"Ele olhou para cima, sua voz soava como um sino:
Dê-me mais uma chance para fazer as coisas certas
Só mais uma chance, eu seguirei a luz"
(No Second Chances - White Cross)
Sean Ridell soltou um grito rouco quando uma dor fina e terrível penetrou seu peito e estraçalhou seu ser; tinha a impressão de que a mão abominável de Abigor estava espremendo seu coração. Acionou o gatilho instintivamente, apenas para ver seu tiro desperdiçado passar muito longe do alvo. O revólver escorregou de seus dedos e ele dolorosamente levou a mão ao peito, como se quisesse extrair manualmente a imensa dor dali.
Vendo seu servo contorcer-se em agonia devido a trapaça que ele estava realizando, Abigor, mantendo a mão esquerda cerrada no ar, estendeu a direita em direção ao inimigo. No mesmo instante um tenebroso revólver negro se materializou em seu punho. Tinha um longo duplo cano preto fosco, com inscrições místicas malignas impressas em vermelho no mesmo, e o tambor enorme fornecia um aspecto robusto à ameaçadora arma infernal. Com olhos de louco, Abigor premiu o duplo gatilho sem titubear.
Emitindo um som equivalente ao rugido de mil feras raivosas, a arma diabólica vomitou uma poderosa e duplicada carga de chumbo fervente, juntamente com uma nuvem negra e fétida de pólvora. O tiro rasgou a carne de Sean com a mesma brutalidade da mordida de um cão do inferno. O Renegado, com um novo grito, largou o peito onde o coração era ferroado incessantemente, e segurou seu ombro direito, onde a clavícula fora completamente destroçada pela carga dupla de chumbo. Antes que pudesse se recuperar, um segundo disparo da arma satânica foi realizado.
Ouvindo o som trovejante ecoar em seus ouvidos, Ridell estremeceu como se atingido por um raio quando o balaço sobrenatural rasgou seu ventre. Enquanto o seu sangue jorrava quente, vermelho e vivo, Sean Ridell tinha a impressão de que mil agulhas perfuravam seu corpo amaldiçoado. Gemeu debilmente, como se até mesmo sua voz estivesse fugindo do corpo junto com o sangramento abundante. Implacavelmente, um terceiro projétil infernal arrebentou-lhe o joelho esquerdo, fazendo com que Sean se desequilibrasse violentamente. Para não desabar, deixou-se cair de joelhos, apoiando o peso do corpo gravemente ferido sobre o joelho ileso, o direito. Em meio a espasmos de dor, sua mão direita, tremendo, vagarosa e corajosamente se encaminhou para o coldre, tentando sacar um dos Colts infernais.
Entretanto, um quarto balaço da arma mística o acertou no peito antes que pudesse concluir o saque, arremessando brutalmente o ensanguentado Renegado pesadamente de costas no deserto. Pousados nos galhos secos e desfolhados da árvore, os corvos gritavam e agitavam as asas, como se exprimissem seu contentamento sádico pela sombria situação. Arfante, Sean se virou e começou a rastejar penosamente, na esperança infundada, gerada pelo desespero, de conseguir se afastar de seu impiedoso adversário. Sob o olhar sarcástico de um demônio e diante de uma horrenda plateia de corvos, no meio do deserto, um homem ferido e humilhado tentava escapar de seu destino tenebroso, mesmo ciente de que não havia a mínima chance de fugir de seu perseguidor, ou de sua sina maldita.
Sabendo quem era o homem que deslizava sobre o próprio ventre, sangrando e sentindo a terra tórrida abrasar-lhe a pele, e conhecendo sua história de lágrimas e sangue, ciente da trajetória de um homem ainda jovem que perdera tudo o que alguém pode perder em vida e depois da mesma, qualquer observador daquela cena deplorável seria tomado de compaixão, mesmo o pior inimigo daquele sujeito. Todavia, o perseguidor de tal homem era um demônio, e o coração destes seres infernais desconhece o significado da palavra compaixão.
Rastejando para estar o mais longe que podia de Abigor, embora a gravidade dos ferimentos não tivesse permitido que ele se distanciasse muito, Sean Ridell percebeu uma sombra projetada sobre si, indicando a presença de alguém que se interpusera entre ele e o sol. Alguém que estava ali para acabar definitivamente com ele.
