.
 Mas, como disse antes, até então essas apreensões de Carlos para mim eram mera ignorância; raízes de uma cultura que nos ensina a ser supersticiosos. Para mim, crer em presságios, espíritos ou comunicação com os mortos era algo muito mais apropriado a um camponês romeno que habitasse ao redor dos Montes Cárpatos.  Tais crenças e medos não poderiam residir no coração do homem moderno. Carlos era um garoto esclarecido, conhecedor das coisas, entendia como o universo funcionava e sabia que havia de milhares de explicações lógicas e científicas para cada situação menos usual que os fanáticos religiosos saíssem apregoando absurdamente aos quatro ventos como milagres. Carlos era meu amigo desde criança. Conversávamos sobre ciência, tecnologia, filosofia, literatura. Como ele, tão culto, poderia temer um pedaço de madeira pintada?
Procurei descobrir um dia propício para o pessoal vir até minha casa, para usarmos o tabuleiro ouija. Logo soube que no sábado meus pais precisariam ir até a cidade vizinha, visitar um tio meu que andava com problemas de saúde. Foi tranqüilo convencê-los de que eu precisava ficar em casa para estudar, que era semana de prova e que meus amigos viriam fazer trabalho de escola. Como sou filho único, eles se mostraram um pouco preocupados, mas eu expliquei que ficaria bem e que, havendo qualquer problema, eu ligaria imediatamente para eles. Na sexta à tarde então, faltando pouco para o anoitecer, eles entraram no carro e partiram, não sem antes eu ouvir milhares de recomendações de minha mãe e receber no mínimo dez abraços de urso do meu pai. Ser filho único é bacana na maior parte do tempo; entretanto, algumas vezes é um saco. Eles me tratam como criança, detesto isso.
Depois que o Siena prata da minha família partiu suavemente e dobrou a esquina, levando consigo meus pais, que só voltariam no dia seguinte pela tarde, eu entrei radiante e esperei pela chegada dos amigos da escola. Apareceram quinze pessoas, sendo oito meninos e sete meninas. Se Julia veio? Claro que sim! Eu sabia que ela não perderia aquilo por nada nesse mundo.
Eu tinha preparado a sala de estar para jogarmos. Acendi umas velas dispostas em círculo pela sala e diminuí um pouco a intensidade das luzes, gerando uma semi-escuridão, para criar um clima. Antes do jogo, conduzi meus convidados até a cozinha. Ali, ao som de World of Glass, do Tristania, degustamos uma taça de vinho tinto espanhol que Julia trouxera.
- Esse é o melhor que há. – ela dissera suspirando após um gole, erguendo a taça contra a luz para fitar inebriada o líquido escuro e carmesim.
Acho que o vinho que ingeríamos era uma alusão ao sangue. Góticos, adeptos de cultos vampirescos e cristãos parecem ter isso em comum. Bem, de qualquer forma, percebi que Julia entendia a degustação do vinho como uma das partes do rito de preparação para o contato com o sobrenatural. Puxa vida, ela era mais maluquinha do que eu supunha.
Quando comecei a montar o tabuleiro sobre a mesa circular da sala de estar, coberta por uma toalha de mesa branca, senti falta do meu amigo Carlos. Ele não estava presente, teve de comparecer a um aniversário de família.
- Não será melhor esquecer essa idéia, Pablo? – ele me perguntara pela manhã, quando fui convidá-lo para ir até minha casa naquela noite – Estive lendo que ocultistas não recomendam o uso do tabuleiro a qualquer pessoa. Eles alertam que esse objeto é perigoso. Não devíamos brincar com essas coisas que não conhecemos bem.  
- Bobagem! – falei com uma risada desdenhosa – Só conhecemos bem aquilo que podemos provar. Eu nunca vi nada de incomum, Carlos. A garota que eu gosto curte essas coisas. Preciso usar isso a meu favor.
Dando de ombros, ele me explicou que tinha um aniversário para ir e desejou-me sorte.
E agora, ali estávamos nós. Das quinze pessoas presentes, apenas seis decidiram sentar-se ao redor da mesa. Julia, para minha alegria, sentou-se de frente para mim. Olhava para mim de um modo indecifrável, mas eu sentia que o calor do vinho tinto nos tinha aproximado um pouco. Cada um de nós colocou o dedo indicador da mão direita sobre a palheta triangular, a qual repousava no centro do tabuleiro.
- Alguém quer fazer a primeira pergunta? – perguntei, olhando dentro dos olhos negros de Julia. Era bom ser dono do jogo, assim como é bom ser o dono da bola quando se é criança. Se Julia não fizesse a primeira pergunta, ninguém mais ali teria o direito de fazê-la.
O silêncio pesado era apenas cortado pelo som ofegante das respirações dos presentes e o martelar acelerado dos corações ansiosos. Então, a voz melodiosa de Julia atravessou o ar e a quase penumbra da sala. Ela perguntou se havia alguém ali conosco, espiritualmente falando. Automaticamente nossos olhares se voltaram para a palheta sobre o tabuleiro. A onda silenciosa de expectativa fez brotar o suor nas têmporas e nas axilas. Engraçado, se eu não acreditava em nada daquilo, por que minha boca estava seca?Com certeza era devido a proximidade de Julia, e não havia nada de sobrenatural nisso.
Mas, contrariando todas as esperanças, a palheta não se moveu naquela noite. Nenhuma vez sequer. Outras pessoas repetiram a pergunta de Julia e mesmo assim, não aconteceu nada de diferente. Nada de luzes tremeluzindo, velas se apagando, portas batendo ou correntes sendo arrastadas. Se Carlos estivesse ali, eu iria olhar para ele e esboçar aquele sorriso cínico que só eu tenho, como quem diz: “Viu?Não te falei que essas coisas não existiam?”
 Depois de meia-hora de tentativas frustradas, o pessoal desanimou e começou a partir. Julia foi a última a ir embora. Como ela é bem mais baixa que eu, quando ouvimos seu pai buzinar lá fora, ela ficou na pontinha dos pés e me beijou o rosto. Que fantasmas que nada! Isso foi o melhor da noite. Assim que todos partiram tranquei as portas e janelas, apaguei as velas e as luzes e subi para meu quarto, para assistir seriados antes de dormir.

