Se naquele circo de horrores um nome
tivesse algum valor, ele seria tratado pelo seu de batismo: Marcelo Queirós.
Contudo, ali o chamavam por um número, o mesmo número que estava inscrito na
sua plaqueta de identificação, presa a uma corrente pendente do pescoço,
corrente essa que se colava ao seu peito sob a farda, quando ele corria
vigorosamente pelo terreno irregular do campo de batalha, em terras européias.
Um número. Seu nome inteiro fora
reduzido a três algarismos. Mais impessoal, impossível. Sentia-se como um
objeto etiquetado, selado com um código de barra, transformado em coisa, como
se não tivesse medos, sonhos, individualidade. Os companheiros mais chegados de
seu pelotão o tratavam pelo sobrenome, o que lhe devolvia ao menos um resquício
de humanidade, identidade. Seus amigos também não passavam de números. Números
lutando. Números sangrando. Números matando e morrendo. Números dando suas
vidas pela pátria. Brava gente brasileira...
Assim como os alemães, o frio era
um inimigo implacável.
Batalha travada em Montese, em pleno
solo italiano. Marcelo Queirós fazia parte de um dos dois pelotões da Força
Expedicionária Brasileira, a famosa FEB, que, apoiando os
Aliados, naquela manhã iniciaram um sangrento combate cujo objetivo era tomar
dos alemães a cidade italiana de Montese, uma região apinhada de colinas,
fronteiriça aos municípios de Modenha e Bolonha.
Duas tropas exclusivamente
brasileiras desferiam aquele ataque poderoso e decisivo. Histórica e
teoricamente falando, parece algo bonito, heróico e interessante, quase
poético. Mas na prática, a coisa foi bem diferente; Marcelo que o diga. Parecia
um pesadelo sem fim.
Com o corpo gelado e dormente, quase
morto por hipotermia, Marcelo se concentrava não apenas na luta, mas em
permanecer vivo. Seu pelotão fora detido pelo fogo inimigo logo na primeira
investida.
Rastejando sob fios de arame
farpado, buscando proteção a todo momento, vagarosamente os guerreiros da
FEB avançavam sob o matraquear pesado de uma metralhadora.50 alemã,
montada sobre um bipé no topo de alguma ruína, que antes fora uma elegante
casa.
Respondiam à fuzilaria cerrada
inimiga da maneira que podiam, se expondo o mínimo o possível. Projéteis
cortavam ruidosamente o ar, zunindo em todas as direções, num pipocar irritante
e ininterrupto. Os brasileiros tentavam desalojar os alemães de suas
trincheiras e casamatas.
Bombas explodiam a todo minuto, fazendo
o solo estremecer e reduzindo quarteirões inteiros a ruínas.
Girando os olhos ao longo da extensão
daquele pedaço do inferno na terra, Marcelo viu seus companheiros. Jovens
assustados, mas determinados. Via-os gesticulando desesperadamente, suas vozes
sumindo em meio à barulheira infernal das bombas, dos tiros, os gritos de
morte, bem como o som dos veículos terrestres e aviões de guerra. Marcelo via
os pracinhas queimarem óleo diesel e contemplava a nuvem negra que, causada
pela combustão, escurecia o ar e comprometia a visibilidade dos atiradores
alemães, refestelados em suas posições privilegiadas. E então, os soldados da
FEB, empunhando firmemente seus fuzis, lançavam-se morro acima pedindo a Deus
que desviasse a trajetória das balas inimigas. E atiravam contra as casamatas
onde estavam alojados os germânicos.
E Marcelo corria junto com eles. Ouvia
a cantiga ininterrupta das metralhadoras inimigas atirando às cegas contra a
nuvem escura que protegia os pracinhas enquanto eles corriam colina acima. Do
meio da fumaça negra, um segundo após a cantilena mortal das armas, os
projéteis começaram a surgir. Rasgavam o ar numa velocidade impressionante,
zumbindo como um enxame de vespas furiosas. As balas dilaceravam corpos,
retalhavam carnes e ceifavam vidas em proporções aterradoras.