- Você é patético, Renegado. – falou uma voz sibilante, cheia de desprezo e desdém. – Achou mesmo que ia ser uma luta justa? Só um completo idiota confia em um demônio. Nosso mestre é conhecido como o pai da mentira, seu tolo. Eu menti e trapaceei; isso faz parte do meu ser. Não tenho nenhum compromisso com a verdade, ou com seus códigos morais.
Rudemente o bico de uma bota fez Sean rolar para o lado, de modo que ele voltou a ficar com o rosto e a barriga virados para cima. Com olhos marejados de dor e angústia extrema, o rapaz lançou um olhar assustado ao rosto malévolo da entidade diabólica ao seu lado.
- Imaginou que fosse mais rápido que eu, Ridell? Esperava que eu tivesse clemência? No princípio, quando eu era ainda um anjo de luz, houve uma batalha feroz no Reino do Céu. Escolhendo ficar ao lado do meu mestre, enfrentei meus irmãos, Renegado. Todos eles lutam mais rápido que a própria luz. E eu matei muitos deles, e feri tantos outros. Sem misericórdia. Como você poderia imaginar que eu seria clemente com você? Como achou que poderia me dobrar, ou me vencer? Ajo apenas de acordo com os interesses de meu mestre, e não sou amigo de ninguém, além de mim mesmo.
Percebendo que o rapaz tentava dizer algo, a sombria criatura inclinou-se um pouco. Entretanto, a única coisa que saiu da boca de Sean Ridell foi uma golfada de sangue, seguida por uma tosse áspera.
- Compreendo... – murmurou Abigor ironicamente.
Abaixando-se então, o demônio segurou uma das pernas de Sean e começou a arrastá-lo pelo deserto, para em seguida falar, exatamente como nos pesadelos do rapaz:
- Seu tempo acabou, cowboy. Hora de irmos para casa.
No estado em que se encontrava, Sean não pode fazer muita coisa. Deixou escapar um longo, doloroso e desconsolado gemido, enquanto seus dedos tentavam prender-se a qualquer pequena saliência do solo acidentado, oferecendo uma débil resistência. Usando apenas uma mão para arrastar o rapaz pela perna, Abigor riu divertido ao ver os esforços do homem para impedir que fosse levado.
- Não se angustie, Renegado. Logo estaremos em sua nova morada. É ruim no início, mas depois você se acostuma. Essa árvore, acho que não sabe, mas ela marca um portal que nos permite transitar entre o seu mundo e o nosso submundo. Estou levando você para lá, pois ela é nossa porta. Quando pensava em se enforcar, você teve azar, porque eu sou o guardião desse portal. Aproximei-me para saber o que você fazia aqui, e logo que entendi, resolvi fazer minha proposta irrecusável.
Enquanto falava, Abigor, segurando a perna direita do Renegado derrotado, arrastava-o implacavelmente pelo deserto. Os locais por onde o corpo ferido de Sean Ridell passava, ficavam manchados por uma densa esteira vermelha de sangue quente, quase tão quente quanto a areia avermelhada a qual o escarlate líquido vital derramado maculava. A dor era tanta que Ridell se sentia anestesiado naquele momento, como se morresse aos poucos.
- Vocês, mortais, são seres traiçoeiros, pouco confiáveis. Não consigo entender porque o amor do Altíssimo por vocês é tão grande; mal começaram a existir, e ousadamente já se voltaram contra seu Criador. Só precisamos dar um pequeno empurrão. Seres fracos e insignificantes, é como vejo os humanos. Nascem com uma inclinação para o Mal bem maior do que para o Bem. – e lançando um olhar raivoso para o homem que arrastava, Abigor rugiu – Dei a você tudo o que queria e precisava. Vingança. Era esse o motivo pelo qual pulsava seu coração quando o encontrei bem aqui, tempos atrás. Você era apenas um garoto de cidade grande, assustado pela vida no Oeste. Morreria em dois tempos se resolvesse caçar os bandidos. Não sabia sequer segurar uma arma. Fiz de você um guerreiro formidável, um assassino infalível e indestrutível. Tudo em troca de algumas míseras gotas de sangue e sua alma em aflição. Dei a minha palavra e a mantive. Hoje você é um pistoleiro inigualável e poderoso. E como você retribui? Se voltando contra mim, tentando acabar comigo. Comigo, que tratei você como um filho. Atirando no meu cachorro... A propósito, Renegado, desde agora aprenda uma coisa: uma das leis que prevalecem no inferno é a do olho por olho, dente por dente.