Essa não, justo hoje que precisava continuar escrevendo para exorcizar meus medos e angústias, minha mãe já está gritando para eu ir dormir. E é isso que me mata nos domingos à noite: ter de deitar mais cedo, porque no dia seguinte tenho aula. O que me consola é saber que faltam menos de doze horas pra eu rever Julia. Bem, vou me despedindo então. O jeito é arrumar a cama e ir deitar, com a luz na cabeceira ligada, é claro. Não confio mais na escuridão; nela há olhos que me vigiam. Pesadelos são minha atual companhia durante as noites. Droga! Por que não dei ouvidos aos incontáveis avisos de Carlos? Preciso ir, amigo caderno, meu diário de bordo. Logo estarei de volta para narrar mais sobre esse mar bravio que venho enfrentando sozinho.
 Até breve!

Danilo Alex


sexta-feira, 20 de abril de 2012

Jogo Maldito - Parte 1

20 de Abril de 2012  - 00:30 h 

Meu nome é Pablo Oliveira Neves, tenho dezoito anos e estou escrevendo hoje para preservar o que ainda resta de minha sanidade. Registrar minhas impressões escrevendo foi o modo mais seguro que encontrei de desabafar sem que quisessem me colocar em uma camisa de força.
Se alguém um dia encontrar isso, e esse caderno de alguma forma vier a público, então algo de muito ruim pode ter acontecido a mim, ou a qualquer um dos envolvidos nessa história que, faço questão de frisar, é absolutamente verídica, tanto quanto é certo que dois e dois são quatro, ou que o dia precede a noite. Realmente é um fardo muito pesado para um jovem de minha idade considerar a possibilidade de que estas poucas linhas redigidas nos raros momentos de lucidez atuais podem ser as minhas últimas. Essa missiva pode vir a ser futuramente lida como uma espécie de testamento.
Agradeço o destino por essa clareza que alivia temporariamente minha dor e meu pânico. Como tem acontecido freqüentemente, não consigo dormir. Estamos em abril. A madrugada avança, o vento uiva e a chuva fria tamborila no telhado. Queria eu que as trevas permanecessem lá fora. Queria eu que as sombras que nos perseguem fugissem como a escuridão que se dissipa com um simples acionar de interruptor. Apesar de minha pouca idade, tenho percebido que na vida nada é tão simples assim.
A princípio, gostaria de esclarecer que sempre fui um jovem cético em relação a tudo que a inteligência humana não possa comprovar. Sou oriundo de família assiduamente católica, e desde criança fui incentivado à crença nessa doutrina, mas minha natureza extremamente racional me impede de cultivar a mesma, digamos, fé que meus familiares. E isso não tem nada a ver com o estilo musical que ouço, que é o heavy metal. Afinal, se, conforme os metaleiros mais tradicionais dizem, o heavy metal foi criado para exaltar o diabo, eu não poderia crer, já que tampouco saberia afirmar se acreditava na existência de uma divindade suprema racional e organizada – que a maioria das pessoas costuma chamar de Deus. Ou pelo menos, era o que eu achava sobre minhas próprias crenças.
Dada a estranheza dos últimos fatos, já nem sei mais o que dizer ou em que acreditar. Minha mente rigidamente racional não tem podido me ajudar muito no momento. Enfim, vamos ao relato.
Tudo começou por causa de uma garota. Desde o princípio tem sido assim: as coisas demonstram uma maior propensão a desandar quando há uma mulher envolvida. Mesmo sendo alguém tão perfeita como Julia.
Julia Marcondes é uma colega da minha turma. Ela é diferente das outras meninas, sobretudo por seu estilo gótico. A despeito de suas roupas sempre pretas, sua maquiagem pesada ou seus longos cabelos tingidos, negros como penas de corvo, ela é uma das primeiras alunas da classe. Inteligentíssima, séria, perfeita. Quando ela pousa aqueles olhos cor de piche em mim, tão cheios de mistérios e promessas de um amor nada convencional, sinto o mundo e o tempo congelarem ao meu redor. Faço praticamente qualquer coisa para ser notado por ela. Tenho lido bastante Poe, Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Goethe. E, se você fuçar no meu mp3, vai encontrar apenas Nightwish, Epica, Tristania, Lacuna Coil, Within Temptation, Evanescence e bandas similares. Não sou exatamente um grande fã desse tipo de literatura ou música, então, você pode imaginar como estar apaixonado influencia as pessoas.
Sondando os amigos e amigas dela, descobri que Julia era meio ligada nessas coisas de inferno, diabo, ocultismo, pactos etc. Mesmo não crendo em nada disso, dei um jeito de pesquisar a respeito. Na escola, uma moda é o tal do “jogo do copo” ou “jogo da caneta”, como chamam essas brincadeiras mórbidas de comunicação com os mortos, tidas como inofensivas pela maioria. Espalhou-se como gripe essa mania quando começaram a circular boatos de que um grupo de jovens, enquanto realizavam o jogo do copo, tinham presenciado o mesmo se encher de sangue e estourar, arremessando ruidosamente estilhaços para todos os lados. Depois do susto, vasculharam o local, e não encontraram uma gota de sangue sequer, mas o copo estava mesmo despedaçado.
Espantei-me que garotos e garotas de dezoito anos apreciassem ainda essas coisas que, aos meus olhos, pareciam muito infantis (desculpem-me se aparento ser um cara chato; na verdade, sou apenas um pouco precoce). Mas se Julia gostava, eu teria que, pelo menos fingir que também gostava. A duas quadras da minha casa há pouco tempo um velho argentino abriu uma interessante loja de antiquários. Chamei meu melhor amigo para ir comigo conhecer o novo e inusitado estabelecimento.
Carlos é um garoto tranqüilo, daqueles que poucas pessoas gostariam de ter como amigo por considerá-lo diferente. Muito alto e magro, pálido, cabelos arrepiados, óculos de armação excessivamente chamativa e lentes grossas devido o avançado grau de miopia. Gosta muito de ler sobre qualquer assunto, grande amante de música clássica e hipismo. Consegue achar graça em tudo, e seu modo de rir é muito engraçado, puxando o ar com força após o final de cada gargalhada, o que comicamente lembra o ronco de um porquinho.  Como já devem ter notado, pessoas que destoam dos padrões ditos normais costumam fazer com que eu inconscientemente me aproxime delas.
Uma vez na loja, estacamos um momento diante da vitrine e fitamos maravilhados a diversidade de quinquilharias antigas expostas. Objetos de várias partes do mundo a preços inacreditavelmente baixos. Inexplicavelmente senti certo mal estar ao contemplar a fachada daquele estabelecimento. Meus instintos mais primitivos me alertavam, gritantes, ordenando que eu me virasse e fosse embora imediatamente. Ao contrário, puxei Carlos pela manga da camiseta e entramos na loja. A porta de vidro se abriu, fazendo com que os guizos acima da mesma denunciassem nossa presença. Enquanto Carlos e eu investigávamos as prateleiras minuciosamente, com exclamações de espanto e franca admiração a cada novo item, o senhor Ramón, proprietário da butique, se aproximou de nós para nos atender.
Ele estava sorrindo para nós e se preparando para oferecer sua miríade de objetos estranhos e chamativos, quando meus olhos pousaram exatamente naquilo que eu procurava: um tabuleiro. Estava meio escondido entre os tabuleiros de damas e xadrez, ao lado das canecas feitas de alumínio, de times de futebol nacionais e internacionais. Estava disposto aparentemente de um modo propositalmente afastado do olhar de possíveis compradores. Mas eu o encontrei. Interrompendo o Sr. Ramón no meio de uma frase, apontei determinadamente o tabuleiro com o dedo e indaguei:
- Quero aquilo ali. Quanto é?
Seguindo meu olhar, Sr. Ramón remexeu-se inquieto e piscou, visivelmente desconfortável. Em seguida, desviou o olhar e desconversou:
- Aquilo não é tão bacana. Tenho coisas bem mais interessantes aqui na loja, a um precinho camarada. Vocês chegaram a ver aqui a coleção de...
- Quero aquilo ali, senhor Ramón. Quanto o senhor está pedindo nesse tabuleiro?
Estudando-me com seus olhinhos de raposa enquanto cofiava a barba branca, o velho disse:
- Aquilo te custaria caro, meu filho. Um preço alto a se pagar. Além do que, já está reservado para outro freguês.
- Quanto é? Eu pago o dobro do que ele ia pagar.
Os olhos do argentino brilharam. Senti um cutucão nas costelas. Carlos me olhava apreensivamente:
- Pablo, tem certeza que essa é uma boa idéia? Pagar tanto por esse troço esquisito? – meu amigo ajeitava compulsivamente os óculos sobre o volumoso nariz, um gesto que ele só realizava quando estava preocupado e\ou nervoso.
Meu melhor amigo, apesar de muito inteligente, nutria medos e receios infundados a meu ver, ele não era tão cético quanto eu, vivia dizendo coisas sobre os tais maus pressentimentos que às vezes tinha.
- Relaxa, Carlos. – eu disse sorrindo – Vou gastar boa parte de minhas economias, mas vamos encarar isso como um investimento. Esse tabuleiro, que você hoje chama de troço esquisito, há de ser a minha chave para o coração da Julia.
- Não sei não, heim cara...
- “Os fins justificam os meios” – respondi garbosamente, citando Maquiavel, um de meus autores preferidos. E dei a discussão por encerrada.
Ignorando os apelos de meu melhor amigo, teimosamente comprei e paguei o objeto. Senhor Ramón contava as inúmeras notas, satisfeito por ter extorquido mais um panaca. O dinheiro gasto não me importava: na época eu imaginava que aquela aquisição valeria cada centavo. Dias depois eu maldiria aquela compra com todas as forças do coração. Se eu pudesse voltar no tempo...

