segunda-feira, 14 de maio de 2012

Jogo Maldito - Parte 6



16 de maio de 2012 – 01:02 h

Caríssimo diário de bordo, olá mais uma vez! Para variar, não consegui dormir, então vim buscar conforto em suas páginas. Embora meu corpo esteja exausto, minha mente se recusa a descansar, meu inconsciente de alguma forma tentando avisar que não posso dormir; preciso, mas não posso. Não é seguro fechar os olhos, não é bom permitir que a mente divague, percorrendo os obscuros caminhos de um sono reparador. Me sinto dentro de um filme de terror, sabe caro diário de bordo? Como se de algum modo inexplicável eu houvesse sido sugado para dentro de A Hora do Pesadelo, e fosse capaz de ouvir garras afiadas arranhando a parede do meu quarto, enquanto crianças com os olhos arrancados, de mãos dadas numa ciranda horrenda ao meu redor, cantam para mim em uníssono, uma canção sinistra e monótona:
- “Um, dois, Freddy vem te pegar... três, quatro, melhor a porta trancar...”
Quem me dera meu perseguidor fosse esse, amigo diário de bordo. Como sugere a fúnebre canção, talvez Freddy Krueger seja impedido pela porta. Meu adversário as atravessa, rindo divertido enquanto o faz. Enquanto o tempo corre, o destino zombeteiro, parece cantar para mim:
- “Um, dois, Arthur vem te pegar...”
Freddy Krueger tinha fraquezas. Se Arthur possui alguma, eu ainda não descobri. Por isso, meus amigos vem pagando o preço por minha irresponsabilidade. Sabe, caro diário de bordo, desde o acidente mortal envolvendo Fabio e Tina, ando totalmente aéreo, enfrentando certas dificuldades para concatenar as idéias e registrá-las em suas páginas. Realmente complicado organizar os pensamentos para relatá-los aqui com a coerência e coesão necessárias, quando minha mente parece arrebatada de encontro aos acontecimentos avassaladores dos quais todo dia temos uma notícia.
Há poucos dias Márcia, uma das garotas do nosso grupo de jogadores, sofreu um grave acidente na escola. Márcia é patologicamente alérgica a abelhas, alergia essa que traz do berço. Acontece que, na escola, a garota foi atacada por um enxame raivoso desses insetos mortais, os quais podem ser criaturas extremamente pacíficas se não forem perturbadas. E o fato é que Márcia não faria mal sequer a uma formiga. Estranhamente Carlos, embora eu não tenha mais tanta certeza se é ele quem está atrás do volante agora, estava por perto na ocasião, foi ele quem chamou ajuda para a nossa colega. Márcia foi ferroada na garganta e por muito pouco escapou de morrer asfixiada. Encontra-se agora em estado grave, numa Unidade de Tratamento Intensivo em um dos hospitais de nossa cidade.
Carlos (?), como o tratarei doravante, caro diário de bordo, disse haver testemunhado o acidente, e alegou que as abelhas investiram contra Márcia porque um garoto de outra série apedrejou uma colméia localizada no galho de uma das árvores do pátio da escola. Segundo ele, a colméia atingida caiu sobre Márcia justamente quando essa passava, e então os insetos, irados, picaram impiedosamente a menina. O interessante é que Carlos (?) não foi capaz de posteriormente ao ocorrido identificar o suposto aluno autor da pedrada que derrubara a caixa das abelhas. Pergunto-me se não fora ele mesmo quem atirara a pedra contra a colméia.
 O verdadeiro, o bom e velho Carlos, que estudava com Márcia desde que eles tinham oitos anos de idade, sabia de cor e salteado que nossa colega é extremamente alérgica a picadas de abelha.  E ele saberia também calcular com exatidão a que distância deveria estar da garota e da árvore com as abelhas para que pudesse atirar uma pedra certeira, fazendo com que a colméia caísse sobre Márcia e ele estivesse livre de suspeitas. Já fizéramos muito isso em nossa infância, mas era uma brincadeira menos maldosa; escondidos e munidos de pequenas pedras, derrubávamos bexigas cheias de água sobre nossos colegas e nos divertíamos ao vê-los zangados, procurando inutilmente encontrar o autor da pedrada que estourara o balão cheio de água. Aquele gesto era uma assinatura de Carlos: uma atitude esperta utilizada com um fim totalmente diverso ao de nossa infância.