Quando Abigor se calou por um instante, cheio de tristeza, Sean viu o demônio atirar muitas vezes em Pandemônio que, com um relincho estridente, ficou estatelado na areia quente, ensanguentado e agonizante. Voltando a arrastar sua vítima, Abigor prosseguiu com seu monólogo ensandecido:
- Apesar de tudo isso que está acontecendo, tenho duas notícias para você, Sean Ridell. Uma boa e outra ruim. Qual você quer ouvir primeiro? Heim? Fale mais alto, não posso ouvir você. Certo, como não consigo entender o que você diz, vou seguir a lógica. A boa notícia primeiro. Está pronto para ouvi-la, Ridell?
Abigor olhou para Sean e o viu calado, quieto, sofrendo e sangrando em silêncio. Seus olhos cinzentos mal se moviam nas órbitas. Estavam fixos no céu azul da tarde enquanto era arrastado para cada vez mais perto da árvore condenada, cuja existência marcava na Terra uma das entradas para o Inferno. O demônio continuou falando assim mesmo:
- A boa notícia que tenho para você, é que sua família não está no inferno. Nem sua mulher, nem seu filho. Nem mesmo seu empregado, o pobre Berthan. Vão todos descansar eternamente em um lugar cheio de luz e paz, rodeados de amor e blá blá blá... É uma boa novidade, não é, Renegado?
Olhando para trás por cima do ombro, Abigor viu pelo canto dos olhos um brilho de esperança surgir nos olhos cinzentos de Sean, que agora o fitava. Percebendo que despertara o interesse de seu ouvinte, o anjo caído continuou, exultante:
- E a má notícia é que você nunca mais vai vê-los, Ridell. Quem está no Inferno não pode ver quem está no Céu, e vice-versa. Você sabe que eles estarão bem e felizes, mas, eles jamais saberão que você sofrerá eternamente. Talvez com o tempo, nem se lembrem mais de você. Jamais saberão que você foi parar no abismo eterno por causa do seu amor por eles. Essa é uma notícia ruim, não é, Renegado? Na verdade, acho-a ótima. –zombou Abigor e riu malignamente.
Ao notar o brilho de esperança se esvaindo do olhar de Sean tão rapidamente quanto o sangue vazava aos borbotões pelos ferimentos, o demônio completou:
- Na verdade, quando chegar o Apocalipse, talvez você veja sua família de relance, segundos antes, de assim como o resto do inferno, ser jogado no Lago de Fogo.
E o demônio continuou rindo e falando alegremente, mas Sean não o ouvia mais. As últimas palavras do monstro doíam-lhe mais do que todos aqueles inacreditáveis ferimentos distribuídos por seu corpo. Diante de seus olhos cinzentos ele via imagens desfilando sem parar. Recordou-se da risada cristalina de Kate quando ele chegava de mansinho em casa e a abraçava de surpresa por trás, envolvendo-a pela cintura e erguendo-a do chão como se ela não pesasse nada. Girando-a no ar como se ela fosse uma boneca, sentia-se feliz tendo-a bem junto a si.
- “Eu te amo, Sean Ridell.” – dizia ela, olhando-o nos olhos, ao que ele respondia que também a amava infinitamente, antes de abraçá-la e beijá-la carinhosamente.
Sorrindo entre lágrimas, Sean também se lembrou do sorriso luminoso do pequeno James sempre que brincava com ele no quintal todas as tardes antes do café, não importava o quão cansado Sean estivesse ao chegar do trabalho. Colocava o garotinho sobre os ombros e corria com ele, brincando e rindo sem parar; era a melhor sensação do mundo para Ridell. E agora eles estavam mortos. Logo Sean também estaria, e nunca mais voltaria a vê-los. Nem nessa vida, nem na outra. Nunca mais. O que ameniza a dor daqueles que ficam neste mundo sem a presença dos entes queridos é a esperança de poder reencontrá-los um dia na outra vida, a eterna. E mesmo isso foi negado a Sean Ridell; nem mesmo a esse tênue fio de esperança ele podia se agarrar. Contudo, se ele estava indo para o Inferno, levaria consigo, em sua mente, as lembranças de sua mulher e filho. Aquele seria seu refúgio, um pedacinho do Céu o qual ninguém tiraria dele. Nem mesmo o maldito Abigor.
