quinta-feira, 12 de abril de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte IX

"É apenas um mundo louco em que vivemos

E eu estou fora de minha mente

Você reza pelo amanhã, mas você está partindo hoje

O Maligno está vindo e está batendo em sua porta
Porque hoje é o dia em que você vai pagar.
Eu estou rezando para que você nunca saiba
Que eu estou encarando o inferno."


(Facing Hell - Ozzy Osbourne)


Sean voltou-se lentamente para fitar os olhos maldosamente tranqüilos de seu detestável interlocutor. Disse devagar, como se medisse cada palavra:
- Sim, precisamos conversar. – e sustentando o olhar interrogativo de Abigor, prosseguiu sem titubear – Quero desfazer nosso pacto.
Abigor, com uma atuação digna de um ator medíocre, arqueou a sobrancelha como se estivesse surpreso, e em seguida seu vozeirão fúnebre ecoou:
- Está falando sério? Essa não, Sean. Pensei que fossemos amigos... – completou o demônio, fingindo estar magoado.
Seria cômica a situação, se ela não fosse absolutamente trágica. Sean percebeu que, sob o comportamento deliberadamente teatral da entidade infernal havia muito mais que o aparente sarcasmo peculiar. Havia um sinal claro de perigo.
Os dois se encaram em silêncio por um instante antes que Abigor voltasse a falar, dessa vez pausadamente, e sua voz surgia seca, despida do habitual falso tom de cordialidade:
 - Achei que tivesse sido bem claro, Renegado. No lugar de onde venho, as coisas não funcionam desse modo. Caso contrário, perderíamos nossa credibilidade com os outros clientes em potencial. Nossa... loja, vamos dizer assim, está sempre disponível e, justamente por esse motivo – Abigor cravou friamente seus olhos negros cintilantes nos olhos cinzentos de Sean e disse lentamente, escandindo bem as sílabas – Não aceitamos devolução. De maneira nenhuma.
Sean franziu a testa, preocupado, e uma gota de suor brotou de sua têmpora. Notando os indícios de terror iminente na face de seu desafortunado protegido, Abigor completou, tentando suavizar um pouco sua voz macabra e inumana:
- Realmente gosto de você, Sean Ridell. Sei que vamos nos dar muito bem. Se quer saber, intercederei por você no inferno. Depois de uns cem ou duzentos anos de tormentos, posso providenciar para que você seja promovido. A tortura inicial é inevitável, é praxe para todas as almas que chegam ao abismo eterno. Porém, transcorrido esse tempo, farei de você meu capataz; um carrasco perfeito. Juntos, destroçaremos as almas infelizes. Ensinarei a você todas as técnicas de tortura, para que seja provocado o máximo de dor, e para que o sangue pecador irrigue as terras tórridas do inferno. Essa é a vantagem de ser um habitante da morada infernal: quanto mais maligno você for, mais recompensado será. Pode chegar a chefiar pequenos contingentes de almas torturadoras, basta ter talento. Talvez agora minha proposta não pareça suficientemente boa, mas, acredite, cem ou duzentos anos sendo torturado não são nada perto da eternidade em aflição.
- Não posso ir para o inferno – murmurou Sean, suando frio – Usei meus poderes para fazer coisas boas às pessoas. Mesmo minha vingança foi útil para as autoridades e para os cidadãos de boa índole.
Mal Sean terminou de falar, a gargalhada sinistra e odiosa de Abigor chegou a seus ouvidos, fazendo seu sangue ferver.
- Você é hilário, Renegado. Há tempos que eu não ria assim. Acreditou mesmo que usar os poderes para o Bem faria de você um homem livre de seu pacto de sangue? Sua alma está prometida ao inferno. O olhar divino não mais contabiliza suas boas obras, porque você voluntariamente escolheu o pecado, a morte e as trevas. Você, e ninguém mais, é responsável por seu destino, por pior que ele seja. E o seu destino é o inferno, Ridell. As almas que você enviou para lá estão ansiosas para recepcioná-lo. Durante os primeiros cinqüenta anos de agonia pelos quais você tem de passar, os assassinos que você matou é que o castigarão.
Notando a angústia e a hesitação de Sean, Abigor emitiu um assobio tranqüilo e esperou. Segundos mais tarde, um imenso cão negro de olhos vermelhos e incandescentes como lava materializou-se ao seu lado. O terrível animal estava sentado sobre as patas traseiras, imóvel como uma estátua ameaçadora, mirando Sean fixamente com seus olhos insanamente perturbadores. Era o mesmo cão de caça infernal que Sean vira perseguir e capturar as almas no saloon Night Train, em Conquest City. Usava a mesma coleira escarlate, repleta de espinhos. Seu pelo negro contrastava com o de Pandemônio, e o sol inclemente reluzia na pelagem de ambos. O garanhão negro bufou nervosamente quando o imenso cão surgiu repentinamente, como que brotando do seio da terra.
- Isso... é mesmo necessário? –indagou Sean, engolindo em seco.
- Você é quem determina, Ridell. – replicou Abigor enquanto afagava distraidamente a cabeça descomunal de seu cão nada adorável. – Chamei Tiberius aqui apenas como um incentivo, porque você me parece muito inseguro quanto ao cumprimento do nosso trato. Tudo o que tem a fazer é apenas...
