segunda-feira, 23 de abril de 2012

Jogo Maldito - Parte 3


 23 de Abril de 2012 – 23 h

Olá, meu diário de bordo, meu porto seguro! Estas páginas tem sido minha pequena porção de paz, luz e consciência em meio a um mar de trevas, insanidade e perigos. Me sinto ilhado pelo mal, um mal que eu mesmo trouxe à tona, eu mesmo provoquei. Estou começando a cansar de lutar sozinho, caro diário. Se eu desistir, será que as ondas vão me arrastar para onde? Serei tragado para as profundezas insondáveis e eternas? Talvez seja melhor. Basicamente qualquer coisa parece melhor do que ter de enfrentar dolorosamente, dia após dia e, principalmente, noite após noite, esse turbilhão de coisas inexplicáveis que me rondam e me acontecem. O que será isso? Esquizofrenia? Alucinações? Estafa mental? O Mal existente desde o princípio, conforme tantas pessoas ao redor do mundo afirmam, e do qual eu tanto duvidava?
Depois daquela primeira tentativa de comunicação com o Além por meio do tabuleiro Ouija (ou tábuas falantes, segundo o dito popular), feita em minha casa, em que a única coisa que realmente valeu a noite foi o beijo no rosto que ganhei de Julia, tentamos algumas outras vezes, na casa de outras pessoas. Não obtivemos êxito, aparentemente o “mundo espiritual” estava de portas fechadas para nós, o que a cada dia apenas aumentava minha incredulidade. As pessoas que realmente acreditavam naquela baboseira pesquisaram um pouco sobre o que deveriam ou não perguntar durante o jogo, como identificar se o espírito contatado era bom ou ruim, a forma certa de se iniciar ou encerrar a brincadeira e o modo de se fechar corretamente o tabuleiro a cada partida. Mesmo assim, apesar de nossa insistência, não conseguimos nada.
Julia, ao contrário de Carlos, sempre estava presente. Não importava onde ou quando fossemos tentar a fúnebre comunicação, lá estava ela em nosso meio, ansiosa, torcendo para que algo anormal ocorresse.
Devido nossos insucessos, nosso grupo de inicialmente quinze pessoas caiu para dez, e depois para oito. Carlos nunca estava conosco, ele fazia o possível e o impossível para se esquivar de nossas brincadeiras macabras, mesmo eu tendo repetidamente lhe contado que as reuniões eram infrutíferas em seu sentido principal. Para mim, no entanto, eram ótimas, dificilmente poderiam ser melhores. Conversava já intimamente com Julia e consegui convidá-la para sair. Fomos ao cinema ver um filme de terror que ela queria assistir, e depois tomamos sorvete. Foi bem legal, gostei muito, conversamos e rimos a valer. Se rolou algo? Ainda não, Julia é uma garota bem inacessível afetivamente, quase inatingível, eu diria. A sorte é que sou praticamente incansável quando busco um objetivo. Além do que, não tenho pressa. Me considero muito jovem para namorar; só de estar perto dela já me sinto muito bem.
Há alguns dias, Carlos finalmente apareceu em uma de nossas reuniões. E foi quando tudo realmente começou. Iríamos nos reunir pela tarde, porque durante as noites estava ficando complicado de convencer os pais a nos levar, e eles começavam a desconfiar dessa nossa súbita e anormal maratona de estudos nas casas dos colegas. Quem vai entender os adultos? Se os jovens nunca se reúnem para estudar, não querem nada com a vida. E se resolvem se reunir demais, estão necessariamente aprontando alguma coisa. Eu até chamaria isso de preconceito, se em nosso caso eles não estivessem absolutamente certos.
Cumpridos os procedimentos iniciais, pousamos nosso dedo indicador sobre o ponteiro que era, na verdade, uma palheta triangular de vidro. Carlos, um tanto trêmulo, nos imitou, embora resmungasse que aquilo não estava certo, e que havia outros jogos mais saudáveis os quais poderíamos realizar. Banco Imobiliário, por exemplo. Ele era um grande fã, seu sonho era um dia se tornar um grande administrador de empresas, exatamente como o pai. Era desestimulante jogar Banco Imobiliário com Carlos, porque ele sempre vencia. Naquele tarde, entretanto, ele resignou-se a participar de nossa sombria brincadeira, um jogo que, futuramente viríamos a descobrir, podia ser tão perigoso quanto a Roleta-russa.