Enquanto Sean era arrastado em direção à árvore maldita, seus olhos cinzentos e cheios de dor fitavam o céu azul. A tarde abafada seguia tranquilamente seu rumo inalterável. O firmamento límpido era percorrido por poucas nuvens. O sol ardente espiava silenciosamente do alto enquanto uma criatura malévola e sobrenatural arrastava consigo um prisioneiro ferido através do deserto cáustico. Por que ninguém o ajudava? No dia em que vendera sua alma, o vento uivara dolorosamente. Naquela tarde em que o demônio vinha buscá-lo pessoalmente, não havia reação nenhuma da natureza, que a tudo assistia, impassível. Com a visão turva, Sean fitou o céu anil e, apesar do sangue na garganta, conseguiu murmurar:
- Eu me arrependo...
Abigor parou de repente e voltou a cabeça, furioso:
- O que foi que você disse, seu maldito?
Ignorando o demônio esbravejante, Sean repetiu com seu fio de voz, olhos fitos no céu:
- Eu me arrependo... me arrependo sinceramente...
- Cale essa boca! – bradou Abigor, fora de si.
E como Sean não parasse de murmurar para o céu, Abigor caminhou até ele, irado. Segurou a cabeça do rapaz e chocou-a violentamente contra o chão uma, duas, várias vezes. Fechou os punhos e esmurrou-lhe a face brutalmente. Cada pancada parecia pesar uma tonelada, e produzia um som seco, nauseante. Quando parou, o olho direito de Sean mal se abria. O sangue fluía livremente pelo nariz e pela boca.
- Quer dizer mais alguma coisa? – indagou Abigor, sádico.
Com um sorriso irônico mesclado a uma careta de dor, Sean cuspiu uma espuma sanguinolenta no rosto do inimigo antes de ousadamente repetir:
- Eu me arrependo...
Com um brado de fúria, Abigor desceu o punho cerrado mais algumas vezes. Os lábios de Sean se racharam e ficaram cobertos de sangue. Exausto, ele deixou a cabeça pender para trás até que ela tocasse o chão quente, e continuou fitando o céu, mas agora em silêncio. Satisfeito, Abigor voltou a arrastá-lo pelo deserto, com mesma delicadeza de quem carrega um fardo.
Quando recomeçaram a seguir em direção à árvore, os corvos se agitaram nos galhos, inexplicavelmente incomodados com algo. Arregalando o único olho que se abria, Sean viu quando, como uma flecha, uma ave desceu do céu e pousou graciosamente na árvore. Tinha certeza de que o pássaro emergira das nuvens. Tratava-se de uma belíssima pomba. Suas penas eram inteiramente brilhantes, alvas e imaculadas como a neve. Apenas os olhos eram negros, e as patas e o bico eram rosa.
A pomba aterrissou em um galho acima dos corvos, fitou-os atentamente e arrulhou com suavidade. No mesmo instante, assustados, os corvos, crocitando, ruidosamente bateram asas e voaram para longe, desaparecendo em seguida. A presença da pomba branca os afugentou em revoada, como se um caçador houvesse disparado um rifle contra o bando de negras e agourentas aves. Se assistisse àquilo, o velho Larry Parker teria rido de contentamento como uma criança, e corrido para casa, a fim de iniciar uma criação daqueles pássaros salvadores.
- Benditas pombas! – é o que ele certamente diria, sorrindo de orelha a orelha.
Sendo arrastado pelo deserto escaldante com um som rascante, em meio ao sangue que vertia impetuosamente e os milhões de pontos doloridos em seu corpo flagelado, Sean observava a pomba espantado, mirando-a com seu único olho intacto. A fascinante ave descera da nuvem em linha reta até a árvore e ali permanecia empoleirada e tranqüila. Sangrando profusamente sem ter o direito de morrer, e com a alma se agitando ardentemente em seu íntimo, o desafortunado jovem tentava entender a nova situação. O que uma pomba branca linda como aquela fazia sozinha no meio de um local diabolicamente quente e inóspito como aquele? Por que ela descera das nuvens e pousara justamente na maldita árvore, cuja existência estava imutavelmente ligada ao pavoroso destino de Ridell? E, a questão mais assombrosa que rondava a mente confusa do Renegado era: por que a nuvem negra e detestável de gralhas barulhentas fora rechaçada pela presença inofensiva e encantadora daquele lindo pássaro?
