26 de Abril de 2012 –
3:13 h
Caro diário de bordo,
só tenho a você para recorrer! Acordei sobressaltado no meio da noite,
perseguido por um pesadelo terrível, envolvendo meus amigos e familiares.
Sonhei que a sombra de um garoto armava ciladas mortais para cada um deles, e
tirava suas vidas bem diante dos meus olhos, sem que eu pudesse fazer nada para
evitar. Acordei arfante há pouco, o suor empapando minha camiseta. Me ergui da
cama sufocando com a mão um grito de terror preso em minha garganta seca, o
qual escapou em forma de soluço. Olhei o rádio-relógio sobre o criado-mudo e
constatei ser pouco mais de três da manhã. Não era um bom agouro.
Segundo os cristãos,
três da manhã foi a hora que o Diabo tomou para si, em oposição a Cristo, que
morreu às três da tarde. Logo, três da manhã não pode ser um bom horário, já
que a crença popular afirma ser quando os portões do inferno se abrem, e o mal
está à solta. Tomei um gole de água da jarra que sempre trago comigo antes de
dormir e tateei a gaveta do criado-mudo, em busca da pequena lanterna que uso
quando vou pescar com meu pai. Em seguida, vim procurá-lo, meu amigo diário de
bordo. Sob o pequeno, mas poderoso facho de luz, escrevo agora furiosamente em
suas páginas, como se minha existência dependesse disso, o que, de certa forma,
é verdade. Escrever tornou-se minha terapia secreta, quase uma obsessiva busca
pelo conforto mental.
Meus pais se mostram cada dia mais preocupados
com minha mudança de hábitos e comportamento, mas não posso falar a respeito de
nada disso com eles. Não posso envolvê-los nessa história macabra, porque os
amo mais que qualquer coisa nessa vida. Eles são meu tudo, e eu não permitirei,
de forma alguma, que o mal venha apanhá-los. O mal quer a mim, fui eu que o
desafiei, agora preciso arcar com as consequências. Sozinho.
Sentindo que as sombras
me cercam, escrevo. Ilhado pela luminosidade, redijo isso que, a cada dia que
passa, mais me convenço se tratar de meu testamento. Meu quarto está silencioso
e meio imerso na escuridão; entretanto, sei que não estou sozinho. Posso sentir
isso. Há um intruso em meus aposentos, mas não aquele tipo de invasor que pode
ser impedido por janelas travadas ou portas bem trancadas. Poucas coisas nesse
mundo são capazes de deter, ou pelo menos atrasar o garoto que me espia das
sombras. Um garoto cujo rosto fantasmagórico vi pela primeira vez em uma foto
que gostaria de esquecer.
Prosseguindo com nossa
história, a qual você já pode perceber que é pavorosa, no dia seguinte
perguntei aos outros integrantes do grupo se eu poderia ver a foto que veio anexa
para eles, e inventei uma desculpa, dizendo que meu e-mail não tinha chegado
etc. Todos eles concordaram tranquilamente, e não tinham comentado nada a respeito
de uma décima pessoa no retrato que chegou para eles. Verifiquei fotografia por
fotografia, e todas estavam normais, sem o garotinho que aparecera na minha. Arthur,
se era mesmo ele, quisera ser visto apenas por mim. Por quê? Seria devido ao
meu ceticismo crônico na época?
Relutei um bom tempo
até aceitar aquele fato. Mostrei a foto para Carlos uma vez, e perguntei a ele
o que ele via. Ele disse que não viu nada demais. Comparamos a minha foto com a
dele, e ele disse que, a seus olhos, eram completamente iguais. Mas não eram.
Para mim, não eram.
Eu podia divisar com
nitidez o rosto espectral do garoto que me encarava fixamente da fotografia, o
queixo ligeiramente erguido, num ângulo aparentemente petulante.
O problema então era
comigo, tinha de ser. A única pessoa do grupo que não acreditava no
sobrenatural fora escolhida por Arthur para ser sua testemunha. Cansei de
analisar aquela foto... Scanneei-a e enviei a um amigo que é realmente
talentoso lidando com esses programas como o Adobe Photoshop, para que ele a
analisasse. Pouco depois recebi seu e-mail, onde ele respondia que a foto era
original e estava intocada, sem nenhum tipo de montagem. Pegando meu celular,
disquei o número desse amigo. Tocou duas vezes antes que ele atendesse. Agradeci
pela análise rápida que ele havia feito para mim, e perguntei quantas pessoas
ele vira na imagem.
Ele demorou um instante
para responder, aparentemente surpreso com minha pergunta. Depois, falando
devagar como alguém que dialoga com um maluco, ele disse que vira nove pessoas
na fotografia.
- Por que a pergunta,
Pablo? – ele indagara espantado, após alguns segundos do meu silêncio.