Carlos, o verdadeiro, estava em algum lugar naquele corpo, talvez aprisionado em seu íntimo, já que seu modo de agir deixava claro que ele não estava mais com as mãos no guidom havia algum tempo. Aquilo que se apoderara de Carlos estava usando seu conhecimento para nos destruir, e depois simplesmente apagava seus rastros, impossibilitando qualquer tentativa de se obter provas para incriminá-lo. A questão era: por que? O que havíamos feito contra Arthur para que ele tentasse nos banir da face da Terra de tal modo?
Há pouco me dei conta que só pode ser uma espécie de dominação espiritual mesmo, pois o penteado de Carlos (?) mudou realmente, e sem os óculos, ele está realmente parecido com o garoto que vejo na foto no computador, o qual agora se ocupa, entre outras coisas, de assombrar minhas noites. O jeito de andar mudou, a voz, o olhar, tudo. E ele continua me evitando o máximo que pode.
Sabe, amigo diário de bordo, acredito que, ao longo dos anos, muitas pessoas se percam de seus amigos em virtude dessas infinitas bifurcações das estradas tortuosas da vida. Inúmeros podem ser os motivos desse distanciamento, porém, creio que se possa contar nos dedos casos iguais ao meu, quando é preciso se afastar do melhor amigo porque ele se tornou uma espécie de serial killer sobrenatural. Honestamente, jamais eu poderia imaginar que em algum momento de nossas vidas estaríamos em lados opostos do tabuleiro, nos enfrentando em um jogo mortal, cuja finalidade para ele era a mórbida diversão e, para mim e para os meus, questão de sobrevivência. Não há em minha mente uma única dúvida a respeito de que Carlos (?) seja o verdadeiro culpado por Márcia ter se machucado tanto.
Da mesma maneira, acredito piamente que na morte de Fabio e Tina tenha havido um dedo desse monstro que agora parece habitar meu melhor amigo. Como eu disse anteriormente, Fabio não era habituado a ingerir bebidas alcoólicas em tamanha quantidade como a que foi encontrada em seu sangue durante a autópsia. Finalmente decidi deixar de lado por ora esse meu ceticismo ferrenho, e pesquisei a respeito na internet. Por isso, descobri que maus espíritos podem manipular pessoas vivas, induzi-las a fazer algo que elas não queiram, podem praticamente obrigar as pessoas a realizarem atos totalmente contrários aos seus princípios. Essa informação justificaria a embriaguez inexplicável de Fabio e Tina. E quanto a Carlos (?)? Bem, dele eu não duvido mais nada. Nada mais me surpreende.
Algumas noites atrás tive um pesadelo. Sonhei que estava em meu quarto, sentado sobre meus calcanhares à maneira nipônica, em minha cama. Sobre o meu colo jazia o maldito jogo, o terrível tabuleiro Ouija, o qual eu manipulava sozinho. Lembro que me sentia angustiado, à procura de respostas. Então, subitamente, eu via cenas projetadas na parede branca do meu quarto. Imagens sem áudio, como um filme pavoroso e mudo. Era noite, e havia três jovens sentados em um animado bar, conversando e rindo alegremente. Imediatamente reconheci os rostos de Carlos, Fabio e Tina. Os dois últimos pareciam não querer consumir bebidas alcoólicas e empurravam garrafas de cerveja para longe, mas alguém insistia que bebessem. Um garoto branco, de cabelos loiros, curtos e lisos e aspecto sombrio estava de pé tenebrosamente ao lado de meus amigos e sussurrava algo em seus ouvidos. Então, movidos por uma força obscura invisível e superior, Fabio e Tina obedeciam àquela sugestão infernal, e entornavam garrafas e latas de cerveja, pouco a pouco o álcool invadindo sua corrente sanguínea e condenando-os àquela morte horrível que viriam a ter mais tarde, a Zafira preta do pai de Fabio servindo como sua caixa metálica funerária.
