quinta-feira, 3 de maio de 2012

Jogo Maldito - Parte 5




3 de maio de 2012 – 19:30 h

Caro diário de bordo, aqui estou eu mais uma vez. Desculpe a demora, sei que já se passaram alguns dias desde a nossa última conversa, mas ando realmente atarefado ultimamente; semana exaustiva de provas, entrega de trabalhos, estudando demais. Vivo uma época comum a todos os estudantes, quando nossos cérebros sofrem tanta pressão que parecem estar prestes a pifar.
Você deve estar estranhando o horário, pois geralmente é bem mais tarde quando me ponho a escrever. Costumava passar esse tempo jogando ou navegando pela internet, mas ando sem disposição para essas coisas, amigo diário de bordo. Toda essa situação inimaginável tem drenado minhas forças de tal modo que meu vigor juvenil de agora é mero reflexo opaco da energia que eu possuía até mês passado. O tormento mental de quem sempre duvidou das coisas e se depara com o sobrenatural é infinitamente maior do que o das pessoas as quais sempre acreditaram que o mundo vai muito além do que se vê. Elas estão um passo à minha frente, pois seu modo de pensar as preparou para ocasiões bizarras como as que tenho vivenciado.
Lembra de quando eu citei para Carlos uma frase de Maquiavel, e quando eu te disse que ele era meu pensador favorito, caro diário de bordo?Pois é, começo a perceber que nem sempre os fins justificam os meios, porque, por vezes, os meios podem vir a ser o nosso fim. Literalmente. Nesse papo que teremos hoje, você entenderá porque me convenci disso.
Retomando nossa apocalíptica narrativa, depois daquela noite que contei em suas páginas, caro diário de bordo, acrescentou-se mais um motivo para a minha insônia. Por mais que tentasse, não conseguia esquecer Julia nem por um segundo. As circunstâncias estranhas e sombrias em que nosso beijo aconteceu não me incomodavam. O contexto não importava; apenas o acontecido.  O momento ficou gravado em minha retina, e eu o revi milhares de vezes deitado em minha cama, fitando o teto, sem conseguir pregar os olhos. Sentia uma felicidade que gostaria de eternizar, e (pasme, amigo diário) na época cheguei a ser grato a Arthur, por ele estar, ainda que involuntariamente, me aproximando da garota que eu curtia.
Diário de bordo, meu companheiro encadernado, hoje tenho consciência que eu deveria ter parado aquela brincadeira mortal. Deveria ter dado um sumiço no meu tabuleiro Ouija de uma vez. Hoje eu sei que seria o certo a se fazer na época, mas agora pode ser tarde demais.
Ciente dos perigos oferecidos pelo tabuleiro, assim que tivemos tempo livre, reuni o pessoal para jogar novamente. Eu queria estar mais perto de Julia, queria que a noite em que fomos à sorveteria e ao cemitério se repetisse muitas e muitas vezes. E então joguei com minha vida, e a vida de meus amigos. Assumo isso e me arrependo amargamente, caro diário de bordo. Jogamos outras vezes, mas Arthur só se manifestava quando Carlos estava presente. Aparentemente, só eu reparei isso. Portanto, apesar da relutância do meu melhor amigo, a próxima partida, a qual irei narrar agora, aconteceu na casa dele.
Carlos era para mim um amigo como Lancelot era para Arthur Pendragon, mais conhecido como rei Arthur. Eis aí um Arthur de quem gosto de falar, caríssimo amigo diário de bordo. Pelo que se pode ver nos livros e filmes que retratam a lenda, Lancelot e Arthur eram amigos inseparáveis. O rei parecia ser um homem arrojado, valente, e algumas vezes até precipitado. Por isso, às vezes, ele e Lancelot se desentendiam. Então, Arthur, movido por seu altruísmo, senso de justiça e espírito aventureiro, lançava-se intrepidamente nas mais perigosas situações para ajudar alguém. E Lancelot, embora contrariado, sempre o acompanhava; não porque concordasse integralmente com as ações do rei, mas por ser seu melhor amigo.
