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de Abril de 2012 – 23 h
Olá, meu diário de
bordo, meu porto seguro! Estas páginas tem sido minha pequena porção de paz,
luz e consciência em meio a um mar de trevas, insanidade e perigos. Me sinto
ilhado pelo mal, um mal que eu mesmo trouxe à tona, eu mesmo provoquei. Estou
começando a cansar de lutar sozinho, caro diário. Se eu desistir, será que as
ondas vão me arrastar para onde? Serei tragado para as profundezas insondáveis
e eternas? Talvez seja melhor. Basicamente qualquer coisa parece melhor do que
ter de enfrentar dolorosamente, dia após dia e, principalmente, noite após
noite, esse turbilhão de coisas inexplicáveis que me rondam e me acontecem. O
que será isso? Esquizofrenia? Alucinações? Estafa mental? O Mal existente desde
o princípio, conforme tantas pessoas ao redor do mundo afirmam, e do qual eu
tanto duvidava?
Depois daquela primeira
tentativa de comunicação com o Além por meio do tabuleiro Ouija (ou tábuas
falantes, segundo o dito popular), feita em minha casa, em que a única coisa
que realmente valeu a noite foi o beijo no rosto que ganhei de Julia, tentamos
algumas outras vezes, na casa de outras pessoas. Não obtivemos êxito,
aparentemente o “mundo espiritual” estava de portas fechadas para nós, o que a
cada dia apenas aumentava minha incredulidade. As pessoas que realmente
acreditavam naquela baboseira pesquisaram um pouco sobre o que deveriam ou não
perguntar durante o jogo, como identificar se o espírito contatado era bom ou
ruim, a forma certa de se iniciar ou encerrar a brincadeira e o modo de se
fechar corretamente o tabuleiro a cada partida. Mesmo assim, apesar de nossa
insistência, não conseguimos nada.
Julia, ao contrário de
Carlos, sempre estava presente. Não importava onde ou quando fossemos tentar a
fúnebre comunicação, lá estava ela em nosso meio, ansiosa, torcendo para que
algo anormal ocorresse.
Devido nossos
insucessos, nosso grupo de inicialmente quinze pessoas caiu para dez, e depois
para oito. Carlos nunca estava conosco, ele fazia o possível e o impossível
para se esquivar de nossas brincadeiras macabras, mesmo eu tendo repetidamente
lhe contado que as reuniões eram infrutíferas em seu sentido principal. Para
mim, no entanto, eram ótimas, dificilmente poderiam ser melhores. Conversava já
intimamente com Julia e consegui convidá-la para sair. Fomos ao cinema ver um
filme de terror que ela queria assistir, e depois tomamos sorvete. Foi bem
legal, gostei muito, conversamos e rimos a valer. Se rolou algo? Ainda não,
Julia é uma garota bem inacessível afetivamente, quase inatingível, eu diria. A
sorte é que sou praticamente incansável quando busco um objetivo. Além do que,
não tenho pressa. Me considero muito jovem para namorar; só de estar perto dela
já me sinto muito bem.
Há alguns dias, Carlos
finalmente apareceu em uma de nossas reuniões. E foi quando tudo realmente
começou. Iríamos nos reunir pela tarde, porque durante as noites estava ficando
complicado de convencer os pais a nos levar, e eles começavam a desconfiar
dessa nossa súbita e anormal maratona de estudos nas casas dos colegas. Quem vai
entender os adultos? Se os jovens nunca se reúnem para estudar, não querem nada
com a vida. E se resolvem se reunir demais, estão necessariamente aprontando
alguma coisa. Eu até chamaria isso de preconceito, se em nosso caso eles não
estivessem absolutamente certos.
Cumpridos os
procedimentos iniciais, pousamos nosso dedo indicador sobre o ponteiro que era,
na verdade, uma palheta triangular de vidro. Carlos, um tanto trêmulo, nos
imitou, embora resmungasse que aquilo não estava certo, e que havia outros jogos
mais saudáveis os quais poderíamos realizar. Banco Imobiliário, por exemplo.
Ele era um grande fã, seu sonho era um dia se tornar um grande administrador de
empresas, exatamente como o pai. Era desestimulante jogar Banco Imobiliário com
Carlos, porque ele sempre vencia. Naquele tarde, entretanto, ele resignou-se a
participar de nossa sombria brincadeira, um jogo que, futuramente viríamos a
descobrir, podia ser tão perigoso quanto a Roleta-russa.