Carlos estava em casa quando cheguei de surpresa para buscá-lo. Sem poder inventar uma desculpa convincente, ele não teve escapatória senão concordar em ir comigo. Naquela tarde, a reunião seria na casa de Fábio, um dos integrantes remanescentes do já desanimado grupo de jogadores. Conforme o costume já adotado, o dono da casa saudou os seres espirituais que estivessem por perto, pediu permissão a eles para iniciarmos o jogo, e perguntou se havia alguém ali conosco, em espírito.
Tomamos um susto quando o ponteiro se moveu repentinamente sob nossos indicadores, encaminhando-se para a beirada do tabuleiro, e só parou quando chegou ao destino. “Sim”, foi a resposta que pudemos ler. Olhei desconfiadamente ao redor, fitando com atenção o rosto de meus companheiros, tentando descobrir quem era o espertinho que estava movimentando o ponteiro de modo a parecer que havia um fantasma por ali. Todavia, o assombro de todos era genuíno, sincero. Até Julia estava mais pálida que o habitual. Um tremor quase convulsivo se apoderara de Carlos, e pedi em voz baixa que ele se acalmasse. O que era aquilo? Não podia ser real, alguém entre nós tinha de ter movido aquela peça. Alguém de carne e osso.
Engolindo em seco, o pessoal, em uníssono, cumprimentou o espírito. Até eu me juntei ao coro, apesar de me sentir um pouco ridículo fazendo isso. Novamente o ponteiro se moveu vigorosamente sobre o tabuleiro, produzindo um som levemente rascante, mas imensamente sombrio. Dessa vez até eu senti os cabelos da nuca eriçar enquanto meus olhos liam a nova resposta, que foi “Olá”. Como podia ser aquilo? A ciência explica que o tabuleiro não tem nenhuma propriedade sobrenatural. O que acontece é que o cursor é movido inconscientemente pelos próprios jogadores. Isso se chama Efeito Ideomotor.  Sim, tinha de ser essa a explicação; depois de tanto tempo esperando que algo incrível acontecesse, os participantes do jogo começaram a manipular o resultado sem perceber. Era o inconsciente agindo para solucionar uma frustração.
Minha cabeça funcionava a mil. Podia ouvir em minha mente a razão digladiando com as sugestões do emocional, do mesmo modo que um leão, certo da derrota, ainda luta bravamente contra um bando de hienas que o tenha cercado, buscando sobreviver. Enquanto eu pensava intensamente sobre tudo isso, a galera fazia diversas perguntas ao nosso estranho e invisível visitante. 
- Qual seu nome? – quis saber Julia, animadíssima.
Mal ela terminou de perguntar, a palheta se moveu arrastando nossos indicadores consigo, mostrando uma letra por vez, até formar um nome masculino.
- Arthur... – leu Carlos num sussurro amedrontado.
- Quantos anos tinha quando faleceu? – indagou Fábio extasiado.
E lá se foi novamente o ponteiro viajando pela tábua mística. Eu queria soltar a palheta, mas algo me impedia, um magnetismo inexplicável. Para você ter uma idéia de como a palheta se movimentava, era mais ou menos como quando você coloca uma moeda sobre a mesa e um imã por baixo da mesma, sabe? Daí você puxa o imã sob a mesa, levando-o de um lado a outro, e a moeda, desliza aparentemente sozinha na superfície polida acima. Cheguei a verificar sob a mesa se alguém manipulava o jogo de uma maneira similar a essa do imã, mesmo sabendo que o ponteiro era de vidro.
 Meus olhos acompanhavam hipnoticamente o movimento da palheta, a qual naquele momento acabava de mostrar a idade de nosso interrogado. Arthur tinha dezessete anos quando faleceu. Mecanicamente olhamos todos para Carlos, pois entre nós ele era o único que ainda não completara dezoito anos de idade. Meu melhor amigo engoliu em seco.
Depois de algumas perguntas, o nosso sinistro convidado contatado pareceu perder um pouco do interesse e, em dado momento, ao invés de responder o que lhe pediram, conduziu o ponteiro para “Adeus” e não mais se manifestou naquela tarde. Então, decidiu-se encerrar a partida, e cumpriram o ritual próprio para isso. Terminada a funesta brincadeira, com exceção de Carlos e de mim, os presentes se cumprimentaram, satisfeitíssimos pelo acontecido. Carlos beirava o pânico e eu ainda não estava convencido. A meu ver, alguém entre nós tinha feito aquilo.