E era assim que eu via meu bom amigo Carlos: como o Lancelot que o destino colocara em meu caminho. Não que eu pudesse exatamente me comparar ao soberano de Camelot. Um rei jamais submeteria seu povo a riscos desnecessários. E foi justamente o que, de modo impensado, fiz.
Na tarde em que chegamos à casa de Carlos, seus pais tinham saído. Estava sozinho lá, e mal pode ir nos atender à porta. Estava muito resfriado, e seus excêntricos óculos se equilibravam sobre seu nariz grande e então vermelho, por causa da violenta gripe. A todo momento precisava cobrir a boca e o nariz com um lenço para poder espirrar, e conversava conosco meio entabulado, por estar fanho e fungando repetidamente. Carlos só concordara com aquilo porque eu insistira demais, alegando sobre a presença da Julia e a importância de eu continuar próximo dela, do que ela gosta. Carlos Lancelot, esse deveria ser seu nome.
Rapidamente organizamos a sala de estar, acendemos as velas, montamos o tabuleiro; Julia estava tão perto de mim que eu podia sentir o perfume do cabelo dela. Carlos decidiu não participar, quis apenas assistir, mas eu não concordei. Ele olhou para mim por cima dos óculos, e seu olhar era suplicante. Por um instante tive pena do meu amigo: ele estava ali, sofrendo com o resfriado brutal, tentando ser gentil, lutando para ser o anfitrião perfeito, apesar de sentir o corpo dolorosamente pesado e a cabeça fervendo. Cedera aos meus caprichos concordando com que jogássemos em sua casa e ainda fazia questão de tentar nos entreter com sua presença. Era a pura imagem do auto-sacrifício em nome da amizade. Mas eu não respeitei a única vez em que ele quis dizer não.
O seu sacrifício era por um bem maior, conforme eu imaginava. Eu sabia que, se Carlos não estivesse sentado conosco ao redor da mesa, Arthur não viria até nós. Com uma careta seguida de desagrado, ele veio sentar-se conosco. E eu não deveria ter feito isso, caro diário de bordo. Não devia ter pedido isso a ele nunca. Eu devia ter protegido o meu amigo Carlos e falhei. Ele era Carlos Lancelot, mas eu nem cheguei perto de ser Pablo Pendragon. O peso da culpa é a minha punição; o meu flagelo, minha maldição.
Embora um pouco assustado com as atuais circunstâncias, eu não me interessei em pesquisar sobre o uso correto do tabuleiro Ouija. E assim, fiz meu amigo Carlos, que estava adoentado, sentar-se à mesa, às voltas com o jogo maldito. Cumpridas os ritos iniciais, demos início ao jogo. Diante da primeira pergunta, a temperatura do local pareceu ter caído dez graus e a escuridão tornou-se mais densa ao redor das chamas das velas. Luzes tremeluziram em toda a casa e uma gelada corrente de ar percorreu a residência, batendo janelas e fazendo bruxulear a claridade das velas. Sob nossos dedos, a palheta se moveu vagarosamente para indicar a resposta. Arthur se identificou e foi saudado pelo grupo.
Nos primeiros cinco minutos tudo transcorreu, dentro do possível, nas asas da normalidade. Entretanto, em dado momento, senti um deslocamento de ar que ia da palheta até Carlos, como se alguém estivesse passando. Aparentemente, apenas eu percebi isso. Em seguida, Carlos fechou os olhos úmidos pela gripe e sua cabeça pendeu sobre o peito, como se houvesse pegado no sono repentinamente. Nossos amigos acharam engraçado e ficaram zoando, mas eu franzi a testa, intrigado. Carlos não era assim. Por mais cansado ou doente que estivesse, nunca o vira cochilando sentado desse jeito, principalmente perto de muitas pessoas. Chamei-o pelo nome algumas vezes, mas ele não despertava. Segurei então seu ombro direito e o sacudi de leve. Então ele acordou sobressaltado, olhando para nós com estranheza e certo receio, como se não nos conhecesse. Piscou os olhos, sonolento, e depois disfarçou um bocejo cobrindo a boca com o lenço. Pediu desculpas pela rápida soneca e, para meu total espanto, sugeriu que continuássemos jogando.