Respondi que não era
nada, agradeci e desliguei. Meus companheiros do grupo conseguiam falar com
Arthur por meio do tabuleiro, mas eu podia vê-lo em fotografias. Estremeci. O
que seria aquilo? Alucinações?
No dia seguinte, tive
uma surpresa agradável. No finalzinho da tarde, Julia me ligou e perguntou se
eu estava ocupado. Evidentemente respondi que para ela eu nunca estava ocupado
e ela riu, aquele riso cristalino e maravilhoso que ainda posso ouvir se fechar
meus olhos nesse momento, caro diário. Então ela disse que, como a noite estava
agradável, ela pensava em sair para caminhar um pouco, e quis saber se eu não a
acompanharia. Aceitei imediatamente e combinamos que eu a buscaria em casa
meia-hora mais tarde. Desligando o telefone, fui correndo tomar um banho e me
arrumar. Meu pai me levou de carro até a casa dela e cheguei pontualmente. Ela estava
deslumbrante, como sempre. Talvez os outros caras não vissem nada demais em
Julia, mas para mim ela era perfeita. Não conseguia imaginar um mínimo detalhe
nela que eu não gostasse.
Anoitecera. O céu
escuro estava crivado de estrelas, como um manto negro cravejado de diamantes. A
lua cheia, majestosa, se erguia vagarosamente acima das copas das árvores, das
casas e dos prédios. O clima estava agradável, uma brisa refrescante soprava em
nossos rostos, bagunçando os cabelos negros dela, que agora estavam soltos e
revoltos. Nunca amei tanto o vento antes, porque, devido à ação dele, de tempos
em tempos Julia precisava tirar o cabelo da frente de seu rosto, e sempre que
isso acontecia, eu via aqueles olhos negros e brilhantes estudando meu rosto
com uma atenção enigmática. Eu então, embasbacado, tinha de respirar fundo para
recobrar o fôlego. Ela percebia e sorria para mim, um sorriso que, aos meus
olhos, era muito mais encantador do que todo aquele céu estrelado, mais lindo
que a própria lua, cuja figura prateada e descomunal se elevava gradativamente
até seu trono na abóbada celeste revestida de trevas, onde ela reinaria
absoluta até os primeiros raios de sol.
Íamos caminhando e
conversando sobre várias coisas, mas claro que ela quis falar principalmente
sobre o tabuleiro e a manifestação de Arthur. Intimamente fiquei um pouco
contrariado por ter de tocar naquele assunto com Julia. Falar do tabuleiro me
fazia lembrar da foto. Me fazia lembrar do rosto assustador de Arthur. Para
desviar um pouco o assunto, sugeri que passássemos numa sorveteria que ficava a
duas quadras de onde estávamos. Caro diário de bordo, a sorveteria se chama “Ice
Crime” (isso mesmo, Crime Gelado, traduzido em português), um criativo joguete
de palavras que o proprietário fez devido o original “Ice Cream”, que é
sorvete, traduzindo. Então, se você, pondo os olhos no letreiro luminoso na
entrada da sorveteria, ler a primeira palavra em inglês, e a segunda em
português, sem perceber vai estar praticamente falando “sorvete” em inglês.
O Sr. Félix, dono da
Ice Crime, é amigo do meu pai de longa data. Desde criança tomo sorvete lá com
minha família, e muitas e muitas vezes o Sr. Félix me contou a história de como
escolhera o nome para a sorveteria. Além do trocadilho bacana que acabei de
explicar, Félix era um grande fã de filmes de gângster, sabe, caro diário? Toda
essa coisa de "Os Intocáveis" e "O Poderoso Chefão", aqueles antigos criminosos do
cinema norte-americano, que, vamos admitir, definitivamente são caras de
estilo. Por isso Félix batizou seu
estabelecimento de Ice Crime e decorou as paredes com fotos dos atores e das
cenas de seus filmes favoritos. Para mim, o sorvete de lá é o melhor do mundo,
e absolutamente, é literalmente um crime deixar de provar as iguarias geladas
de lá. Por isso, fiz questão de levar Julia ali.
Ao me ver, o Sr. Félix
esboçou um sorriso e acenou para mim, embora olhasse um pouco assombrado para a
minha companheira. Sorri; Félix era de outro tempo, não adiantaria explicar que
aquela garota ali do meu lado, com seus piercings, maquiagem pesada, roupas
escuras e cabelos pretos como a noite era a dona do meu coração. Acho que ele
surtaria se eu tentasse dizer-lhe isso. Julia nem percebeu que o homem a
estudava, tão admirada estava com a decoração bacana do lugar. Pedi dois milk-shakes:
um de morango, conforme eu sabia que ela adorava, e um de chocolate para mim,
já que sou chocólatra de nascença. Ambos os sorvetes eram ovomaltine. Paguei,
despedi-me de Félix e deixamos a Ice Crime.