O ser infernal não pode concluir a frase porque algo completamente inesperado, surpreendente mesmo para ele, aconteceu. Com a velocidade do relâmpago fendendo as nuvens escuras, o Renegado levou a mão por dentro do sobretudo, e alcançou um terceiro revólver, que trazia oculto em um coldre  sob a axila esquerda. Sacou e disparou quase sem mirar. Apertou o gatilho duas vezes. Dois estampidos secos e decisivos ecoando na imensidão do deserto. Tudo numa velocidade imensa, muito mais rápido do que estou contando.
Alvejado simultaneamente no peito e no pescoço, ganindo de dor como um vira-latas qualquer, Tiberius foi lançado para trás pelo soberbo impacto das balas de pesado calibre, e rolou pelo chão esturricado de sol. Seu sangue era vermelho escuro, quase negro.O cão do inferno permaneceu quieto e fumegante, e então evaporou no ar, desaparecendo em seguida, como uma luz que se apaga repentinamente. Abismado, Abigor fuzilou Sean com os olhos, que agora eram duas bolas negras e flamejantes a ocupar completamente as órbitas. Parecia um céu escuro, pressagiando tempestade, riscado por relâmpagos. Trêmulo de raiva, o sombrio guardião fitou intensamente o rapaz:
- Atirou no meu cachorro, garoto? E com balas abençoadas? Devo admitir, foi muita coragem de sua parte. Então é por isso que hoje, por breves momentos, você desapareceu do meu campo de visão. Esteve numa igreja recolhendo água benta para santificar a munição do revólver novo, heim? Que tal a dor, Sean Ridell? Qual foi a sensação de ser um indesejável na casa de Deus?
Como Sean não respondesse, Abigor caminhou calmamente para o lado sem despregar os olhos dele, como um leão que cercasse a presa. De dedo em riste, rosnou ameaçadoramente:
- Sorte sua que meu cão apenas foi enviado de volta ao inferno, garoto. Ferimentos causados por objetos consagrados são muito difíceis de curar nesse plano; no inferno eles cicatrizam melhor e mais rápido.
De pé, Sean Ridell empunhava com firmeza o revólver cromado fumegante. Contemplando as chispas de ódio que os negros olhos do monstro disparavam, Sean Ridell ordenou:
- Entregue para mim o contrato do pacto, Abigor.
- Ou então o que, garoto? Vai atirar em mim também? – chiou Abigor entre os dentes cerrados de ódio incontido – Me enviar de volta ao inferno não resolve seu problema, apenas adia. Quando você chegar aos abismos, depois do que fez, Tiberius vai ser mais um dos ansiosos para brincar com você, meu amigo.
- Vamos duelar. – propôs Sean súbita e suavemente – Você e eu, empunhando as armas. Se eu ganhar, você me entrega o papiro. E se eu perder...
- Se você perder, Sean Ridell, levo você agora mesmo comigo, direto para o inferno. O que acaba de fazer é uma tentativa clara de rescindir o contrato. Atentando contra o meu cão, você infringiu uma das principais cláusulas do acordo, a qual, se rompida, me concede o direito irrevogável de encerrar o seu tempo aqui e ceifar sua alma imediatamente.
- Qual cláusula? Onde estava escrito isso? – Sean estava sinceramente confuso – Não me lembro de ter lido algo parecido.
Com sua típica risada sinistra, Abigor, furioso, sentiu mórbido prazer em responder:
- Você não lembra, porque não teve interesse em ler o contrato, cowboy. Estava tão obcecado por vingança, que assinou sem pensar. – e fazendo um muxoxo de falsa desaprovação, o demônio abanou a cabeça negativa e desdenhosamente antes de prosseguir – Devia ter tido o cuidado de ao menos ler, ao menos tentar saber a respeito do trato que estava selando, jovem Ridell. Afinal, sua alma estava em jogo. E agora não há mais como voltar atrás.
- Vamos resolver logo esta questão. – retrucou o rapaz de modo decidido, engatilhando destemidamente seu revólver.
- Um duelo com o diabo, Sean Ridell? Isso não pode acabar bem, você sabe. Principalmente agora porque, mais do que nunca, desejo vê-lo arder no inferno. – Abigor refletiu por um instante e prosseguiu, com uma risada duvidosa, repentina e aparentemente condescendente:
- Entretanto, farei isso. Concederei a você esta oportunidade, parece justo: meu papiro por sua alma. Diabos! Gosto mesmo de você, essa é minha atual fraqueza, Renegado.Vejamos do que você é realmente feito.
As últimas palavras do demônio ecoaram cavernosamente pelo deserto, carregadas pelo vento impetuoso que fazia a orla de seus sobretudos se agitarem vigorosamente, farfalhando sinistramente como as asas negras dos corvos encarapitados na árvore maldita. As palavras do ser iníquo tiveram o efeito de despertar em Sean um desespero crescente. Tensão. Os olhos enigmáticos cinzentos de Sean cravados nos olhos negros e raivosos de Abigor. O tempo corria devagar e o sol observava atentamente os dois desafiantes se encarando em pleno deserto. Olhos semicerrados, dedos relaxados. O vento ardente soprando, e nada mais.
Se movendo o mais rapidamente que podia, Sean ergueu o revólver, o qual já trazia em punho. Estava confiante, a despeito de seus temores, pois, em uma luta justa, acreditava haver uma chance de vitória. Estava prestes a puxar o gatilho e estranhou o fato de Abigor não ter ainda feito menção de sacar sua arma. Estaria o demônio desarmado? Então, rindo macabramente, Abigor ergueu inesperadamente a mão esquerda enluvada acima da cabeça.
O gesto desconcertou Sean. A mão do anjo caído estava livre, desarmada aparentemente. Então, Abigor fechou furiosamente o punho levantado, num gesto colérico de quem esmaga algo entre os dedos.


Continua...


Danilo Alex 


Nenhum comentário:

Postar um comentário