Puxa vida, é tarde e essas memórias me consomem. Estou muito cansado, preciso tentar dormir. Prometo que em breve voltarei a este caderno para prosseguir com minha narrativa assombrosa, incrível. 

Que tenhamos uma boa noite, se isto ainda nos for permitido. Até breve!

Danilo Alex




Queridos amigos e leitores do meu coração! Novo e sombrio conto saindo do forno! Espero que gostem! Bom fim de semana!

Abraços

Danilo Alex da Silva

sábado, 14 de abril de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte X - Final

"Ele olhou para cima, sua voz soava como um sino:
Dê-me mais uma chance para fazer as coisas certas
Só mais uma chance, eu seguirei a luz"

(No Second Chances - White Cross)


Sean Ridell soltou um grito rouco quando uma dor fina e terrível penetrou seu peito e estraçalhou seu ser; tinha a impressão de que a mão abominável de Abigor estava espremendo seu coração. Acionou o gatilho instintivamente, apenas para ver seu tiro desperdiçado passar muito longe do alvo. O revólver escorregou de seus dedos e ele dolorosamente levou a mão ao peito, como se quisesse extrair manualmente a imensa dor dali.
Vendo seu servo contorcer-se em agonia devido a trapaça que ele estava realizando, Abigor, mantendo a mão esquerda cerrada no ar, estendeu a direita em direção ao inimigo. No mesmo instante um tenebroso revólver negro se materializou em seu punho. Tinha um longo duplo cano preto fosco, com inscrições místicas malignas impressas em vermelho no mesmo, e o tambor enorme fornecia um aspecto robusto à ameaçadora arma infernal. Com olhos de louco, Abigor premiu o duplo gatilho sem titubear.
Emitindo um som equivalente ao rugido de mil feras raivosas, a arma diabólica vomitou uma poderosa e duplicada carga de chumbo fervente, juntamente com uma nuvem negra e fétida de pólvora. O tiro rasgou a carne de Sean com a mesma brutalidade da mordida de um cão do inferno. O Renegado, com um novo grito, largou o peito onde o coração era ferroado incessantemente, e segurou seu ombro direito, onde a clavícula fora completamente destroçada pela carga dupla de chumbo. Antes que pudesse se recuperar, um segundo disparo da arma satânica foi realizado.
 Ouvindo o som trovejante ecoar em seus ouvidos, Ridell estremeceu como se atingido por um raio quando o balaço sobrenatural rasgou seu ventre. Enquanto o seu sangue jorrava quente, vermelho e vivo, Sean Ridell tinha a impressão de que mil agulhas perfuravam seu corpo amaldiçoado. Gemeu debilmente, como se até mesmo sua voz estivesse fugindo do corpo junto com o sangramento abundante. Implacavelmente, um terceiro projétil infernal arrebentou-lhe o joelho esquerdo, fazendo com que Sean se desequilibrasse violentamente. Para não desabar, deixou-se cair de joelhos, apoiando o peso do corpo gravemente ferido sobre o joelho ileso, o direito. Em meio a espasmos de dor, sua mão direita, tremendo, vagarosa e corajosamente se encaminhou para o coldre, tentando sacar um dos Colts infernais.
Entretanto, um quarto balaço da arma mística o acertou no peito antes que pudesse concluir o saque, arremessando brutalmente o ensanguentado Renegado pesadamente de costas no deserto. Pousados nos galhos secos e desfolhados da árvore, os corvos gritavam e agitavam as asas, como se exprimissem seu contentamento sádico pela sombria situação. Arfante, Sean se virou e começou a rastejar penosamente, na esperança infundada, gerada pelo desespero, de conseguir se afastar de seu impiedoso adversário. Sob o olhar sarcástico de um demônio e diante de uma horrenda plateia de corvos, no meio do deserto, um homem ferido e humilhado tentava escapar de seu destino tenebroso, mesmo ciente de que não havia a mínima chance de fugir de seu perseguidor, ou de sua sina maldita.
Sabendo quem era o homem que deslizava sobre o próprio ventre, sangrando e sentindo a terra tórrida abrasar-lhe a pele, e conhecendo sua história de lágrimas e sangue, ciente da trajetória de um homem ainda jovem que perdera tudo o que alguém pode perder em vida e depois da mesma, qualquer observador daquela cena deplorável seria tomado de compaixão, mesmo o pior inimigo daquele sujeito. Todavia, o perseguidor de tal homem era um demônio, e o coração destes seres infernais desconhece o significado da palavra compaixão.
Rastejando para estar o mais longe que podia de Abigor, embora a gravidade dos ferimentos não tivesse permitido que ele se distanciasse muito, Sean Ridell percebeu uma sombra projetada sobre si, indicando a presença de alguém que se interpusera entre ele e o sol. Alguém que estava ali para acabar definitivamente com ele.
- Você é patético, Renegado. – falou uma voz sibilante, cheia de desprezo e desdém. – Achou mesmo que ia ser uma luta justa? Só um completo idiota confia em um demônio.  Nosso mestre é conhecido como o pai da mentira, seu tolo. Eu menti e trapaceei; isso faz parte do meu ser. Não tenho nenhum compromisso com a verdade, ou com seus códigos morais.
Rudemente o bico de uma bota fez Sean rolar para o lado, de modo que ele voltou a ficar com o rosto e a barriga virados para cima. Com olhos marejados de dor e angústia extrema, o rapaz lançou um olhar assustado ao rosto malévolo da entidade diabólica ao seu lado.
- Imaginou que fosse mais rápido que eu, Ridell? Esperava que eu tivesse clemência? No princípio, quando eu era ainda um anjo de luz, houve uma batalha feroz no Reino do Céu. Escolhendo ficar ao lado do meu mestre, enfrentei meus irmãos, Renegado. Todos eles lutam mais rápido que a própria luz. E eu matei muitos deles, e feri tantos outros. Sem misericórdia. Como você poderia imaginar que eu seria clemente com você? Como achou que poderia me dobrar, ou me vencer? Ajo apenas de acordo com os interesses de meu mestre, e não sou amigo de ninguém, além de mim mesmo.