Quando estávamos
caminhando novamente pela rua, ela tomou um gole do milk-shake pelo canudinho,
arregalou os olhos e, suspirando de satisfação, disse:
- É realmente
maravilhoso, Pablo! Como eu nunca soube desse lugar? – e com seu sorriso
perfeito – Obrigada.
Caminhamos durante mais
algum tempo, ela rindo como criança e me mostrando a lua cheia boiando contra o
céu estrelado como um imenso balão redondo e prateado. Ela era apaixonada pela
lua, assim como o era por sorvetes de morango. Terminando nossos milk-shakes,
jogamos os copos no lixo e estacamos. Lambendo os lábios melecados de sorvete, ela
olhou subitamente para mim com uma intensidade que me deixou rubro:
- Você é um garoto
corajoso, Pablo? Gosta de aventuras?
- Bom... acho que sim –
respondi desconcertado pela pergunta surpresa, sem fazer ideia de onde ela
queria chegar com aquilo.
Como se lesse meus
pensamentos, Julia explicou:
- Pergunto, porque
estou a fim de um garoto assim para me acompanhar em uma aventura noturna agora
mesmo.
Subitamente fingindo
estar sério, olhei demoradamente ao redor e então pousei meus olhos nela e,
dando de ombros, disse em tom de brincadeira:
- Bem, acho que você
deu azar; o garoto mais perto sou eu, e você vai ter de se contentar com isso.
Rindo a valer, ela
apenas se virou e fez sinal para que a seguisse. E então disparou a correr,
descendo a rua. Imediatamente a segui, é claro, sem saber o que aquela maluca
ia fazer. Eu tinha de fazer um enorme esforço para não rir, porque isso me
tiraria o fôlego e eu não ia querer perder ela de vista. As pessoas passavam
por nós na rua e se viravam para nos olhar, como se fôssemos uma dupla de
extraterrestres em desabalada carreira pelas vias noturnas da cidade. Quando
finalmente alcancei Julia, ela estava parada sob um poste, e a luz amarelada
que a banhava delineava suas maravilhosas formas juvenis. Ela se voltou para
olhar enquanto eu me aproximava, e então eu tive a impressão de que estava vendo
uma foto em sépia de algum anjo noturno, propositalmente deixado na Terra para
iluminar as noites escuras de caras solitários como eu. Puxa vida, isso foi
poético, não foi meu amigo diário de bordo?
Quando eu já estava bem
perto, Julia me mostrou o muro alto e pintado de branco à nossa frente e só
então me dei conta de que a seguira até o cemitério. Sem me dar tempo para
pensar, ela saiu correndo em direção ao campo santo. Com uma agilidade felina,
ela escalou o muro e estacou encarapitada lá no alto, me fitando de modo
desafiador. Como alguém tão pequeno pudera galgar a parede com aquela
velocidade e habilidade? Provavelmente ela já fizera aquilo diversas vezes,
pois a segurança que demonstrara ao saber exatamente onde apoiar os pés,
conhecer cada saliência, por menor que fosse, e a precisão com que dera dois
passos na parede para pegar impulso, deixavam clara a sua reincidência. Fiquei
lá embaixo, boquiaberto, olhando para ela, tomado por uma sensação de irrealidade.
Julia não parava nunca de me surpreender.
- E então? Você vem ou
não? – ela me provocou.
- Você é maluca! – eu disse
e continuei imóvel, hesitante.
- Se vier, vai ser bem
recompensado. – ela disse languidamente e piscou de um modo travesso.
Cara, aquilo era música
para meus ouvidos. Mal terminou de falar, ela passou as pernas por cima do muro
e deixou-se cair para o lado de dentro do cemitério. Cocei nervosamente o
queixo e olhei ao redor, para ver se havia alguém se aproximando. Meu pulso
estava acelerado, nunca fizera algo parecido. Quando tive certeza de que não haveria
testemunhas, corri em direção ao cemitério e saltei o mais alto que pude. Meus
dedos agarraram-se ao topo do muro e eu fiquei esperneando desajeitadamente por
alguns segundos, tentando achar apoio para os pés.
Se pudesse, sei que
você riria de mim, caro diário de bordo, mas saltar o muro do cemitério foi bem
mais complicado do que parecia, principalmente por minha falta de prática. Duas
coisas agiram a meu favor: primeiro era o fato de eu ser alto, pois isso me
ajudou, ainda que penosamente, a içar meu corpo magrelo até o topo do muro. A
segunda coisa, pela qual fiquei realmente feliz, era o fato de Julia já estar
me esperando do outro lado, e não poder ver a situação ridícula em que eu me
achava, esperneando, até conseguir encontrar apoio para os pés.