Durante a resposta da pergunta seguinte, notei que algo estava errado. Diferentemente de antes, percebi que alguém do grupo, de modo extremamente hábil, estava manipulando o ponteiro. Prestei bastante atenção na jogada seguinte e fiquei perplexo. Dessa vez, embora quase imperceptivelmente, Carlos estava movendo a palheta. Ele trapaceava dissimuladamente, de modo que ninguém na mesa, com exceção de mim, percebeu a manobra. Por que raios ele estava fazendo isso? Ou melhor dizendo, por que raios ele estava fazendo isso somente agora? Essa pergunta não conseguia me aproximar de nenhuma explicação plausível, aceitável. Carlos sequer gostava de jogar no tabuleiro Ouija, logo, não havia motivo para ele querer trapacear.
Olhei nos olhos dele, mas vi naturalidade apenas e... o que era aquilo? Seus olhos brilhavam de modo diferente, de maneira que um calafrio inexplicável subiu pela minha espinha. Eu sentia um misto de espanto e raiva; depois chamaria Carlos à parte e perguntaria por que ele estava agindo daquele modo, querendo manipular o jogo. Quando paramos de jogar, fui conversar com Carlos e ele, me olhando de trás dos óculos, apenas disse que não estava trapaceando em nada e agradeceu pela visita, sutilmente me mandando embora. Pasmo, sai sem me despedir.
Fiquei matutando muito tempo, Carlos não era assim. Que estaria havendo? Aquilo foi realmente estranho. Na época, eu não fazia idéia do que se passava. Caro diário de bordo, eu não era ainda capaz de entender que, naquela noite, abríramos a caixa de Pandora.
No dia seguinte, Carlos estava estranho na escola. Mal conversou conosco, não estava usando óculos e seu penteado havia mudado. Parecia outra pessoa. Achei que ele estivesse passando por algum tipo de crise de identidade, ou algum assim, e perguntei se ele queria conversar. Carlos se mostrou totalmente arredio. Disse que não era nada, e despediu-se dizendo que tinha muito a fazer. Definitivamente havia algo errado com ele.
Imaginei que Carlos estivesse irritado pelos transtornos trazidos pelo resfriado. Mas logo ele se curou, e continuou o mesmo: desconfiado, mal humorado, distante. Durante as aulas, passei a observá-lo atentamente e o descobri algumas vezes aéreo, seu rosto denotando uma indecifrável confusão. Caro diário de bordo, aquele garoto distraído, mordendo a tampa da caneta, apoiando o rosto na mão e olhando fixamente para a parede durante a aula de física não poderia ser meu amigo Carlos Bragança. Ele adorava física!
Nos intervalos, enquanto nosso seleto grupo de jogadores se reunia para conversar animadamente a respeito de Arthur, eu me preocupava com Carlos. Meu melhor amigo continuava me rechaçando, e eu não conseguia entender o motivo. Ele me olhava com desconfiança, com certo ódio, como se eu soubesse algum segredo seu, que ele quisesse muito esconder. No começo, ele maltratava apenas a mim, mas depois, embora dissimuladamente, ele começou a fitar com ódio o restante do grupo. E na mira desse disfarçado ódio sem fundamento também estava Julia.