Carlos estava em casa
quando cheguei de surpresa para buscá-lo. Sem poder inventar uma desculpa
convincente, ele não teve escapatória senão concordar em ir comigo. Naquela
tarde, a reunião seria na casa de Fábio, um dos integrantes remanescentes do já
desanimado grupo de jogadores. Conforme o costume já adotado, o dono da casa
saudou os seres espirituais que estivessem por perto, pediu permissão a eles
para iniciarmos o jogo, e perguntou se havia alguém ali conosco, em espírito.
Tomamos um susto quando
o ponteiro se moveu repentinamente sob nossos indicadores, encaminhando-se para
a beirada do tabuleiro, e só parou quando chegou ao destino. “Sim”, foi a
resposta que pudemos ler. Olhei desconfiadamente ao redor, fitando com atenção
o rosto de meus companheiros, tentando descobrir quem era o espertinho que
estava movimentando o ponteiro de modo a parecer que havia um fantasma por ali.
Todavia, o assombro de todos era genuíno, sincero. Até Julia estava mais pálida
que o habitual. Um tremor quase convulsivo se apoderara de Carlos, e pedi em
voz baixa que ele se acalmasse. O que era aquilo? Não podia ser real, alguém
entre nós tinha de ter movido aquela peça. Alguém de carne e osso.
Engolindo em seco, o
pessoal, em uníssono, cumprimentou o espírito. Até eu me juntei ao coro, apesar
de me sentir um pouco ridículo fazendo isso. Novamente o ponteiro se moveu
vigorosamente sobre o tabuleiro, produzindo um som levemente rascante, mas
imensamente sombrio. Dessa vez até eu senti os cabelos da nuca eriçar enquanto
meus olhos liam a nova resposta, que foi “Olá”. Como podia ser aquilo? A
ciência explica que o tabuleiro não tem nenhuma propriedade sobrenatural. O que
acontece é que o cursor é movido inconscientemente pelos próprios jogadores.
Isso se chama Efeito Ideomotor. Sim, tinha de ser essa a explicação;
depois de tanto tempo esperando que algo incrível acontecesse, os participantes
do jogo começaram a manipular o resultado sem perceber. Era o inconsciente
agindo para solucionar uma frustração.
Minha cabeça funcionava
a mil. Podia ouvir em minha mente a razão digladiando com as sugestões do emocional,
do mesmo modo que um leão, certo da derrota, ainda luta bravamente contra um
bando de hienas que o tenha cercado, buscando sobreviver. Enquanto eu pensava
intensamente sobre tudo isso, a galera fazia diversas perguntas ao nosso
estranho e invisível visitante.
- Qual seu nome? – quis
saber Julia, animadíssima.
Mal ela terminou de
perguntar, a palheta se moveu arrastando nossos indicadores consigo, mostrando
uma letra por vez, até formar um nome masculino.
- Arthur... – leu Carlos
num sussurro amedrontado.
- Quantos anos tinha
quando faleceu? – indagou Fábio extasiado.
E lá se foi novamente o
ponteiro viajando pela tábua mística. Eu queria soltar a palheta, mas algo me
impedia, um magnetismo inexplicável. Para você ter uma idéia de como a palheta
se movimentava, era mais ou menos como quando você coloca uma moeda sobre a
mesa e um imã por baixo da mesma, sabe? Daí você puxa o imã sob a mesa,
levando-o de um lado a outro, e a moeda, desliza aparentemente sozinha na
superfície polida acima. Cheguei a verificar sob a mesa se alguém manipulava
o jogo de uma maneira similar a essa do imã, mesmo sabendo que o ponteiro era
de vidro.
Meus olhos acompanhavam hipnoticamente o
movimento da palheta, a qual naquele momento acabava de mostrar a idade de
nosso interrogado. Arthur tinha dezessete anos quando faleceu. Mecanicamente
olhamos todos para Carlos, pois entre nós ele era o único que ainda não
completara dezoito anos de idade. Meu melhor amigo engoliu em seco.
Depois de algumas
perguntas, o nosso sinistro convidado contatado pareceu perder um pouco do
interesse e, em dado momento, ao invés de responder o que lhe pediram, conduziu
o ponteiro para “Adeus” e não mais se manifestou naquela tarde. Então,
decidiu-se encerrar a partida, e cumpriram o ritual próprio para isso. Terminada
a funesta brincadeira, com exceção de Carlos e de mim, os presentes se
cumprimentaram, satisfeitíssimos pelo acontecido. Carlos beirava o pânico e eu
ainda não estava convencido. A meu ver, alguém entre nós tinha feito aquilo.