Percebendo que o rapaz tentava dizer algo, a sombria criatura inclinou-se um pouco. Entretanto, a única coisa que saiu da boca de Sean Ridell foi uma golfada de sangue, seguida por uma tosse áspera.
- Compreendo... – murmurou Abigor ironicamente.
Abaixando-se então, o demônio segurou uma das pernas de Sean e começou a arrastá-lo pelo deserto, para em seguida falar, exatamente como nos pesadelos do rapaz:
- Seu tempo acabou, cowboy. Hora de irmos para casa.
No estado em que se encontrava, Sean não pode fazer muita coisa. Deixou escapar um longo, doloroso e desconsolado gemido, enquanto seus dedos tentavam prender-se a qualquer pequena saliência do solo acidentado, oferecendo uma débil resistência. Usando apenas uma mão para arrastar o rapaz pela perna, Abigor riu divertido ao ver os esforços do homem para impedir que fosse levado.
- Não se angustie, Renegado. Logo estaremos em sua nova morada. É ruim no início, mas depois você se acostuma. Essa árvore, acho que não sabe, mas ela marca um portal que nos permite transitar entre o seu mundo e o nosso submundo. Estou levando você para lá, pois ela é nossa porta. Quando pensava em se enforcar, você teve azar, porque eu sou o guardião desse portal. Aproximei-me para saber o que você fazia aqui, e logo que entendi, resolvi fazer minha proposta irrecusável.
Enquanto falava, Abigor, segurando a perna direita do Renegado derrotado, arrastava-o implacavelmente pelo deserto. Os locais por onde o corpo ferido de Sean Ridell passava, ficavam manchados por uma densa esteira vermelha de sangue quente, quase tão quente quanto a areia avermelhada a qual o escarlate líquido vital derramado maculava. A dor era tanta que Ridell se sentia anestesiado naquele momento, como se morresse aos poucos.
- Vocês, mortais, são seres traiçoeiros, pouco confiáveis. Não consigo entender porque o amor do Altíssimo por vocês é tão grande; mal começaram a existir, e ousadamente já se voltaram contra seu Criador. Só precisamos dar um pequeno empurrão. Seres fracos e insignificantes, é como vejo os humanos. Nascem com uma inclinação para o Mal bem maior do que para o Bem. – e lançando um olhar raivoso para o homem que arrastava, Abigor rugiu – Dei a você tudo o que queria e precisava. Vingança. Era esse o motivo pelo qual pulsava seu coração quando o encontrei bem aqui, tempos atrás. Você era apenas um garoto de cidade grande, assustado pela vida no Oeste. Morreria em dois tempos se resolvesse caçar os bandidos. Não sabia sequer segurar uma arma. Fiz de você um guerreiro formidável, um assassino infalível e indestrutível. Tudo em troca de algumas míseras gotas de sangue e sua alma em aflição. Dei a minha palavra e a mantive. Hoje você é um pistoleiro inigualável e poderoso. E como você retribui? Se voltando contra mim, tentando acabar comigo. Comigo, que tratei você como um filho. Atirando no meu cachorro... A propósito, Renegado, desde agora aprenda uma coisa: uma das leis que prevalecem no inferno é a do olho por olho, dente por dente.
Quando Abigor se calou por um instante, cheio de tristeza, Sean viu o demônio atirar muitas vezes em Pandemônio que, com um relincho estridente, ficou estatelado na areia quente, ensanguentado e agonizante. Voltando a arrastar sua vítima, Abigor prosseguiu com seu monólogo ensandecido:
- Apesar de tudo isso que está acontecendo, tenho duas notícias para você, Sean Ridell. Uma boa e outra ruim. Qual você quer ouvir primeiro? Heim? Fale mais alto, não posso ouvir você. Certo, como não consigo entender o que você diz, vou seguir a lógica. A boa notícia primeiro. Está pronto para ouvi-la, Ridell?
Abigor olhou para Sean e o viu calado, quieto, sofrendo e sangrando em silêncio. Seus olhos cinzentos mal se moviam nas órbitas. Estavam fixos no céu azul da tarde enquanto era arrastado para cada vez mais perto da árvore condenada, cuja existência marcava na Terra uma das entradas para o Inferno. O demônio continuou falando assim mesmo:
- A boa notícia que tenho para você, é que sua família não está no inferno. Nem sua mulher, nem seu filho. Nem mesmo seu empregado, o pobre Berthan. Vão todos descansar eternamente em um lugar cheio de luz e paz, rodeados de amor e blá blá blá... É uma boa novidade, não é, Renegado?
Olhando para trás por cima do ombro, Abigor viu pelo canto dos olhos um brilho de esperança surgir nos olhos cinzentos de Sean, que agora o fitava. Percebendo que despertara o interesse de seu ouvinte, o anjo caído continuou, exultante:
- E a má notícia é que você nunca mais vai vê-los, Ridell. Quem está no Inferno não pode ver quem está no Céu, e vice-versa. Você sabe que eles estarão bem e felizes, mas, eles jamais saberão que você sofrerá eternamente. Talvez com o tempo, nem se lembrem mais de você. Jamais saberão que você foi parar no abismo eterno por causa do seu amor por eles. Essa é uma notícia ruim, não é, Renegado? Na verdade, acho-a ótima. –zombou Abigor e riu malignamente.
Ao notar o brilho de esperança se esvaindo do olhar de Sean tão rapidamente quanto o sangue vazava aos borbotões pelos ferimentos, o demônio completou:
- Na verdade, quando chegar o Apocalipse, talvez você veja sua família de relance, segundos antes, de assim como o resto do inferno, ser jogado no Lago de Fogo.
E o demônio continuou rindo e falando alegremente, mas Sean não o ouvia mais. As últimas palavras do monstro doíam-lhe mais do que todos aqueles inacreditáveis ferimentos distribuídos por seu corpo. Diante de seus olhos cinzentos ele via imagens desfilando sem parar. Recordou-se da risada cristalina de Kate quando ele chegava de mansinho em casa e a abraçava de surpresa por trás, envolvendo-a pela cintura e erguendo-a do chão como se ela não pesasse nada. Girando-a no ar como se ela fosse uma boneca, sentia-se feliz tendo-a bem junto a si.