“Ou ficar a pátria livre, ou morrer
pelo Brasil...”
Marcelo, ou o soldado Queirós, ou
simplesmente o número 068, percebia que a guerra não era como parecia. As
tropas inimigas eram compostas, em sua maioria, por jovens da idade dele, tão
cheios de sonhos e vida, que deixaram para trás famílias, amigos e namoradas
para lutar no conflito. Olhando ao redor, via seus companheiros se sacrificando
pela pátria, lutando, defendendo não apenas um ideal, mas todo um povo, toda
uma nação, toda uma História. Muitos não voltariam para casa. Seus pais
receberiam apenas uma carta de condolências do governo e uma medalha de
bravura. Seus filhos foram enviados à guerra, mas apenas medalhas retornariam
em seus lugares.
Soldados brasileiros extenuados e
carentes de treinamento adequado para combate naquele tipo de terreno
atravessavam o campo de batalha. O frio era inclemente. O ar europeu era
diferente do de sua terra natal. Estavam desfavorecidos em relação ao terreno.
Tentativas foram feitas e resultaram em fracassos. Não parecia haver um modo de
vencer aquela batalha.
“Verás que um filho teu não foge à
luta...”
Então, o pelotão de Marcelo
juntou-se às tropas da FEB que lutariam bravamente pela conquista de Monte
Castello. Em 21 de fevereiro de 1945, contra todas as possibilidades, os pracinhas
desalojaram os alemães e ocuparam o Monte Castello. Os brasileiros, por sua
coragem, a despeito da carência de recursos e treinamento, realizaram uma
verdadeira proeza e angariaram o respeito e admiração até mesmo do inimigo.
Fizeram o impossível.
A Batalha de Monte Castello resultou em
um grande número de baixas para as Forças Expedicionárias Brasileiras. O
soldado Marcelo Queirós estava entre os sobreviventes que, ao voltar para casa,
foram aclamados como heróis. Mas ele não pensava assim. Aos dezenove anos,
Marcelo aparentava o dobro de sua idade. Cansado, envelhecido pelo combate. Ele
sabia que a guerra nunca fora algo heróico ou glorioso. Não havia vencedores ou
perdedores, Havia apenas destruição. Havia apenas mortos. Ele não se sentira um
herói quando seu coturno estava chafurdando em pântanos de sangue e neve. Não
se sentira herói ao fuzilar garotos como ele. Angustiara-se ao imaginar
famílias inteiras mortas sob os escombros, e outras tantas escondidas em
porões, tomadas pelo medo, passando fome na escuridão.
Marcelo não sabia que mais tarde Renato
Russo faria uma música e a batizaria de Monte Castello. O que ele sabia é que a
guerra é uma droga. Era, é, e sempre será uma porcaria ter de assassinar seu
semelhante. Quando morresse, ele esperava que o Senhor o admitisse no Paraíso,
já que passar uma temporada no Inferno foi, no ano de 1945, a sua missão aqui
na Terra.
Fim
Soldados alemães feitos prisioneiros pelas tropas brasileiras na Segunda Guerra Mundial
Cerca de vinte e cinco mil soldados brasileiros,conhecidos como "os pracinhas", compuseram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) que foi enviada para ajudar os Aliados nos campos de batalha europeus durante a Segunda Guerra.
“Um aviso para o povo
O bem e o mal
Isto é guerra
Para o soldado, o civil
O mártir, a vítima
Isto é guerra”
(This is war – 30 Seconds to Mars)
“Não tem amigos
Nem vê garotas
Só gente morta
Caindo ao chão”
(Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones – Engenheiros do Hawaai)
“Viemos preparados
Prá almoçar soldados
Chegamos atrasados
Sumiram com a cidade
Antes de nós
Mesmo assim
Basta esquecê-la
No outro dia
Transformando em lataria
Tudo que estiver
Ao nosso alcance...
Errar não é humano
Depende de quem erra
Esperamos pela vida
Vivendo só de guerra...”
(Múmias – Biquíni Cavadão)
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