Ainda pensando nessas questões enquanto era arrastado como um saco de adubo pela aridez desértica, e notando que a árvore estava agora muito próxima, porque o sádico Abigor não tivera pressa em carregá-lo, a fim de que sua angústia fosse maior, Sean Ridell desviou o olhar intrigado da bela pomba para o céu mais uma vez. Então, estupefato, constatou que as nuvens tinham ganhado altura. Como podia ser aquilo? Duas nuvens, flutuando entre o sol, haviam subido, se distanciado da Terra. Sean nunca ouvira falar de algo semelhante. Sabia que nuvens se deslocavam horizontalmente nos céus, impelidas pelas correntes de ar nas alturas, mas jamais imaginara que elas pudessem ser empurradas pelo sopro do vento de baixo para cima, subindo cada vez mais. Então, Sean finalmente compreendeu a situação, e a resposta era ainda mais espantosa.
Não se tratava de as nuvens estarem subindo. Na verdade, elas se encontravam no mesmo lugar, navegando silenciosa e lentamente pelas alturas, como sempre fizeram desde o princípio. Naquela tarde tórrida em pleno deserto, era o sol que se movia. Com uma velocidade meteórica, o astro rei se dirigia para a Terra.
Erguendo o braço esquerdo, cuja clavícula, diferentemente do ombro direito, estava intacta, Sean Ridell enxugou o único olho que ainda era utilizável. Passou a manga do sobretudo pelo rosto, extraindo o sangue, o suor e as lágrimas que lhe turvavam a visão. Piscando o olho, esbugalhou-o ao ter certeza de que o sol, a fonte de calor e vida do universo, despencava das alturas, rumando veloz e diretamente para o deserto. Tagarelando a seu sádico modo, Abigor nem chegou a perceber o assombro com que sua vítima fitava hipnoticamente o céu. O poderoso demônio não percebeu que, acima deles, o astro ígneo inexplicavelmente descia da abóbada celeste a uma velocidade inimaginável, e em poucos instantes tocaria o chão árido, queimando majestosamente qualquer ser vivente presente no deserto, e isso incluía Abigor e Sean.
Enquanto observava extasiado, Ridell viu que, ao contrário do que imaginava, a temperatura não se elevou no deserto. A imensa bola de fogo em queda espargia uma luz intensa, divinal e ofuscante, tanto que em pouco tempo Sean viu-se obrigado fechar o olho, pois a luminosidade começava a queimar sua vista. Sentindo o coração martelar no peito, bombeando cada vez mais rápido o sangue que percorria suas veias malditas e fugia aos jatos de seu corpanzil amaldiçoado, Sean usou seu sentido amplificado da audição para tentar entender o que se passava. Imaginava que fosse ouvir um chiado sinistro, denunciando a chegada do sol, queimando a tudo e a todos, e extinguindo instantaneamente a vida. Mas nada disso se passou. Um zumbido estridente e gradativo encheu o ar abafado, castigando os tímpanos sobrenaturalmente privilegiados de Sean. O som parecia proceder das alturas. Seria o sol cadente sua origem?
E agora, acompanhando o zumbido, havia um segundo som. Era suave, acariciante e lembrava... Céus! Aquilo era um ruflar de asas desfraldadas? Tomado pela confusão e pela curiosidade, sem poder abrir os olhos devido a luz poderosa que o cegava, Sean sentiu quando uma sombra enorme se abateu sobre o local onde ele e Abigor estavam. Mesmo de olhos fechados, Sean teve certeza de que um pássaro gigantesco, muito maior do que qualquer outro no planeta, pairava naquele momento bem acima de onde ele se achava.
Finalmente Abigor aparentava ter notado a presença incomum recém-chegada. O demônio estacou de repente e se calou por uns momentos. Proferindo um palavrão, a entidade infernal largou rispidamente a perna de Sean, a qual desceu pesadamente e atingiu dolorosamente o chão arenoso com um baque seco. Então, espantosamente Abigor começou a discutir inflamadamente com aquilo que parecera ser o sol aos olhos de Sean. De olhos bem fechados, o rapaz ouvia, em meio à torrente de maldições e palavras obscenas, o demônio bradar com sua voz grave e sobrenaturalmente cavernosa:
- O que pensa que está fazendo aqui? Ele me pertence, tem um pacto de sangue comigo, assinado de livre e espontânea vontade. Livre arbítrio, docinho.