- “Eu te amo, Sean Ridell.” – dizia ela, olhando-o nos olhos, ao que ele respondia que também a amava infinitamente, antes de abraçá-la e beijá-la carinhosamente.
Sorrindo entre lágrimas, Sean também se lembrou do sorriso luminoso do pequeno James sempre que brincava com ele no quintal todas as tardes antes do café, não importava o quão cansado Sean estivesse ao chegar do trabalho. Colocava o garotinho sobre os ombros e corria com ele, brincando e rindo sem parar; era a melhor sensação do mundo para Ridell. E agora eles estavam mortos. Logo Sean também estaria, e nunca mais voltaria a vê-los. Nem nessa vida, nem na outra. Nunca mais. O que ameniza a dor daqueles que ficam neste mundo sem a presença dos entes queridos é a esperança de poder reencontrá-los um dia na outra vida, a eterna. E mesmo isso foi negado a Sean Ridell; nem mesmo a esse tênue fio de esperança ele podia se agarrar. Contudo, se ele estava indo para o Inferno, levaria consigo, em sua mente, as lembranças de sua mulher e filho. Aquele seria seu refúgio, um pedacinho do Céu o qual ninguém tiraria dele. Nem mesmo o maldito Abigor.
Enquanto Sean era arrastado em direção à árvore maldita, seus olhos cinzentos e cheios de dor fitavam o céu azul. A tarde abafada seguia tranquilamente seu rumo inalterável. O firmamento límpido era percorrido por poucas nuvens. O sol ardente espiava silenciosamente do alto enquanto uma criatura malévola e sobrenatural arrastava consigo um prisioneiro ferido através do deserto cáustico. Por que ninguém o ajudava? No dia em que vendera sua alma, o vento uivara dolorosamente. Naquela tarde em que o demônio vinha buscá-lo pessoalmente, não havia reação nenhuma da natureza, que a tudo assistia, impassível. Com a visão turva, Sean fitou o céu anil e, apesar do sangue na garganta, conseguiu murmurar:
- Eu me arrependo...
Abigor parou de repente e voltou a cabeça, furioso:
- O que foi que você disse, seu maldito?
Ignorando o demônio esbravejante, Sean repetiu com seu fio de voz, olhos fitos no céu:
- Eu me arrependo... me arrependo sinceramente...
- Cale essa boca! – bradou Abigor, fora de si.
E como Sean não parasse de murmurar para o céu, Abigor caminhou até ele, irado. Segurou a cabeça do rapaz e chocou-a violentamente contra o chão uma, duas, várias vezes. Fechou os punhos e esmurrou-lhe a face brutalmente. Cada pancada parecia pesar uma tonelada, e produzia um som seco, nauseante. Quando parou, o olho direito de Sean mal se abria. O sangue fluía livremente pelo nariz e pela boca.
- Quer dizer mais alguma coisa? – indagou Abigor, sádico.
Com um sorriso irônico mesclado a uma careta de dor, Sean cuspiu uma espuma sanguinolenta no rosto do inimigo antes de ousadamente repetir:
- Eu me arrependo...
Com um brado de fúria, Abigor desceu o punho cerrado mais algumas vezes. Os lábios de Sean se racharam e ficaram cobertos de sangue. Exausto, ele deixou a cabeça pender para trás até que ela tocasse o chão quente, e continuou fitando o céu, mas agora em silêncio. Satisfeito, Abigor voltou a arrastá-lo pelo deserto, com mesma delicadeza de quem carrega um fardo.
Quando recomeçaram a seguir em direção à árvore, os corvos se agitaram nos galhos, inexplicavelmente incomodados com algo. Arregalando o único olho que se abria, Sean viu quando, como uma flecha, uma ave desceu do céu e pousou graciosamente na árvore. Tinha certeza de que o pássaro emergira das nuvens. Tratava-se de uma belíssima pomba. Suas penas eram inteiramente brilhantes, alvas e imaculadas como a neve. Apenas os olhos eram negros, e as patas e o bico eram rosa.
A pomba aterrissou em um galho acima dos corvos, fitou-os atentamente e arrulhou com suavidade. No mesmo instante, assustados, os corvos, crocitando, ruidosamente bateram asas e voaram para longe, desaparecendo em seguida. A presença da pomba branca os afugentou em revoada, como se um caçador houvesse disparado um rifle contra o bando de negras e agourentas aves. Se assistisse àquilo, o velho Larry Parker teria rido de contentamento como uma criança, e corrido para casa, a fim de iniciar uma criação daqueles pássaros salvadores.
- Benditas pombas! – é o que ele certamente diria, sorrindo de orelha a orelha.
Sendo arrastado pelo deserto escaldante com um som rascante, em meio ao sangue que vertia impetuosamente e os milhões de pontos doloridos em seu corpo flagelado, Sean observava a pomba espantado, mirando-a com seu único olho intacto. A fascinante ave descera da nuvem em linha reta até a árvore e ali permanecia empoleirada e tranqüila. Sangrando profusamente sem ter o direito de morrer, e com a alma se agitando ardentemente em seu íntimo, o desafortunado jovem tentava entender a nova situação. O que uma pomba branca linda como aquela fazia sozinha no meio de um local diabolicamente quente e inóspito como aquele? Por que ela descera das nuvens e pousara justamente na maldita árvore, cuja existência estava imutavelmente ligada ao pavoroso destino de Ridell? E, a questão mais assombrosa que rondava a mente confusa do Renegado era: por que a nuvem negra e detestável de gralhas barulhentas fora rechaçada pela presença inofensiva e encantadora daquele lindo pássaro?
Ainda pensando nessas questões enquanto era arrastado como um saco de adubo pela aridez desértica, e notando que a árvore estava agora muito próxima, porque o sádico Abigor não tivera pressa em carregá-lo, a fim de que sua angústia fosse maior, Sean Ridell desviou o olhar intrigado da bela pomba para o céu mais uma vez. Então, estupefato, constatou que as nuvens tinham ganhado altura. Como podia ser aquilo? Duas nuvens, flutuando entre o sol, haviam subido, se distanciado da Terra. Sean nunca ouvira falar de algo semelhante. Sabia que nuvens se deslocavam horizontalmente nos céus, impelidas pelas correntes de ar nas alturas, mas jamais imaginara que elas pudessem ser empurradas pelo sopro do vento de baixo para cima, subindo cada vez mais. Então, Sean finalmente compreendeu a situação, e a resposta era ainda mais espantosa.