Mal eram interrompidas essas imagens, sem que eu fizesse pergunta alguma, o ponteiro se movia sozinho sob meu dedo e percorria com urgência o tabuleiro Ouija, indicando letras, construindo mensagens. O fantasma interagindo comigo naquele instante não era Arthur, disso eu tinha certeza: pela presença irradiada eu sabia que se tratava de Fabio ou Tina. Cheguei mesmo, no sonho, a sentir o perfume agradável dessa última.
- “C-U-I-D-A-D-O” – foi o que pude ler quando meu interlocutor invisível terminava de transmitir sua mensagem.
Então, antes que eu pudesse me dar conta, uma presença terrivelmente pesada e negativa chegava ao meu quarto. Bruscamente o tabuleiro Ouija era arrancado de minhas mãos e voava contra a janela. Juntamente com o estilhaçar do vidro, eu ouvia os gritos desesperados de Fabio e Tina, mesclados ao guincho trágico dos pneus contra o asfalto, enquanto a Zafira preta descontrolada avançava veloz e inexoravelmente contra seu letal destino: o poste cravado na esquina, cuja rija estrutura se abalou com a colisão brutal.
Voando contra a janela, o tabuleiro Ouija não estilhaçava apenas o vidro, mas também o meu pesadelo e o meu sono, trazendo de volta a minha indesejável e freqüente mais nova companheira, a insônia; a prova mais concreta da minha realidade aterradora.
Caro diário de bordo, esse pesadelo parecia um aviso, uma forma encontrada por Fabio e Tina para se comunicar comigo, me explicar como eles morreram e me prevenir do perigo iminente. Sim, amigo diário de bordo, esse ainda sou eu, Pablo Oliveira Neves falando e não, não estou mais tão certo quanto minhas crenças ou falta delas. Primeiro Fabio e Tina, e agora Márcia. Nosso grupo de nove jogadores reduzira-se para cinco pessoas, já que agora Carlos também contava como vítima de Arthur. Estávamos sendo caçados e destruídos pelo espírito que minha irresponsabilidade trouxe à tona. Na foto Arthur parecia um garotinho ingênuo, sua seriedade mesclada a um ar angelical quase convincente. Aparentemente um bom e comum menino de 17 anos. Mas apenas aparentemente.
Amigo diário de bordo, há bem pouco tempo estive lendo A Arte da Guerra, e lá o sábio general estrategista chinês Sun Tzu diz que, para se vencer qualquer batalha, é necessário antes conhecer o inimigo. E foi justamente o que procurei fazer. Mergulhei nos estudos, passei a aproveitar minhas incontáveis noites de insônia para realizar pesquisas sobre o oculto.
Quando eu soube do ocorrido com Márcia, fiz o que devia ter feito há muito: destruí o maldito jogo, na ingênua esperança de que isso de algum modo detivesse os planos malévolos de Arthur. Antes, no entanto, realizei uma rigorosa pesquisa para conhecer o procedimento correto, e só então o executei: quebrei o malfadado tabuleiro em sete partes, depois deitei água benta sobre o mesmo (isso mesmo, eu fui a uma igreja obter água benta) e só então o queimei. Desde os tempos antigos o fogo tem sido utilizado como elemento purificador.
Logo depois que transformei o jogo maldito em cinzas, foi quando comecei a enxergar o rosto maligno de Arthur onde quer que eu olhasse. Ele pareceu realmente zangado, derrubou livros e CDs da minha estante, bateu a porta e a janela do meu quarto. E passou a me assombrar. Não há uma noite que eu não veja seu rosto flutuando na escuridão do meu quarto. Não adianta ligar o interruptor, a luz não o intimida. Meu quarto, que agora é gélido, também é habitado pelo garoto morto que tem convertido minha vida em um inferno.