Instantes depois,
ofegante e com a barriga toda ralada, lá estava eu ao lado de uma sorridente
Julia.
- Não devíamos estar
aqui, você sabe – eu disse a ela em voz baixa – Se alguém nos apanhar,
estaremos encrencados.
- Então não faça
barulho, rapaz. – ela disse após um
sorriso divertido e fez sinal mais uma vez para que a seguisse.
Andamos por alguns
minutos entre lápides entalhadas em granito, sepulturas adornadas com vasos de
diversas flores, e velas cuja cera estava quase toda derretida. Anjos e santos
de mármore colocados sobre os túmulos pareciam me fitar com olhar reprovador. Os
grilos cricrilavam e uma coruja piou ao longe. Para a nossa sorte, a luz
possante e prateada do luar iluminava intensamente nosso bizarro tour pelo campo santo.
- Por que vocês,
góticos, curtem tanto esse tipo de lugar, Julia? – sussurrei para ela, enquanto
a seguia rapidamente, tomando cuidado para não tropeçar em nada.
- Apreciamos o silêncio
e a paz – ela respondeu também em voz, baixa, sem se virar ou parar de
caminhar – Gostamos de vir para escrever, pintar, ler, ou simplesmente pensar
na vida. Mas não foi por isso que eu te trouxe aqui.
Ela parou e apontou o
dedo para um túmulo a um canto. Na lápide estava escrito um nome que me fez
prender a respiração: ”Arthur Dias Azevedo”. Tentando não permitir que ela
percebesse, estremeci. Abaixo das frases de saudade de família e amigos, havia
a data de nascimento e a data de falecimento. O Arthur enterrado ali tinha
acabado de fazer dezessete anos quando faleceu.
- Encontrei enquanto
procurava por aqui da última vez em que vim. – ela disse, me tirando do estado
de perplexidade em que eu mergulhara – Você acha que é ele, Pablo? Acha que é o
“nosso” Arthur?
Fiquei um pouco zonzo
quando ela perguntou isso, mas, resolutamente percorri com os olhos a sepultura
até achar uma foto emoldurada, maltratada pelo tempo. Nela aparecia um garoto
branco, sério, de cabelo loiro, liso e curto, algumas sardas no rosto juvenil.
Também naquela foto, Arthur parecia estar olhando diretamente para mim.
- Talvez seja ele. –
falei desviando a vista, enquanto engolia em seco.
Como Julia não
respondesse nada, olhei para ela e a percebi muito próxima de mim, seus olhos
negros refletindo intensamente a luz da lua, presos nos meus, pedindo algo. Ela
me fitava de um modo diferente de todas as outras vezes. E o silêncio me disse
exatamente o que eu deveria fazer.
Engraçada essa vida,
não é, querido diário de bordo? Realmente irônico que o primeiro beijo na
garota que gosto tenha sido em um cemitério, em noite de lua cheia, bem diante
do túmulo de alguém que há pouco começara a me assombrar. Vivendo intensamente
aquele momento único, esqueci-me completamente de Arthur. Preferi me concentrar
no beijo de Julia, sorvendo da boca dela o gosto de morango do milk-shake da
Ice Crime.
Subitamente um facho
poderoso de lanterna nos atingiu em cheio. Assustados, nos voltamos em direção
à luz. Um cão furioso rosnava e uma voz masculina zangada cortou o ar:
- Ei, vocês dois!
Tratem de arrumar outro lugar para fazer isso, seus pirralhos! Quando eu puser
minhas mãos em vocês, vou ter o prazer de entregá-los à polícia!
Sem esperar mais,
corremos o mais rápido que podíamos em direção ao muro. Julia ia à frente,
rindo feito uma desmiolada, e ligeira como um coelho. E eu logo atrás,
apavorado, arfante, ouvindo atrás de nós os passos pesados do vigia e os
latidos desvairados do cão. O bicho ainda mordeu e rasgou boa parte da barra da
minha calça novinha. Apesar disso tudo, conseguimos escapar e voltamos correndo
para a casa da Julia.
Caro diário de bordo,
obrigado por me receber quando eu mais precisava. Registrar em suas páginas essas boas
lembranças me acalmaram, e acho que agora consigo voltar a dormir. De manhã,
justo no primeiro horário tenho uma prova complicadíssima de álgebra, e nem sei
como vou fazer se chegar lá na escola parecendo um zumbi. Me despeço de você,
amigo diário de bordo, renovando a promessa de que logo estarei de volta para
continuarmos navegando nesse oceano inescrutável e sombrio em que estou
condenado a vagar desde que comprei aquele maldito tabuleiro na loja do senhor
Ramón. Bem que ele tentou me avisar...
Preciso ir agora, meu
amigo encadernado.
Até breve!
Danilo Alex
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