Não se tratava de as nuvens estarem subindo. Na verdade, elas se encontravam no mesmo lugar, navegando silenciosa e lentamente pelas alturas, como sempre fizeram desde o princípio. Naquela tarde tórrida em pleno deserto, era o sol que se movia. Com uma velocidade meteórica, o astro rei se dirigia para a Terra.
 Erguendo o braço esquerdo, cuja clavícula, diferentemente do ombro direito, estava intacta, Sean Ridell enxugou o único olho que ainda era utilizável. Passou a manga do sobretudo pelo rosto, extraindo o sangue, o suor e as lágrimas que lhe turvavam a visão. Piscando o olho, esbugalhou-o ao ter certeza de que o sol, a fonte de calor e vida do universo, despencava das alturas, rumando veloz e diretamente para o deserto. Tagarelando a seu sádico modo, Abigor nem chegou a perceber o assombro com que sua vítima fitava hipnoticamente o céu. O poderoso demônio não percebeu que, acima deles, o astro ígneo inexplicavelmente descia da abóbada celeste a uma velocidade inimaginável, e em poucos instantes tocaria o chão árido, queimando majestosamente qualquer ser vivente presente no deserto, e isso incluía Abigor e Sean.
Enquanto observava extasiado, Ridell viu que, ao contrário do que imaginava, a temperatura não se elevou no deserto. A imensa bola de fogo em queda espargia uma luz intensa, divinal e ofuscante, tanto que em pouco tempo Sean viu-se obrigado fechar o olho, pois a luminosidade começava a queimar sua vista. Sentindo o coração martelar no peito, bombeando cada vez mais rápido o sangue que percorria suas veias malditas e fugia aos jatos de seu corpanzil amaldiçoado, Sean usou seu sentido amplificado da audição para tentar entender o que se passava. Imaginava que fosse ouvir um chiado sinistro, denunciando a chegada do sol, queimando a tudo e a todos, e extinguindo instantaneamente a vida. Mas nada disso se passou. Um zumbido estridente e gradativo encheu o ar abafado, castigando os tímpanos sobrenaturalmente privilegiados de Sean.  O som parecia proceder das alturas. Seria o sol cadente sua origem?
E agora, acompanhando o zumbido, havia um segundo som. Era suave, acariciante e lembrava... Céus! Aquilo era um ruflar de asas desfraldadas? Tomado pela confusão e pela curiosidade, sem poder abrir os olhos devido a luz poderosa que o cegava, Sean sentiu quando uma sombra enorme se abateu sobre o local onde ele e Abigor estavam. Mesmo de olhos fechados, Sean teve certeza de que um pássaro gigantesco, muito maior do que qualquer outro no planeta, pairava naquele momento bem acima de onde ele se achava.  
Finalmente Abigor aparentava ter notado a presença incomum recém-chegada. O demônio estacou de repente e se calou por uns momentos. Proferindo um palavrão, a entidade infernal largou rispidamente a perna de Sean, a qual desceu pesadamente e atingiu dolorosamente o chão arenoso com um baque seco. Então, espantosamente Abigor começou a discutir inflamadamente com aquilo que parecera ser o sol aos olhos de Sean. De olhos bem fechados, o rapaz ouvia, em meio à torrente de maldições e palavras obscenas, o demônio bradar com sua voz grave e sobrenaturalmente cavernosa:
- O que pensa que está fazendo aqui? Ele me pertence, tem um pacto de sangue comigo, assinado de livre e espontânea vontade. Livre arbítrio, docinho.
E então, o zumbido ecoava em resposta. Aos poucos, Sean, após se acostumar gradativamente com o ruído estridente, percebeu se tratar na verdade de uma voz. O zumbido perdeu seu timbre irritante e agora era murmurante como o som das águas, como se a brisa e o mar falassem conjuntamente. A voz falava em uma língua desconhecida para Sean, mas era plenamente compreensível para Abigor, que respondia, rugindo:
- Não pode fazer isso! Não tem o direito! Isto é um insulto, uma quebra dos antigos acordos. Não permitirei nunca. Não devia ter vindo aqui, agora vai encontrar a destruição pelas minhas mãos!
Cheio de angústia, com a adrenalina sendo jorrada descontroladamente em sua corrente sanguínea e sem poder ver o que se passava, Sean ouviu o som de uma luta. Mas não era uma luta comum. Sua audição perfeita lhe informava de que movimentos estavam sendo realizados na velocidade da luz, e Sean então teve certeza de que não adiantaria muito se pudesse ver o que se passava, porque sua visão, por mais desenvolvida preternaturalmente que fosse, não poderia nunca acompanhar a rapidez do que acontecia bem ali, tão próximo dele.
Após angustiantes segundos de espera, Sean ouviu Abigor deixar escapar um rugido de dor. O som do ar se deslocando bruscamente indicou a passagem do demônio, que, sob o impacto de um poderoso e definitivo golpe, atravessou o espaço. O próximo som captado pelos ouvidos inumanos de Ridell foi o baque surdo de algo que se chocava violentamente contra o grosso tronco da árvore seca. Em seguida, Abigor gritando furiosamente, pronunciou mais algumas palavras horríveis. Mas a potência de sua voz passou a diminuir gradativamente, como se ele esbravejasse enquanto se afastava, até desaparecer, levando consigo o cheiro repugnante de enxofre.
Devido a junção das dores e das emoções do momento, Sean Ridell sentiu-se subitamente muito cansado. A perda maciça de sangue, embora não o matasse, o enfraquecia imensamente, tornando doloroso e árduo mesmo o menor de seus movimentos. Tentou abrir os olhos sendo porém impedido, porque a luz emanada no local ainda era intensa. Nos seus últimos segundos de consciência, Sean Ridell, mesmo de olho cerrado, sentiu uma presença agradável junto de si, e teve certeza de que alguém o olhava com benevolência. Então, o rapaz deixou a cabeça rolar para o lado e desmaiou.

