Meu nome é Pablo Oliveira Neves, tenho dezoito anos
e estou escrevendo hoje para preservar o que ainda resta de minha sanidade. Registrar
minhas impressões escrevendo foi o modo mais seguro que encontrei de desabafar
sem que quisessem me colocar em uma camisa de força.
Se alguém um dia encontrar isso, e esse caderno de
alguma forma vier a público, então algo de muito ruim pode ter acontecido a
mim, ou a qualquer um dos envolvidos nessa história que, faço questão de
frisar, é absolutamente verídica, tanto quanto é certo que dois e dois são
quatro, ou que o dia precede a noite. Realmente é um fardo muito pesado para um
jovem de minha idade considerar a possibilidade de que estas poucas linhas
redigidas nos raros momentos de lucidez atuais podem ser as minhas últimas.
Essa missiva pode vir a ser futuramente lida como uma espécie de testamento.
Agradeço o destino por essa clareza que alivia
temporariamente minha dor e meu pânico. Como tem acontecido freqüentemente, não
consigo dormir. Estamos em abril. A madrugada avança, o vento uiva e a chuva
fria tamborila no telhado. Queria eu que as trevas permanecessem lá fora.
Queria eu que as sombras que nos perseguem fugissem como a escuridão que se
dissipa com um simples acionar de interruptor. Apesar de minha pouca idade,
tenho percebido que na vida nada é tão simples assim.
A princípio, gostaria de esclarecer que sempre fui
um jovem cético em relação a tudo que a inteligência humana não possa
comprovar. Sou oriundo de família assiduamente católica, e desde criança fui
incentivado à crença nessa doutrina, mas minha natureza extremamente racional
me impede de cultivar a mesma, digamos, fé que meus familiares. E isso não tem
nada a ver com o estilo musical que ouço, que é o heavy metal. Afinal, se,
conforme os metaleiros mais tradicionais dizem, o heavy metal foi criado para
exaltar o diabo, eu não poderia crer, já que tampouco saberia afirmar se
acreditava na existência de uma divindade suprema racional e organizada – que a
maioria das pessoas costuma chamar de Deus. Ou pelo menos, era o que eu achava
sobre minhas próprias crenças.
Dada a estranheza dos últimos fatos, já nem sei
mais o que dizer ou em que acreditar. Minha mente rigidamente racional não tem
podido me ajudar muito no momento. Enfim, vamos ao relato.
Tudo começou por causa de uma garota. Desde o
princípio tem sido assim: as coisas demonstram uma maior propensão a desandar
quando há uma mulher envolvida. Mesmo sendo alguém tão perfeita como Julia.
Julia Marcondes é uma colega da minha
turma. Ela é diferente das outras meninas, sobretudo por seu estilo gótico. A
despeito de suas roupas sempre pretas, sua maquiagem pesada ou seus longos
cabelos tingidos, negros como penas de corvo, ela é uma das primeiras alunas da
classe. Inteligentíssima, séria, perfeita. Quando ela pousa aqueles olhos cor
de piche em mim, tão cheios de mistérios e promessas de um amor nada
convencional, sinto o mundo e o tempo congelarem ao meu redor. Faço
praticamente qualquer coisa para ser notado por ela. Tenho lido bastante Poe,
Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Goethe. E, se você fuçar no meu mp3, vai
encontrar apenas Nightwish, Epica, Tristania, Lacuna Coil, Within Temptation,
Evanescence e bandas similares. Não sou exatamente um grande fã desse tipo de
literatura ou música, então, você pode imaginar como estar apaixonado
influencia as pessoas.
Sondando os amigos e amigas dela, descobri que
Julia era meio ligada nessas coisas de inferno, diabo, ocultismo, pactos etc.
Mesmo não crendo em nada disso, dei um jeito de pesquisar a respeito. Na
escola, uma moda é o tal do “jogo do copo” ou “jogo da caneta”, como chamam
essas brincadeiras mórbidas de comunicação com os mortos, tidas como
inofensivas pela maioria. Espalhou-se como gripe essa mania quando começaram a
circular boatos de que um grupo de jovens, enquanto realizavam o jogo do copo,
tinham presenciado o mesmo se encher de sangue e estourar, arremessando
ruidosamente estilhaços para todos os lados. Depois do susto, vasculharam o
local, e não encontraram uma gota de sangue sequer, mas o copo estava mesmo
despedaçado.
Espantei-me que garotos e garotas de dezoito anos
apreciassem ainda essas coisas que, aos meus olhos, pareciam muito infantis
(desculpem-me se aparento ser um cara chato; na verdade, sou apenas um pouco
precoce). Mas se Julia gostava, eu teria que, pelo menos fingir que também
gostava. A duas quadras da minha casa há pouco tempo um velho argentino abriu
uma interessante loja de antiquários. Chamei meu melhor amigo para ir comigo
conhecer o novo e inusitado estabelecimento.
