"Ódio, eu sou o seu ódio, sou o seu ódio quando você quer amor
Pague, pague o preço, pague por nada ser justo
Ei, eu sou sua vida, eu sou quem te trouxe aqui
Ei, eu sou sua vida, e eu não me importo mais"
(Sad But True - Metallica)
E então, depois da tão almejada vingança, o tempo correu. Meses, semanas, dias, horas, nada disso deveria ser tão importante para alguém como Sean Ridell. Um homem imortal, praticamente invencível, não deveria temer a passagem do tempo. Mas ele temia. Mesmo alguém poderoso como ele era agora, se preocuparia na atual situação: por Abigor, Sean soubera que havia uma imensa ampulheta com seu nome no inferno. E a areia maldita estava escoando em seu interior. Cada grão que despencava aproximava o Renegado de seu fim inevitável: a condenação eterna e o tormento infinito nas terras ardentes, onde o céu era vermelho como sangue, os rios eram de lava borbulhante, os moradores eram monstruosos, o sofrimento, interminável, e a escuridão, por ser o elemento reinante, era somente entrecortada pelas labaredas gigantes que se erguiam como súbitos gêiseres de fogo aqui e ali.
Depois de sua vingança, Sean, totalmente equivocado, nutrira a ingênua esperança de que encontraria um pouco de paz. Mas paz era uma palavra inexistente no vocabulário de seu algoz, o demônio Abigor, um dos poderosos generais do inferno, atual proprietário de sua alma. Não havia uma noite que Sean Ridell não tivesse pesadelos terríveis, a maioria com sua família sendo brutalmente assassinada. Outras vezes, sonhava com uma ampulheta de fogo que, ao invés de areia, continha sangue. O seu sangue. Quando a última gota, vermelha com um rubi, pingava no fundo do antiquado aparelho de contagem do tempo, produzia um estrondo semelhante a um trovão. A ampulheta maldita então se estilhaçava ruidosamente. Nesse pesadelo, depois que o instrumento se destruía, Sean divisava a face maligna de Abigor, felizmente ainda oculta pelo lenço vermelho. Os olhos negros do demônio fitavam um relógio de bolso pousado na palma enluvada de sua mão. Era noite de lua cheia e Abigor, contra a luz, tinha suas formas sinistras delineadas pelos raios prateados. Seus olhos negros, que agora se assemelhavam a duas tochas acesas sob o luar, acompanhavam interessadamente os ponteiros do relógio em sua mão, cujo movimento causava um tique-taque repetitivo e enervante. Quando finalmente o antigo aparelho marcava o horário desejado, Abigor olhava fixamente dentro dos olhos de Sean antes de dizer:
- Seu tempo acabou, cowboy. Hora de irmos para casa.
Mal terminava de falar, Abigor segurava com firmeza a tenebrosa foice que surgira em sua mão direita e, com sua peculiar risada macabra, libertava da coleira o seu cão do inferno de estimação. E o bicho se movia a toda velocidade, rosnando, babando, ligeiro como o vento, seguindo os passos desesperados de um Renegado apavorado e em fuga, tentando correr de um perseguidor de quem ninguém escapava nunca. Quando o cachorro infernal estava quase alcançando Sean, ele se obrigava a sair do pesadelo e acordava assustado, suando, suas mãos se dirigindo instintivamente para as armas no cinturão pendurado na cabeceira da cama, as gargalhadas metálicas de Abigor ainda ressoando nitidamente dentro de sua cabeça.
Sua sede e sua febre constantes eram parte do flagelo da carne. Nenhuma bebida desse mundo, por mais refrescante que fosse, podia extinguir a sede de Sean Ridell. Da mesma forma, ele jamais poderia estar com uma garota. A única vez que tentou foi desastrosa: seu calor anormal aqueceu tanto a adorável companheira que a afugentou, tanto que ela precisou ser vista pelo médico, já que seu curvilíneo corpo suava e ardia em febre, quase a ponto de sofrer convulsões. Outra parte terrível jazia no fato dele não poder nunca se aproximar de igrejas e outros locais de solo sagrado. Muito doloroso imaginar que agora ele era malquisto por Deus. Um proscrito da herança divina. Um renegado da graça celestial.