Não soube precisar quando tempo flutuou envolto pelas negras brumas da inconsciência. Seu espírito parecia embalado por uma correnteza calmante de ótimas sensações. Boas lembranças o embalavam, como um abraço caloroso. Sonhos repletos de luz tranqüilizavam seu coração e pacificavam a agitação de sua mente, a qual, pouco tempo antes, estivera tão perto da loucura absoluta quanto um homem pode chegar perto de um precipício sem despencar no mesmo. Sonhou com campos floridos, céus azuis e luminosos, brisa suave, mar calmo e infinito. Nada de ampulhetas, enxofre ou cães do inferno. Apenas elementos que fossem extremamente agradáveis aos seus sentidos.
Lentamente ele sentiu que estava abandonando o sonho. Uma brisa suave acariciava seu corpo ferido e ele sentia o frescor de uma sombra bem vinda que o resguardava do sol impiedoso. Achou que ainda sonhava, pois sua última lembrança era de estar deitado de costas no deserto escaldante, sangrando abundantemente e sendo cozido pelo sol insuportavelmente quente. Sem o menor sinal de sombra no lugar. Dezenas de pássaros cantavam alegremente ali por perto, compondo uma sinfonia comovente de tão simples e bela.
A seguir, Sean achou que os sentidos lhe pregassem uma peça, pois o perfume de flores inundou seu nariz parcialmente bloqueado pelo sangue seco. Aquele aroma era inconfundível. Lírios! Devia estar mesmo sonhando. Lírios em pleno deserto? Sabia que eram lírios, pois sua mãe amava essas flores, bem como Kate. A paixão de Kate por lírios foi um dos fatores que levaram Sean a se apaixonar por ela.
Então, Sean sentiu cócegas em seu peito. Uma pressão suave, quase imperceptível, de algo que passeava tranquilamente sobre ele. Com um leve tremor de pálpebras, o rapaz conseguiu lentamente abrir o olho esquerdo. A luz agora era suave, e não mais feria sua vista. Diante de si, bem próxima de seu rosto, ele viu a cabecinha branca de uma ave que o fitava com seus olhinhos bondosos, negros e úmidos. A pombinha arrulhou alegremente e continuou saltitando tranquilamente sobre o peito quase completamente curado do Renegado. Erguendo vagarosamente a cabeça, Sean espantou-se imensamente mais uma vez. Seria aquilo uma miragem?
A imensa e seca árvore, antes guardada por Abigor, agora era verdejante e cheia de vida. Todos os galhos estavam restaurados, e cada um deles se achava repleto de folhas viçosas e perfumadas. Incontáveis pássaros coloridos, de muitos tamanhos e tipos estavam aninhados nos galhos da fabulosa árvore: era desses pássaros o canto que Sean ouvira enquanto recobrava a consciência. As poucas aves que não cantavam, bicavam alegremente a casca sedosa de frutos coloridos, suculentos e maduros, pendentes dos galhos que se agitavam com a brisa fresca e suave. A sombra que refrescara o Renegado enquanto ele estava imerso na inconsciência era oriunda dessa agora frondosa e resplandecente árvore, que em nada se parecia com aquele tronco castigado pelo sol e galhos retorcidos de antes.
Sean lançou um olhar desconfiado ao redor e vislumbrou a eterna sequidão do deserto rodeando aquela árvore milagrosamente surgida. Seria aquela mais uma piada sádica de Abigor? Uma ilusão para enganar seus olhos e aumentar sua dor? Por mais que se esforçasse, não conseguiu sentir a presença maligna do demônio nas proximidades. Não. Abigor não estava ali.
 Aquela cena era tão maravilhosamente inexplicável... Um verdadeiro oásis, fonte inesgotável de vida situada no coração daquela região inabitável de aridez e morte. Parecia um quadro exuberante caprichosamente pintado pela mão do próprio Criador, para Quem todas as coisas são possíveis, inclusive, uma árvore verdejante brotar no meio do deserto.
 A pombinha branca graciosa e subitamente alçou vôo e rumou para a portentosa árvore. Apoiando-se nos cotovelos para acompanhar o deslocamento da linda ave, Sean estremeceu de fascínio e espanto. Alcançando a árvore, a pombinha pousou na mão de alguém. A corda de Sean não se achava mais amarrada ao galho grosso como antes.
Sentada no galho onde tempos antes Sean pensara em dar fim à própria vida, havia uma jovem belíssima. Tinha a pele perfeita e sedosa como pétalas de rosa, muito branca, e os olhos mais maravilhosamente azuis e brilhantes que o Renegado já vira, encimados por longos cílios negros e graciosas sobrancelhas douradas. Os lábios, belos, finos e úmidos, possuíam a cor e a textura perfeita da rosa de Alexandria. As maçãs do rosto eram ligeiramente rosadas e combinavam com sua face linda, ovalada e luminosa. Um adorável furinho no queixo era um dos detalhes mais apaixonantes de seu semblante encantador. Seu cabelo, dourado como o trigo nos campos, era liso. Estava caprichosamente penteado ao meio e escovado com esmero. Descendo em ondas suaves, emoldurava seu rosto perfeito com uma cascata de fios áureos, a qual alcançava o ombro bem torneado. Um lírio lilás enfeitava seu cabelo, logo acima da orelha direita. Sean percebeu que, inexplicavelmente, o aroma de lírios, trazido pela brisa suave ao seu nariz, era exalado por aquela belíssima garota.
Ela usava uma camisa xadrez feminina, um cinto com fivela prateada, e uma calça de brim azul escura. A metade das pernas da calça estava enfiada nos longos canos de botas texanas marrons femininas. A moça estava vestida como uma típica cowgirl.  Ela emanava a pureza virginal de uma menina, mas tinha a atitude atenta e comportada de uma mulher. Não aparentava mais do que dezoito anos.
A pomba pousou em sua delicada mão direita e ela sorriu. Quando fitou a mão esquerda da jovem, Sean sentiu vontade de fugir: ela segurava um amarelado e maldito documento. Um papiro infernal. O contrato do pacto diabólico que o transformara no Renegado. Como aquela jovem meiga e aparentemente inofensiva arrancara aquele papel das garras de Abigor?
Quando o rapaz já se dispunha a tentar fugir rastejando, a moça pousou carinhosamente sobre ele seus magníficos olhos cor de safira. Havia luz e bondade neles. Como se conhecesse os temores do rapaz caído, e balançando as pernas despreocupadamente, a jovem sorriu exibindo uma fileira de dentes alvos e perfeitos. Em seguida, quando abriu os formosos lábios para falar, os pássaros e o vento silenciaram-se para ouvir. A voz dela, harmoniosa e suave, parecia acalentar a alma em frangalhos do Renegado:
- Não tema, Sean Ridell. Meu nome é Mariel, sou uma mensageira celestial, e venho aqui hoje em nome do próprio Deus Altíssimo. Seu clamor chegou aos ouvidos Dele. – e agitando sugestivamente o papiro na mão pequena e mimosa, ela completou – Trago a você uma proposta de redenção.