Carlos é um garoto tranqüilo, daqueles que poucas
pessoas gostariam de ter como amigo por considerá-lo diferente. Muito alto e
magro, pálido, cabelos arrepiados, óculos de armação excessivamente chamativa e
lentes grossas devido o avançado grau de miopia. Gosta muito de ler sobre
qualquer assunto, grande amante de música clássica e hipismo. Consegue achar
graça em tudo, e seu modo de rir é muito engraçado, puxando o ar com força após
o final de cada gargalhada, o que comicamente lembra o ronco de um porquinho. Como já devem ter notado, pessoas que destoam
dos padrões ditos normais costumam fazer com que eu inconscientemente me
aproxime delas.
Uma vez na loja, estacamos um momento diante da
vitrine e fitamos maravilhados a diversidade de quinquilharias antigas
expostas. Objetos de várias partes do mundo a preços inacreditavelmente baixos.
Inexplicavelmente senti certo mal estar ao contemplar a fachada daquele
estabelecimento. Meus instintos mais primitivos me alertavam, gritantes,
ordenando que eu me virasse e fosse embora imediatamente. Ao contrário, puxei
Carlos pela manga da camiseta e entramos na loja. A porta de vidro se abriu,
fazendo com que os guizos acima da mesma denunciassem nossa presença. Enquanto Carlos
e eu investigávamos as prateleiras minuciosamente, com exclamações de espanto e
franca admiração a cada novo item, o senhor Ramón, proprietário da butique, se
aproximou de nós para nos atender.
Ele estava sorrindo para nós e se preparando para
oferecer sua miríade de objetos estranhos e chamativos, quando meus olhos
pousaram exatamente naquilo que eu procurava: um tabuleiro. Estava meio
escondido entre os tabuleiros de damas e xadrez, ao lado das canecas feitas de
alumínio, de times de futebol nacionais e internacionais. Estava disposto
aparentemente de um modo propositalmente afastado do olhar de possíveis
compradores. Mas eu o encontrei. Interrompendo o Sr. Ramón no meio de uma
frase, apontei determinadamente o tabuleiro com o dedo e indaguei:
- Quero aquilo ali. Quanto é?
Seguindo meu olhar, Sr. Ramón remexeu-se inquieto e
piscou, visivelmente desconfortável. Em seguida, desviou o olhar e
desconversou:
- Aquilo não é tão bacana. Tenho coisas bem mais
interessantes aqui na loja, a um precinho camarada. Vocês chegaram a ver aqui a
coleção de...
- Quero aquilo ali, senhor Ramón. Quanto o senhor
está pedindo nesse tabuleiro?
Estudando-me com seus olhinhos de raposa enquanto
cofiava a barba branca, o velho disse:
- Aquilo te custaria caro, meu filho. Um preço alto
a se pagar. Além do que, já está reservado para outro freguês.
- Quanto é? Eu pago o dobro do que ele ia pagar.
Os olhos do argentino brilharam. Senti um cutucão
nas costelas. Carlos me olhava apreensivamente:
- Pablo, tem certeza que essa é uma boa idéia?
Pagar tanto por esse troço esquisito? – meu amigo ajeitava compulsivamente os
óculos sobre o volumoso nariz, um gesto que ele só realizava quando estava
preocupado e\ou nervoso.
Meu melhor amigo, apesar de muito inteligente,
nutria medos e receios infundados a meu ver, ele não era tão cético quanto eu,
vivia dizendo coisas sobre os tais maus pressentimentos que às vezes tinha.
- Relaxa, Carlos. – eu disse sorrindo – Vou gastar
boa parte de minhas economias, mas vamos encarar isso como um investimento.
Esse tabuleiro, que você hoje chama de troço esquisito, há de ser a minha chave
para o coração da Julia.
- Não sei não, heim cara...
- “Os fins justificam os meios” – respondi
garbosamente, citando Maquiavel, um de meus autores preferidos. E dei a
discussão por encerrada.
Ignorando os apelos de meu melhor amigo,
teimosamente comprei e paguei o objeto. Senhor Ramón contava as inúmeras notas,
satisfeito por ter extorquido mais um panaca. O dinheiro gasto não me
importava: na época eu imaginava que aquela aquisição valeria cada centavo. Dias
depois eu maldiria aquela compra com todas as forças do coração. Se eu pudesse
voltar no tempo...
Puxa vida, é tarde e essas memórias me consomem. Estou muito cansado, preciso tentar dormir. Prometo que em breve voltarei a este caderno para prosseguir com minha narrativa assombrosa, incrível.
Que tenhamos uma boa noite, se isto ainda nos for permitido. Até breve!
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