Sean Ridell se angustiava ainda mais por saber que sofria um exílio voluntário, se envolvera conscientemente em uma negociação monstruosa, da qual não podia escapar. Depois da vingança, reconhecendo seu egoísmo, e tentando de alguma forma expiar seu sem número de pecados, o Renegado, montando seu formidável e incomum cavalo, passou a percorrer os caminhos infestados de bandidos perigosos e insanos, que, tal como o Chamas do Inferno, jamais poderiam ser devidamente punidos pela Lei. Como meses antes fizera ao defender a caravana de viajantes contra assaltantes do deserto, Ridell voltou a lançar mão de seus poderes para banir do mundo aqueles que o tornavam um lugar pior para se viver. Fazendo funcionar seus Colts negros e infernais, o Renegado enviou para os braços de Abigor incontáveis almas negras como a noite. Todas elas partiam em agonia, fuzilando Sean com os olhos e vociferando juras de vingança.
Entretanto, Ridell nunca feriu um inocente. Jamais se aproveitou de sua condição sobrenaturalmente superior para subjugar os cidadãos íntegros que, após serrem salvos por ele, movidos pela gratidão, diziam uma frase freqüente que, se pudesse escolher, Sean gostaria de ter ouvido menos:
- Obrigado, meu filho. Deus te pague. Deus te abençoe.
A resposta do Renegado era sempre uma risada seca e amarga, assim como um aceno com as mãos enluvadas. Feito isso, girava seu diabólico garanhão negro e se afastava a todo galope, indo socorrer a próxima alma necessitada, estivesse ela a um metro ou a uma milha de distância. Devido a necessidade de suprir suas necessidades básicas tais como beber, comer, alugar um teto sob o qual dormir, roupas etc., Sean acabou se tornando um famigerado caçador de recompensas. Indivíduos assim não eram queridos nem por criminosos, nem pela Lei. As autoridades detestavam depender dos caçadores de recompensa, pois, apesar de serem eles que arriscavam a pele para prender ou, conforme o caso, talvez até eliminar perigosos bandidos que ameaçavam a ordem pública, eram vistos como pistoleiros mercenários, apenas um tipo consideravelmente útil de assassinos.
Necessitava do dinheiro das recompensas, e tentava fazer o bem ao capturar cada bandido daqueles cartazes de procurado. Embora em seu íntimo Sean desejasse ser aceito, seu novo ofício o arrastava cada vez mais para a marginalização: era rejeitado por Deus, fora privado do direito de ser esposo e pai, perdera tudo, os bandidos o odiavam e a Lei o desprezava, apesar de receber sua ajuda freqüentemente. Vivia à beira da sociedade, fosse ela espiritual ou física. A única ajuda que recebera viera justo do Diabo, por um altíssimo preço, o qual se aproximava o momento impreterível de pagar.
Cansado da espera angustiante, Sean Ridell, resolveu arriscar tudo, e tomou uma ousada decisão. Montando seu negro e sobrenatural cavalo, Pandemônio, o rapaz rumou velozmente para a cidade mais próxima, a qual se chamava Stone Ville, um lugarejo entre as montanhas, no coração do Kansas. Uma vez cavalgando pelas ruas da cidade, agiu rapidamente, pois não queria se demorar. Passou pela loja de armas, depois pelo armazém e em seguida, apesar da dor lancinante, quase insuportável, ele corajosamente entrou na capelinha da cidade, a qual, durante o dia, tinha sempre as portas abertas aos devotos que resolvessem entrar para fazer suas orações, ou simplesmente refletir um pouco. Tão logo fez o que precisava, Sean deixou rapidamente a atmosfera abençoada da igrejinha. Cambaleando como quando, meses atrás, fora alvejado por aquele Winchester no saloon Night Train em Conquest City, a muitas milhas dali, o Renegado, com as mãos espalmadas, buscou apoio em uma pilha de caixotes, erguidas meticulosamente diante do armazém, situado logo em frente. Os cinco minutos que permaneceu dentro da igreja pareceram os mais longos de sua vida. Estava tenso, e tinha a impressão de que não era bem vindo ali: era um filho das trevas e estava profanando um local santo. Uma vez do lado de fora, sentiu-se subitamente zonzo e achou que fosse cair. Seus pulmões trabalhavam com dificuldade e lentamente a agressiva sensação de claustrofobia o abandonava. Seu coração trabalhava dolorosamente e sua pele, sempre ardente, dessa vez fumegava. Lavou o rosto com a água de um bebedouro para cavalos das proximidades e sentiu-se relativamente melhor.