Enquanto fervia minha mente tentando entender o que se passava, as rodadas com o tabuleiro Ouija iam acontecendo, e o mais estranho era o fato de Carlos agora ser o principal incentivador para tal. Ele quem chamava o pessoal para as reuniões, e esses eram os poucos momentos em que ele saía de seu silêncio e quietude de ultimamente. E durante as brincadeiras macabras, Arthur se mostrava sempre ser bondoso e gentil, além de extremante paciente com todas as perguntas que lhe eram dirigidas. Estaria sendo ele sincero, ou apenas mascarando suas reais intenções? Sem falar que, ainda era Carlos que estava manipulando as jogadas. Toda vez que eu pensava em contar ao pessoal o que estava havendo, ele parecia ler meus pensamentos e me lançava um olhar cheio de ódio, o qual fazia com que eu me calasse, espantado. Mas, aos poucos, as pessoas passaram a perceber o que ocorria, passaram a compreender que alguém da mesa estava jogando como se fosse o espírito.
Foi nessa mesma época, querido diário de bordo, que as coisas realmente ficaram sérias. Carlos saiu com mais dois integrantes do nosso grupo: Fábio, o dono da casa onde Arthur se manifestara pela primeira vez, e Tina, a garota dona da casa na qual Arthur se manifestara pela segunda vez. Então Carlos, Fabio e Tina foram a um barzinho no centro da cidade. Como saíram em uma noite do meio de semana, apenas Fabio e Tina puderam, ou quiseram, acompanhar Carlos. O tal barzinho era novo, freqüentado amplamente pela juventude devido sua proximidade da faculdade, bem ambientado. Como Fabio era habilitado, os três foram no carro do pai dele, uma Zafira novinha, preta.
Na manhã seguinte, recebemos a terrível notícia. Estávamos na escola, no primeiro horário, quando a supervisora, lívida, invadiu nossa aula de biologia e despejou a notícia que nos paralisou. Caro amigo diário de bordo, entre todos eu fui, particularmente, o mais atingido pela novidade trazida pela supervisora.
Durante a madrugada, nossos três amigos voltavam do referido bar. Todos estavam embriagados, e esse fator me chocou muito, pois eu sabia que Fabio era um sujeito responsável, jamais faria tal coisa, principalmente por estar na direção do veículo. Mas estavam o três, Carlos, Tina e Fabio extremamente alcoolizados. Por isso, Fabio dirigia de modo irresponsável. Os peritos afirmaram que a Zafira transitava a aproximadamente 80 km / h pelas ruas da cidade, quando a velocidade máxima permitida, dependendo da via, é de apenas 60 km/h.
Em uma esquina a poucos quarteirões da casa de Tina, segundo o depoimento de testemunhas, Fabio avançou o sinal vermelho sem nem ao menos reduzir a velocidade. Um caminhão da coleta de lixo, obedecendo ao sinal verde, atravessava o cruzamento naquele momento quando a Zafira preta surgiu veloz à sua frente. Com os faróis do caminhão atingindo seu rosto, Fabio, assustado, conseguiu utilizar alguma coisa de seus reflexos prejudicados pelo álcool. Segurando firme o volante, Fabio conseguiu desferir um golpe de direção para a direita. Patinando, já descontrolada pela velocidade e pela guinada brusca, a Zafira preta e lustrosa conseguiu escapar de colidir brutalmente com o caminhão, mas, cruzando velozmente a rua durante a manobra, encontrou um poste. A frente da Zafira, totalmente destruída, assemelhava-se a uma sanfona. Uma calota soltou-se das rodas e rodopiou sinistramente pela rua algum tempo.
As casas das proximidades estremeceram com o impacto, acordando uma vizinhança assustada. A batida foi tão forte que o impacto pôde ser ouvido a quarteirões de distância. No local não havia marca de frenagem no asfalto, indicando que a Zafira atingira o poste a 80 km / h, como se fosse um míssil tripulado. Com o monstruoso impacto, Tina, que estava sentada no banco de passageiros da frente e não utilizava o cinto de segurança, atravessou o vidro do pára-brisa e caiu a muitos metros de distância. No caso dela, apesar das diversas fraturas, a morte aconteceu porque o pescoço se quebrou na queda.