E então, o zumbido ecoava em resposta. Aos poucos, Sean, após se acostumar gradativamente com o ruído estridente, percebeu se tratar na verdade de uma voz. O zumbido perdeu seu timbre irritante e agora era murmurante como o som das águas, como se a brisa e o mar falassem conjuntamente. A voz falava em uma língua desconhecida para Sean, mas era plenamente compreensível para Abigor, que respondia, rugindo:
- Não pode fazer isso! Não tem o direito! Isto é um insulto, uma quebra dos antigos acordos. Não permitirei nunca. Não devia ter vindo aqui, agora vai encontrar a destruição pelas minhas mãos!
Cheio de angústia, com a adrenalina sendo jorrada descontroladamente em sua corrente sanguínea e sem poder ver o que se passava, Sean ouviu o som de uma luta. Mas não era uma luta comum. Sua audição perfeita lhe informava de que movimentos estavam sendo realizados na velocidade da luz, e Sean então teve certeza de que não adiantaria muito se pudesse ver o que se passava, porque sua visão, por mais desenvolvida preternaturalmente que fosse, não poderia nunca acompanhar a rapidez do que acontecia bem ali, tão próximo dele.
Após angustiantes segundos de espera, Sean ouviu Abigor deixar escapar um rugido de dor. O som do ar se deslocando bruscamente indicou a passagem do demônio, que, sob o impacto de um poderoso e definitivo golpe, atravessou o espaço. O próximo som captado pelos ouvidos inumanos de Ridell foi o baque surdo de algo que se chocava violentamente contra o grosso tronco da árvore seca. Em seguida, Abigor gritando furiosamente, pronunciou mais algumas palavras horríveis. Mas a potência de sua voz passou a diminuir gradativamente, como se ele esbravejasse enquanto se afastava, até desaparecer, levando consigo o cheiro repugnante de enxofre.
Devido a junção das dores e das emoções do momento, Sean Ridell sentiu-se subitamente muito cansado. A perda maciça de sangue, embora não o matasse, o enfraquecia imensamente, tornando doloroso e árduo mesmo o menor de seus movimentos. Tentou abrir os olhos sendo porém impedido, porque a luz emanada no local ainda era intensa. Nos seus últimos segundos de consciência, Sean Ridell, mesmo de olho cerrado, sentiu uma presença agradável junto de si, e teve certeza de que alguém o olhava com benevolência. Então, o rapaz deixou a cabeça rolar para o lado e desmaiou.
Não soube precisar quando tempo flutuou envolto pelas negras brumas da inconsciência. Seu espírito parecia embalado por uma correnteza calmante de ótimas sensações. Boas lembranças o embalavam, como um abraço caloroso. Sonhos repletos de luz tranqüilizavam seu coração e pacificavam a agitação de sua mente, a qual, pouco tempo antes, estivera tão perto da loucura absoluta quanto um homem pode chegar perto de um precipício sem despencar no mesmo. Sonhou com campos floridos, céus azuis e luminosos, brisa suave, mar calmo e infinito. Nada de ampulhetas, enxofre ou cães do inferno. Apenas elementos que fossem extremamente agradáveis aos seus sentidos.
Lentamente ele sentiu que estava abandonando o sonho. Uma brisa suave acariciava seu corpo ferido e ele sentia o frescor de uma sombra bem vinda que o resguardava do sol impiedoso. Achou que ainda sonhava, pois sua última lembrança era de estar deitado de costas no deserto escaldante, sangrando abundantemente e sendo cozido pelo sol insuportavelmente quente. Sem o menor sinal de sombra no lugar. Dezenas de pássaros cantavam alegremente ali por perto, compondo uma sinfonia comovente de tão simples e bela.
A seguir, Sean achou que os sentidos lhe pregassem uma peça, pois o perfume de flores inundou seu nariz parcialmente bloqueado pelo sangue seco. Aquele aroma era inconfundível. Lírios! Devia estar mesmo sonhando. Lírios em pleno deserto? Sabia que eram lírios, pois sua mãe amava essas flores, bem como Kate. A paixão de Kate por lírios foi um dos fatores que levaram Sean a se apaixonar por ela.