O aviso de Abigor fora claro: manter-se longe de locais sagrados, ou a dor seria indescritível. Mas ele precisava, fazia parte do plano. Mais aliviado e já quase totalmente recuperado, Sean passou no saloon de Stone Ville para tomar uma bebida e comer algo, enquanto munia-se das coisas que adquirira com o armeiro, com o dono do armazém, e na igreja. Combinando-as, passou a por em prática aquilo que audaciosamente planejara. Feito isso, voou para o alto da sela de seu sombrio animal e embrenhou-se uma vez mais no deserto. Durante a viagem, parou apenas uma vez para alimentar seu cavalo com sangue de alguns abutres; nutriu-o bem, porque o caminho era longo e precisavam ser rápidos.
Usando seus incríveis poderes infernais como uma espécie de radar, Sean certificou-se de que não havia viva alma nas imediações para testemunhar a situação inacreditável prestes a se realizar em pleno deserto, sob o sol escaldante da tarde. Balançando as rédeas, o Renegado instigou sua montaria sobrenatural a correr como nunca antes.
Pandemônio mostrou nesse galope que o sangue diabólico realmente circulava em suas veias: deslocou-se tão rápido que suas patas musculosas e peludas mal tocavam o chão arenoso, sua crina e sua cauda tremulando furiosamente ao vento asfixiante da tarde, o qual atravessava impetuosamente cavalo e cavaleiro naquela corrida alucinante e desenfreada. Com o sol vespertino reluzindo em seu pelo negro como azeviche e arrancando dele reflexos maravilhosamente azulados, Pandemônio transformou-se em um raio impossível de ser acompanhado pela vista humana, rasgando o deserto com a rapidez da luz, sua passagem sulcando o deserto e erguendo uma imensa nuvem de poeira amarela, maior do que qualquer cavalo comum poderia provocar com sua passagem. Seu galope era tão célere que o próprio som parecia não conseguir acompanhá-lo eficientemente. O Renegado segurava as rédeas firmemente com uma mão, enquanto, com a outra agarrava o chapéu, fincando-o na cabeça, lutando para impedir que o vento o carregasse.
Pouquíssimo tempo depois, bem menos do que Sean Ridell esperava, Pandemônio estacou diante da fatídica árvore em que, tempos antes o rapaz quase se enforcara, e sob a qual vendera sua alma ao diabo. Desmontou de seu cavalo e permaneceu de pé, ouvindo o som do vento quente que varria a ampla aridez do deserto. O mesmo vento ardente que esculpira, durante séculos, aqueles imensos e avermelhados blocos rochosos que se levantavam contra o horizonte a noroeste, como gigantes que marchassem com imponência sob o céu limpidamente azul, praticamente sem nuvens. Ao redor da árvore maldita, tumbletweeds passavam girando velozmente, empurrados impiedosamente pela brisa impetuosa. Cactos pontilhavam a vermelhidão desértica até onde se podia enxergar. Serpentes, escorpiões e lagartos esgueiravam-se velozmente pelo terreno irregular, escondendo-se rapidamente sob pedras, para não ser alvo dos inúmeros falcões que patrulhavam o deserto do alto, com seu olhar vigilante e aguçado.
Levantando os olhos cinzentos, enigmáticos e taciturnos, Sean Ridell avistou uma nuvem de abutres no céu, voando em círculos, bem alto. Provavelmente algum viajante se desviara do caminho e as asquerosas aves estavam apenas aguardando o momento de aterrissar para o pavoroso banquete de morte. Dependendo do que acontecesse bem ali nos próximos instantes, talvez em breve fosse a carne do Renegado que os abutres estariam bicando. Esse pensamento causou arrepios e repulsa em Sean e, quando ele desviou a vista do céu, estava tentando também afastar da mente esse tipo de idéia. Pousou ternamente os olhos em Pandemônio, que andava livremente por ali. O lugar, a situação, tudo influenciava Sean a acreditar que o fim estava próximo, e não seria agradável.
Subitamente o ar abrasador da tarde tornou-se anormalmente gelado, quase congelante. A brisa glacial trouxe o cheiro intenso e desagradável de enxofre. Em algum lugar acima dele, corvos grasnaram agourentamente. Sean estava encarando a árvore ressequida, onde uma tira de corda deteriorada pelo tempo, amarrada ao galho mais grosso, flutuava tragicamente ao vento sobrenaturalmente frio. Com os olhos cinzentos magnetizados na árvore, Sean Ridell não precisou se virar para saber que Abigor estava parado às suas costas, a poucos metros de onde ele se encontrava. De repente ouviu a tão já conhecida voz fria, cavernosa, metálica e impessoal, abafada pelo lenço vermelho:
- Vi você se dirigindo para cá, e supus que quisesse falar comigo, Renegado. Pois cá estou.
Continua...
Danilo Alex
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