Quanto a Fabio, nem mesmo o sistema de Air Bags foi capaz de salvá-lo, já que também não usava o cinto. Bateu violentamente a cabeça contra a janela e seu crânio se esfacelou. Havia sangue por toda parte. Tina e Fabio já estavam mortos quando o socorro chegou. O único sobrevivente foi Carlos, porque ele se achava no banco traseiro, usando cinto de segurança e estava sentado exatamente atrás do assento de Tina. Na batida, o cinto e o assento da frente amorteceram o impacto devastador, de modo que ele sofreu apenas algumas escoriações, ficou um pouco zonzo e teve uma leve torção no pescoço.
Quando a supervisora parou de falar, um silêncio sepulcral se apossou da sala de aula. Os outros alunos estavam tão confusos quanto eu. Era surreal demais tudo aquilo. Fabio e Tina mortos? Não, não podia ser, caro diário de bordo. Fabio tinha pedido para eu explicar-lhe a matéria da prova de inglês do dia seguinte, e eu ainda estava com o caderno de História de Tina, o qual ela me emprestara para que eu copiasse o conteúdo que perdi no início da semana, quando faltei por não estar me sentindo bem. Eles não podiam simplesmente ter ido embora desse mundo, ainda de maneira tão trágica, e em circunstâncias tão estranhas.
Obviamente fomos dispensados das demais aulas e seguimos para nossas casas. O dia, que estava tão bonito, de repente se tornara tão triste, caro diário de bordo. As cores tornaram-se desbotadas e não houve mais motivo para que o riso estivesse em nossos lábios durante muito tempo.
Chegando em casa, belisquei um café da manhã. Empurrei um pouco de comida goela abaixo, mesmo contra a vontade, pois o dia seria longo e eu precisava estar firme para enfrentá-lo. Minha mãe me levou de carro até a agência funerária onde os corpos de nossos amigos estavam sendo velados. Com meu coração ruindo no peito, e pensando numa torrente de palavras de conforto, mas sem encontrar nada de realmente útil que pudesse ser dito, eu cumprimentei os familiares de Fabio e Tina, que evidentemente estavam inconsoláveis.
Caro diário de bordo, se há algo que me incomoda, é um velório. Pessoas chorando convulsivamente, outras conversando em voz baixa, aquela atmosfera insuportável de dor, aflição. Velas enormes ardendo, o cheiro de arranjos de flores, cartazes com mensagens de paz e esperança, pessoas que realmente se solidarizavam com a dor da família, e outras que morbidamente apareciam apenas para saber quem tinha morrido, e depois saíam comentando. E também, é claro, os caixões sobre os suportes metálicos no centro da sala. Os rostos de Fabio e Tina sob o véu quase transparente que encobria os esquifes. A maquiagem feita pelos agentes funerários tentando disfarçar os ferimentos abundantes nos rostos lívidos, mas serenos. Meus amigos estavam mortos, e com eles, os seus sonhos.
Fabio não ia mais prestar vestibular para Direito, conforme tanto queria, e Tina não poderia mais fazer seu intercâmbio no Canadá no começo do ano seguinte, conforme já vinha se preparando intelectual e financeiramente. E nenhum daqueles jovens completara dezenove anos de idade. Lágrimas quentes escorreram por minha face, assim como elas escapam de meus olhos nesse momento e molham suas páginas, meu amigo encadernado, enquanto me lembro daqueles momentos tão tristes.
Eu não conseguia compreender, amigo diário de bordo. Se, como tantos dizem, há um Deus, como Ele poderia permitir uma coisa dessas? Bem sei que é a ordem natural da vida que tudo um dia tenha fim, mas, dois jovens de dezoito anos? Por que eles tinham de ir agora? Por que as pessoas boas se vão, e as ruins continuam vivas e boas, para continuar praticando o mal contra o próximo? Enquanto eu pensava em todas essas coisas, vi quando Carlos chegou. Ele usava um colar cervical azul, para imobilizar o pescoço machucado. Só estava ali por muita insistência, e porque prometera aos médicos que, assim que nossos amigos fossem enterrados, ele voltaria imediatamente para o hospital, onde deveria permanecer em observação e realizar mais alguns exames. Isso, sem mencionar que ele ainda precisava prestar seu depoimento à polícia.