Julia propôs que todos
guardassem segredo sobre o acontecido, pois, não era justo que as pessoas que
desistiram antes soubessem da comunicação com Arthur. Segundo ela, era um
mérito apenas do nosso grupinho de oito pessoas, nove contando com Carlos
naquela fatídica tarde. Resolveram registrar a cena e puseram em minha mão uma
máquina fotográfica de última geração, para que todos os presentes tivessem uma
recordação daquele primeiro contato com o sobrenatural. Ali, na quase penumbra
da sala de Fábio, entre velas e o tabuleiro, eu enquadrei meu grupo de
camaradas e me preparei para tirar a foto.
- Vamos nos lembrar
desse dia durante o resto de nossas vidas. – disse Julia com um sorriso
encantador, segundos antes que eu os fotografasse. Ela não poderia fazer idéia na
época do quão proféticas seriam suas palavras.
Acionei o botão e
ouviu-se um clique. O flash percorreu a sala com a luminosidade e brevidade de
um relâmpago em noite chuvosa. Estava feito. Acendemos as luzes, guardamos o
tabuleiro e voltamos para nossas casas.
Quando escureceu, eu já
estava em casa. Depois de fazer minhas lições escolares e tomar banho,
sentei-me diante do computador, como fazia toda noite, para checar e-mails,
atualizar minhas redes sociais ou simplesmente jogar on-line ouvindo um bom e
velho Rock and Roll. Acessei minha caixa de e-mails e percebi que menos de cinco
minutos antes Julia me enviara uma mensagem intitulada “A foto mais importante
das nossas vidas”. Tranquilamente abri o e-mail e percebi que ela o encaminhara
apenas para as pessoas que estavam presentes na casa do Fábio naquela tarde. A
foto viera como um arquivo anexo. Cliquei para fazer o download e, durante os
poucos segundos gastos para que se realizasse essa operação, aproveitei para responder um amigo que me
chamava desesperadamente em um chat, em outra página do navegador.
Instantes depois, voltei
à foto, que já estava aberta e ampliada no centro do monitor. Sorri vendo os
rostos sorridentes dos companheiros, admirei embevecido a face de Julia e me
diverti com a expressão assustada de Carlos. Entretanto, subitamente parei de
sorrir e franzi a sobrancelha. Havia algo errado.
Caro diário de bordo,
desculpe minha letra tremida neste trecho da história, mas isso só acontece
devido o pânico de recordar o que contarei a seguir. Havia dez pessoas na foto,
quando na verdade, apenas nove tinham estado na casa de Fábio naquela tarde. Na
semi-escuridão da sala de nosso anfitrião, um décimo rosto aparecia flutuando
pouco acima da cabeça de Julia. Era um garoto sério, de cabelos loiros, lisos e
curtos, e olhar indecifrável. Seus olhos brilhavam mais do que os de qualquer outra
pessoa na foto. E o mais estranho de tudo era que ele parecia olhar diretamente
para mim. Não suportei a visão daquele olhar e fechei a página imediatamente. Aquela
foi a primeira noite em que não consegui dormir.
Meu caro diário de
bordo, meu caderno de confissões, talvez agora você comece a compreender em que
tipo de situação minha incredulidade me meteu. Se meu navio afundar, espero que
estas páginas escapem ao naufrágio, para que no futuro alguém possa conhecer
essa história e entender o desfecho dos personagens, que talvez seja
inexplicável pela lógica humana. Finais não tão felizes de histórias como essa
dificilmente são explicáveis ou compreensíveis.
Caro diário, vou
parando por aqui essa noite. Era preciso contar-te a respeito dessa tarde, mas
me lembrar da malfadada foto extingue totalmente minha vontade de escrever. Acho
que vou descer e comer alguma coisa, talvez faça companhia ao meu pai na sala
durante algum tempo; daqui posso ouvir a televisão ligada lá embaixo. Se ainda
assim o sono não vier, talvez tenha de recorrer a um copo de leite ou a um
calmante, como praticamente já é minha rotina. Tão logo me recupere dessas
lembranças macabras e inquietantes, voltarei aqui, caro diário de bordo. Ainda
há muito a contar.
Boa noite, e
Até breve!
Danilo Alex da Silva
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