terça-feira, 29 de maio de 2012

Temporada no Inferno




Se naquele circo de horrores um nome tivesse algum valor, ele seria tratado pelo seu de batismo: Marcelo Queirós. Contudo, ali o chamavam por um número, o mesmo número que estava inscrito na sua plaqueta de identificação, presa a uma corrente pendente do pescoço, corrente essa que se colava ao seu peito sob a farda, quando ele corria vigorosamente pelo terreno irregular do campo de batalha, em terras européias.
 Um número. Seu nome inteiro fora reduzido a três algarismos. Mais impessoal, impossível. Sentia-se como um objeto etiquetado, selado com um código de barra, transformado em coisa, como se não tivesse medos, sonhos, individualidade. Os companheiros mais chegados de seu pelotão o tratavam pelo sobrenome, o que lhe devolvia ao menos um resquício de humanidade, identidade. Seus amigos também não passavam de números. Números lutando. Números sangrando. Números matando e morrendo. Números dando suas vidas pela pátria. Brava gente brasileira...
 Assim como os alemães, o frio era um inimigo implacável.
Batalha travada em Montese, em pleno solo italiano. Marcelo Queirós fazia parte de um dos dois pelotões da Força Expedicionária Brasileira, a famosa FEB, que, apoiando os Aliados, naquela manhã iniciaram um sangrento combate cujo objetivo era tomar dos alemães a cidade italiana de Montese, uma região apinhada de colinas, fronteiriça aos municípios de Modenha e Bolonha.
 Duas tropas exclusivamente brasileiras desferiam aquele ataque poderoso e decisivo. Histórica e teoricamente falando, parece algo bonito, heróico e interessante, quase poético. Mas na prática, a coisa foi bem diferente; Marcelo que o diga. Parecia um pesadelo sem fim.
Com o corpo gelado e dormente, quase morto por hipotermia, Marcelo se concentrava não apenas na luta, mas em permanecer vivo. Seu pelotão fora detido pelo fogo inimigo logo na primeira investida.
 Rastejando sob fios de arame farpado, buscando proteção a todo  momento, vagarosamente os guerreiros da FEB avançavam sob o matraquear pesado de uma metralhadora.50 alemã, montada sobre um bipé no topo de alguma ruína, que antes fora uma elegante casa.
 Respondiam à fuzilaria cerrada inimiga da maneira que podiam, se expondo o mínimo o possível. Projéteis cortavam ruidosamente o ar, zunindo em todas as direções, num pipocar irritante e ininterrupto. Os brasileiros tentavam desalojar os alemães de suas trincheiras e casamatas.
Bombas explodiam a todo minuto, fazendo o solo estremecer e reduzindo quarteirões inteiros a ruínas.
Girando os olhos ao longo da extensão daquele pedaço do inferno na terra, Marcelo viu seus companheiros. Jovens assustados, mas determinados. Via-os gesticulando desesperadamente, suas vozes sumindo em meio à barulheira infernal das bombas, dos tiros, os gritos de morte, bem como o som dos veículos terrestres e aviões de guerra. Marcelo via os pracinhas queimarem óleo diesel e contemplava a nuvem negra que, causada pela combustão, escurecia o ar e comprometia a visibilidade dos atiradores alemães, refestelados em suas posições privilegiadas. E então, os soldados da FEB, empunhando firmemente seus fuzis, lançavam-se morro acima pedindo a Deus que desviasse a trajetória das balas inimigas. E atiravam contra as casamatas onde estavam alojados os germânicos.
E Marcelo corria junto com eles. Ouvia a cantiga ininterrupta das metralhadoras inimigas atirando às cegas contra a nuvem escura que protegia os pracinhas enquanto eles corriam colina acima. Do meio da fumaça negra, um segundo após a cantilena mortal das armas, os projéteis começaram a surgir. Rasgavam o ar numa velocidade impressionante, zumbindo como um enxame de vespas furiosas. As balas dilaceravam corpos, retalhavam carnes e ceifavam vidas em proporções aterradoras.
“Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil...”
Marcelo, ou o soldado Queirós, ou simplesmente o número 068, percebia que a guerra não era como parecia. As tropas inimigas eram compostas, em sua maioria, por jovens da idade dele, tão cheios de sonhos e vida, que deixaram para trás famílias, amigos e namoradas para lutar no conflito. Olhando ao redor, via seus companheiros se sacrificando pela pátria, lutando, defendendo não apenas um ideal, mas todo um povo, toda uma nação, toda uma História. Muitos não voltariam para casa. Seus pais receberiam apenas uma carta de condolências do governo e uma medalha de bravura. Seus filhos foram enviados à guerra, mas apenas medalhas retornariam em seus lugares.
Soldados brasileiros extenuados e carentes de treinamento adequado para combate naquele tipo de terreno atravessavam o campo de batalha. O frio era inclemente. O ar europeu era diferente do de sua terra natal. Estavam desfavorecidos em relação ao terreno. Tentativas foram feitas e resultaram em fracassos. Não parecia haver um modo de vencer aquela batalha.
“Verás que um filho teu não foge à luta...”
 Então, o pelotão de Marcelo juntou-se às tropas da FEB que lutariam bravamente pela conquista de Monte Castello. Em 21 de fevereiro de 1945, contra todas as possibilidades, os pracinhas desalojaram os alemães e ocuparam o Monte Castello. Os brasileiros, por sua coragem, a despeito da carência de recursos e treinamento, realizaram uma verdadeira proeza e angariaram o respeito e admiração até mesmo do inimigo. Fizeram o impossível.
A Batalha de Monte Castello resultou em um grande número de baixas para as Forças Expedicionárias Brasileiras. O soldado Marcelo Queirós estava entre os sobreviventes que, ao voltar para casa, foram aclamados como heróis. Mas ele não pensava assim. Aos dezenove anos, Marcelo aparentava o dobro de sua idade. Cansado, envelhecido pelo combate. Ele sabia que a guerra nunca fora algo heróico ou glorioso. Não havia vencedores ou perdedores, Havia apenas destruição. Havia apenas mortos. Ele não se sentira um herói quando seu coturno estava chafurdando em pântanos de sangue e neve. Não se sentira herói ao fuzilar garotos como ele. Angustiara-se ao imaginar famílias inteiras mortas sob os escombros, e outras tantas escondidas em porões, tomadas pelo medo, passando fome na escuridão.
Marcelo não sabia que mais tarde Renato Russo faria uma música e a batizaria de Monte Castello. O que ele sabia é que a guerra é uma droga. Era, é, e sempre será uma porcaria ter de assassinar seu semelhante. Quando morresse, ele esperava que o Senhor o admitisse no Paraíso, já que passar uma temporada no Inferno foi, no ano de 1945, a sua missão aqui na Terra.  


Fim



Soldados alemães feitos prisioneiros pelas tropas brasileiras na Segunda Guerra Mundial



Cerca de vinte e cinco mil soldados brasileiros,conhecidos como "os pracinhas", compuseram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) que foi enviada para ajudar os Aliados nos campos de batalha europeus durante a Segunda Guerra. 




“Um aviso para o povo
O bem e o mal
Isto é guerra
Para o soldado, o civil
O mártir, a vítima
Isto é guerra”

(This is war – 30 Seconds to Mars)





“Não tem amigos
Nem vê garotas
Só gente morta
Caindo ao chão”

(Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones – Engenheiros do Hawaai)



“Viemos preparados
Prá almoçar soldados
Chegamos atrasados
Sumiram com a cidade
Antes de nós
Mesmo assim
Basta esquecê-la
No outro dia
Transformando em lataria
Tudo que estiver
Ao nosso alcance...

Errar não é humano
Depende de quem erra
Esperamos pela vida
Vivendo só de guerra...”

(Múmias – Biquíni Cavadão)

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