Carlos olhou para mim com desdém e se aproximou dos caixões. Denotava uma tristeza que não me parecia sincera. De cabeça e olhos baixos, recebia abraços dos nossos colegas, que tentavam confortá-lo também. Então, caro diário de bordo, algo horrendo e inexplicável aconteceu.
 Quando Julia se aproximou para abraçá-lo, ergui os olhos e observei a cena. Distando de mim uns três metros, estavam os dois. Julia estava de costas para mim quando se inclinou para envolver Carlos em seus braços de modo consolador. Eu podia ver o rosto de Carlos pousado no ombro dela. Então, enquanto era abraçado, ele olhou para mim. E o maldito... sorriu! Acredita nisso, caro diário de bordo? Esboçou um sorriso sinistro, como se toda aquela situação angustiante o divertisse. Ninguém mais percebeu isso, apenas eu. Ele olhou para mim, para que eu recebesse a mensagem.
Com o sangue fervendo nas veias, tive vontade de ir até lá, arrancar o canalha dos braços de Julia e esmurrá-lo até que meus braços perdessem as forças, mas me contive; a custo, confesso. Então algo em minha mente estalou e comecei a refletir. Mais tarde, caríssimo diário de bordo, depois de toda a dolorosa tristeza do enterro, com a mãe de Tina desmaiando no momento do sepultamento e o pai de Fábio chorado ajoelhado no chão e escondendo o rosto nas mãos, cheguei em casa e vim para o computador. Como um autômato, acessei a pasta de downloads e procurei pela foto que tiramos na casa de Fabio na primeira vez que Arthur se manifestou. Algo me dizia para olhar essa foto. Eu não saberia dizer o que, mas obedeci. Foi instintivo.
Quando a foto surgiu no monitor, caro diário de bordo, me assustei. Ainda estavam lá as dez pessoas, incluindo Arthur, mas algo havia mudado terrivelmente. Os rostos de Fabio e Tina estavam desfocados, irreconhecíveis. Arthur estava no lugar de Carlos e o décimo rosto, que flutuava acima de Julia, era o de um apavorado Carlos. Ocupando o lugar do meu melhor amigo, Arthur agora parecia um garoto normal, de carne e osso, abraçado aos meus amigos. Carlos, ao contrário, parecia um ser espiritual, quase transparente, olhos esbugalhados, apavorado, como se tentasse pedir ajuda, mas ninguém o ouvisse. E sabe o que era pior, meu amigo encadernado?
O pior é que Arthur sorria, e o seu sorriso sinistro era o mesmo que eu vira nos lábios de Carlos durante o velório de Fabio e Tina, enquanto Julia o abraçava. Essa nova visualização da foto, com surpreendentes revelações sobrenaturais serviram para que meu cérebro embotado pudesse começar a compreender os planos de Arthur. E me fez perceber porque o restante do grupo e eu éramos uma ameaça, e estávamos todos correndo grande perigo a partir daquele momento.

Caríssimo diário, puxa vida! Escrevendo nem vejo o tempo passar; é tarde e preciso me deitar. Essas lembranças tristes levam embora toda e qualquer vontade de escrever mais a respeito, assim como trazem à tona toda a raiva que sinto do miserável Arthur e do maldito tabuleiro Ouija. Enfim, vou me despedindo, mas prometo tentar não ficar mais tanto tempo sem dar notícias. Logo estarei de volta, narrando mais e mais sobre esse pesadelo que não parece ter fim.

Até breve!

Danilo Alex da Silva


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