Então, Sean sentiu cócegas em seu peito. Uma pressão suave, quase imperceptível, de algo que passeava tranquilamente sobre ele. Com um leve tremor de pálpebras, o rapaz conseguiu lentamente abrir o olho esquerdo. A luz agora era suave, e não mais feria sua vista. Diante de si, bem próxima de seu rosto, ele viu a cabecinha branca de uma ave que o fitava com seus olhinhos bondosos, negros e úmidos. A pombinha arrulhou alegremente e continuou saltitando tranquilamente sobre o peito quase completamente curado do Renegado. Erguendo vagarosamente a cabeça, Sean espantou-se imensamente mais uma vez. Seria aquilo uma miragem?
A imensa e seca árvore, antes guardada por Abigor, agora era verdejante e cheia de vida. Todos os galhos estavam restaurados, e cada um deles se achava repleto de folhas viçosas e perfumadas. Incontáveis pássaros coloridos, de muitos tamanhos e tipos estavam aninhados nos galhos da fabulosa árvore: era desses pássaros o canto que Sean ouvira enquanto recobrava a consciência. As poucas aves que não cantavam, bicavam alegremente a casca sedosa de frutos coloridos, suculentos e maduros, pendentes dos galhos que se agitavam com a brisa fresca e suave. A sombra que refrescara o Renegado enquanto ele estava imerso na inconsciência era oriunda dessa agora frondosa e resplandecente árvore, que em nada se parecia com aquele tronco castigado pelo sol e galhos retorcidos de antes.
Sean lançou um olhar desconfiado ao redor e vislumbrou a eterna sequidão do deserto rodeando aquela árvore milagrosamente surgida. Seria aquela mais uma piada sádica de Abigor? Uma ilusão para enganar seus olhos e aumentar sua dor? Por mais que se esforçasse, não conseguiu sentir a presença maligna do demônio nas proximidades. Não. Abigor não estava ali.
Aquela cena era tão maravilhosamente inexplicável... Um verdadeiro oásis, fonte inesgotável de vida situada no coração daquela região inabitável de aridez e morte. Parecia um quadro exuberante caprichosamente pintado pela mão do próprio Criador, para Quem todas as coisas são possíveis, inclusive, uma árvore verdejante brotar no meio do deserto.
A pombinha branca graciosa e subitamente alçou vôo e rumou para a portentosa árvore. Apoiando-se nos cotovelos para acompanhar o deslocamento da linda ave, Sean estremeceu de fascínio e espanto. Alcançando a árvore, a pombinha pousou na mão de alguém. A corda de Sean não se achava mais amarrada ao galho grosso como antes.
Sentada no galho onde tempos antes Sean pensara em dar fim à própria vida, havia uma jovem belíssima. Tinha a pele perfeita e sedosa como pétalas de rosa, muito branca, e os olhos mais maravilhosamente azuis e brilhantes que o Renegado já vira, encimados por longos cílios negros e graciosas sobrancelhas douradas. Os lábios, belos, finos e úmidos, possuíam a cor e a textura perfeita da rosa de Alexandria. As maçãs do rosto eram ligeiramente rosadas e combinavam com sua face linda, ovalada e luminosa. Um adorável furinho no queixo era um dos detalhes mais apaixonantes de seu semblante encantador. Seu cabelo, dourado como o trigo nos campos, era liso. Estava caprichosamente penteado ao meio e escovado com esmero. Descendo em ondas suaves, emoldurava seu rosto perfeito com uma cascata de fios áureos, a qual alcançava o ombro bem torneado. Um lírio lilás enfeitava seu cabelo, logo acima da orelha direita. Sean percebeu que, inexplicavelmente, o aroma de lírios, trazido pela brisa suave ao seu nariz, era exalado por aquela belíssima garota.
Ela usava uma camisa xadrez feminina, um cinto com fivela prateada, e uma calça de brim azul escura. A metade das pernas da calça estava enfiada nos longos canos de botas texanas marrons femininas. A moça estava vestida como uma típica cowgirl. Ela emanava a pureza virginal de uma menina, mas tinha a atitude atenta e comportada de uma mulher. Não aparentava mais do que dezoito anos.
A pomba pousou em sua delicada mão direita e ela sorriu. Quando fitou a mão esquerda da jovem, Sean sentiu vontade de fugir: ela segurava um amarelado e maldito documento. Um papiro infernal. O contrato do pacto diabólico que o transformara no Renegado. Como aquela jovem meiga e aparentemente inofensiva arrancara aquele papel das garras de Abigor?