Julia propôs que todos guardassem segredo sobre o acontecido, pois, não era justo que as pessoas que desistiram antes soubessem da comunicação com Arthur. Segundo ela, era um mérito apenas do nosso grupinho de oito pessoas, nove contando com Carlos naquela fatídica tarde. Resolveram registrar a cena e puseram em minha mão uma máquina fotográfica de última geração, para que todos os presentes tivessem uma recordação daquele primeiro contato com o sobrenatural. Ali, na quase penumbra da sala de Fábio, entre velas e o tabuleiro, eu enquadrei meu grupo de camaradas e me preparei para tirar a foto.
- Vamos nos lembrar desse dia durante o resto de nossas vidas. – disse Julia com um sorriso encantador, segundos antes que eu os fotografasse. Ela não poderia fazer idéia na época do quão proféticas seriam suas palavras.
Acionei o botão e ouviu-se um clique. O flash percorreu a sala com a luminosidade e brevidade de um relâmpago em noite chuvosa. Estava feito. Acendemos as luzes, guardamos o tabuleiro e voltamos para nossas casas.
Quando escureceu, eu já estava em casa. Depois de fazer minhas lições escolares e tomar banho, sentei-me diante do computador, como fazia toda noite, para checar e-mails, atualizar minhas redes sociais ou simplesmente jogar on-line ouvindo um bom e velho Rock and Roll. Acessei minha caixa de e-mails e percebi que menos de cinco minutos antes Julia me enviara uma mensagem intitulada “A foto mais importante das nossas vidas”. Tranquilamente abri o e-mail e percebi que ela o encaminhara apenas para as pessoas que estavam presentes na casa do Fábio naquela tarde. A foto viera como um arquivo anexo. Cliquei para fazer o download e, durante os poucos segundos gastos para que se realizasse essa operação, aproveitei para responder um amigo que me chamava desesperadamente em um chat, em outra página do navegador.  
Instantes depois, voltei à foto, que já estava aberta e ampliada no centro do monitor. Sorri vendo os rostos sorridentes dos companheiros, admirei embevecido a face de Julia e me diverti com a expressão assustada de Carlos. Entretanto, subitamente parei de sorrir e franzi a sobrancelha. Havia algo errado.
Caro diário de bordo, desculpe minha letra tremida neste trecho da história, mas isso só acontece devido o pânico de recordar o que contarei a seguir. Havia dez pessoas na foto, quando na verdade, apenas nove tinham estado na casa de Fábio naquela tarde. Na semi-escuridão da sala de nosso anfitrião, um décimo rosto aparecia flutuando pouco acima da cabeça de Julia. Era um garoto sério, de cabelos loiros, lisos e curtos, e olhar indecifrável. Seus olhos brilhavam mais do que os de qualquer outra pessoa na foto. E o mais estranho de tudo era que ele parecia olhar diretamente para mim. Não suportei a visão daquele olhar e fechei a página imediatamente. Aquela foi a primeira noite em que não consegui dormir.
Meu caro diário de bordo, meu caderno de confissões, talvez agora você comece a compreender em que tipo de situação minha incredulidade me meteu. Se meu navio afundar, espero que estas páginas escapem ao naufrágio, para que no futuro alguém possa conhecer essa história e entender o desfecho dos personagens, que talvez seja inexplicável pela lógica humana. Finais não tão felizes de histórias como essa dificilmente são explicáveis ou compreensíveis.
Caro diário, vou parando por aqui essa noite. Era preciso contar-te a respeito dessa tarde, mas me lembrar da malfadada foto extingue totalmente minha vontade de escrever. Acho que vou descer e comer alguma coisa, talvez faça companhia ao meu pai na sala durante algum tempo; daqui posso ouvir a televisão ligada lá embaixo. Se ainda assim o sono não vier, talvez tenha de recorrer a um copo de leite ou a um calmante, como praticamente já é minha rotina. Tão logo me recupere dessas lembranças macabras e inquietantes, voltarei aqui, caro diário de bordo. Ainda há muito a contar.
Boa noite, e
Até breve!

Danilo Alex da Silva

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