Danilo Alex da Silva

14/04/12


Queridos amigos e leitores! Quero agradecer a paciência e o carinho. Se você chegou até aqui, leu mais de cinquenta páginas desse conto que, inicialmente, teria apenas umas 3 partes e teria ao todo, no máximo, umas dez páginas. Agradeço o carinho, o apoio e a ajuda de vocês, pois vocês foram imprescindíveis para esta obra. O Renegado deve muito a vocês. 
Espero que o fim não tenha sido decepcionante porque, como sabem, cada vez que uma história termina, outra começa. É o caso da saga do Renegado: vou transformar a história dele em livro, e lá saberemos o restante de suas aventuras em busca de sua tão sonhada redenção. Não seria possível contar essa história aqui, porque, não sei se concordam, mas o Renegado merece mais espaço e detalhes. Ele merece um livro. 
Conto com vocês para me ajudar a dar continuidade nas aventuras de Sean Ridell, o Renegado. Vocês, como já disse, são fundamentais. 
Para quem tiver curiosidade, vou colocar agora no fim do post o clipe legendado da música que me inspirou esse conto. 
Obrigado por me acompanhar nessa empreitada, meu povo! Acho que nunca estive tão empolgado em escrever uma história. Obrigado, e até a próxima história! 


Abraço carinhoso


Danilo Alex da Silva