Quando o rapaz já se dispunha a tentar fugir rastejando, a moça pousou carinhosamente sobre ele seus magníficos olhos cor de safira. Havia luz e bondade neles. Como se conhecesse os temores do rapaz caído, e balançando as pernas despreocupadamente, a jovem sorriu exibindo uma fileira de dentes alvos e perfeitos. Em seguida, quando abriu os formosos lábios para falar, os pássaros e o vento silenciaram-se para ouvir. A voz dela, harmoniosa e suave, parecia acalentar a alma em frangalhos do Renegado:
- Não tema, Sean Ridell. Meu nome é Mariel, sou uma mensageira celestial, e venho aqui hoje em nome do próprio Deus Altíssimo. Seu clamor chegou aos ouvidos Dele. – e agitando sugestivamente o papiro na mão pequena e mimosa, ela completou – Trago a você uma proposta de redenção.
Danilo Alex da Silva
14/04/12
Queridos amigos e leitores! Quero agradecer a paciência e o carinho. Se você chegou até aqui, leu mais de cinquenta páginas desse conto que, inicialmente, teria apenas umas 3 partes e teria ao todo, no máximo, umas dez páginas. Agradeço o carinho, o apoio e a ajuda de vocês, pois vocês foram imprescindíveis para esta obra. O Renegado deve muito a vocês.
Espero que o fim não tenha sido decepcionante porque, como sabem, cada vez que uma história termina, outra começa. É o caso da saga do Renegado: vou transformar a história dele em livro, e lá saberemos o restante de suas aventuras em busca de sua tão sonhada redenção. Não seria possível contar essa história aqui, porque, não sei se concordam, mas o Renegado merece mais espaço e detalhes. Ele merece um livro.
Conto com vocês para me ajudar a dar continuidade nas aventuras de Sean Ridell, o Renegado. Vocês, como já disse, são fundamentais.
Para quem tiver curiosidade, vou colocar agora no fim do post o clipe legendado da música que me inspirou esse conto.
Obrigado por me acompanhar nessa empreitada, meu povo! Acho que nunca estive tão empolgado em escrever uma história. Obrigado, e até a próxima história!
Abraço carinhoso
Danilo Alex da Silva
Espero que o fim não tenha sido decepcionante porque, como sabem, cada vez que uma história termina, outra começa. É o caso da saga do Renegado: vou transformar a história dele em livro, e lá saberemos o restante de suas aventuras em busca de sua tão sonhada redenção. Não seria possível contar essa história aqui, porque, não sei se concordam, mas o Renegado merece mais espaço e detalhes. Ele merece um livro.
Conto com vocês para me ajudar a dar continuidade nas aventuras de Sean Ridell, o Renegado. Vocês, como já disse, são fundamentais.
Para quem tiver curiosidade, vou colocar agora no fim do post o clipe legendado da música que me inspirou esse conto.
Obrigado por me acompanhar nessa empreitada, meu povo! Acho que nunca estive tão empolgado em escrever uma história. Obrigado, e até a próxima história!
Abraço carinhoso
Danilo Alex da Silva
Eu amei a história. Quero mais... Que tal um seriado?! Parabéns pelo talento de nos prender frente a uma tela. Quando sair o livro impresso eu quero.
ResponderExcluirOMG!!! Sem palavras, ficou simplesmente perfeito!!! Com toda certeza não haveria um "final" melhor...
ResponderExcluirParabéns e Obrigado por dar vida ao Renegado, ele merece um livro sim...
Bjo!!!
Nivea: Fico muito lisonjeado por você ter gostado, eu que amo seus contos! Quero ser como você quando eu crescer. rsrsrs
ResponderExcluirSim sim, em breve você vai ter mais do Renegado, vou escrever esse livro, quero me dedicar com afinco a isso. Um seriado seria bacana heim? rsrsrs Quem sabe um dia? Temos de ter fé.
Sobre prender a atenção do leitor, aprendi com os bons, incluindo você. ^^
Quando sair o livro, certeza que o primeiro será seu. ^^
Arielly: Gostei muito de surpreender vocês. *-*
ResponderExcluirFoi muito difícil escolher um final para essa história. Fico feliz que tenha gostado, a despeito da presença da Mariel, né? rsrsrs
Eu que agradeço o carinho e o incentivo! Foi muito bom escrever para vocês, torcendo para que gostassem das aventuras do Renegado.
Em breve o livro começa, já tá indo pro forno. rsrsrsrs
Bjos
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