 Claro que o fato de eu haver destruído o tabuleiro nem de longe impediu Arthur, pois seu espírito agora encontrara Carlos, o hospedeiro perfeito. Não estando mais vinculado à tábua Ouija, ele podia vagar por aí à vontade, manipulando o corpo de meu amigo ou simplesmente se deslocando sozinho. O lado bom de ser humano, caro diário de bordo, é que nós nos acostumamos com tudo. Somos capazes de nos adequar aos mais inóspitos lugares e às mais hostis situações. Portanto, visualizar o rosto etéreo de Arthur cada vez que abro os olhos em minha cama não é mais a coisa mais apavorante do mundo.
Todavia, as maldades que o fantasma é capaz de praticar utilizando o corpo do meu melhor amigo, isso sim, me induz ao pânico. E era nessa forma que eu precisava combater o inimigo.
Fantasmas são espíritos de pessoas mortas presos ao mundo dos vivos por assuntos pendentes. Esses assuntos não resolvidos aprisionam a alma desencarnada, impedindo que ela parta para seu descanso final e eterno. Como Arthur era um fantasma, eu precisava descobrir que motivos o prendiam ainda a esse plano, e buscar entender porque ele se tornara um espírito violento e assassino. Por isso, busquei investigar o máximo que pude.
Não foi uma tarefa muito fácil, meu amigo encadernado: tive de visitar pessoalmente o Arquivo Municipal e verificar os registros de obituário, os quais eram quilos de papéis amarelados e cobertos de pó. Tinha a impressão de que aquelas pastas e fichários, vítimas do tempo, iriam se esfarelar em minhas mãos a qualquer momento. Naveguei horas pela internet, promovendo uma busca minuciosa no site da prefeitura.
Finalmente, em um jornal com data de 11 de abril de 1988, encontrei o que achava. Arthur Dias Azevedo, de dezessete anos, havia sofrido um sério acidente na Rua Sargento Emílio Vaz, em frente ao antigo supermercado da rede Pascoal (atualmente no local funciona uma gigantesca academia), que ficava situado na esquina com a Avenida Barão Theodoro Marques.
Segundo o periódico, por volta de três e quinze daquela tarde, enquanto atravessava a rua sobre a faixa de pedestres, Arthur fora atropelado por um carro em alta velocidade que passava pelo local. O motorista, jovem, inabilitado, e talvez embriagado, fugiu sem prestar socorro, antes que alguém pudesse anotar a placa.
Com o impacto, o jovem pedestre foi arremessado a muitos metros de distância e sofreu diversas fraturas, entre elas traumatismo craniano. A ponta de uma costela quebrada também lhe perfurou o pulmão esquerdo, aniquilando qualquer chance de sobrevivência. Arthur Dias Azevedo não resistiu aos vários ferimentos e faleceu na ambulância a caminho do hospital.
Segundo depoimento dos familiares, Arthur era um excelente rapaz: ótimo aluno e ímpar filho. Estava voltando para casa naquela tarde, saíra mais cedo da escola para ir cuidar da mãe que se achava em casa, passando mal. Havia uma foto em preto e branco, caro diário de bordo, e vi mais uma vez o já familiar rosto do garoto Arthur. Por incrível que pareça, na foto ele sorria; não de modo gélido e sombrio, mas um sorriso sincero, de menino feliz.
Então era isso, caro diário de bordo. Arthur sofrera uma morte violenta e injusta quando tinha apenas dezessete anos, há vinte e quatro anos. Morrera quando seguia para casa, a fim de cuidar da mãe. Era uma boa pessoa, mas a morte despertou em sua alma emoções negativas. E ele sentia, mesmo após a morte, que precisava permanecer na Terra, para de alguma forma cuidar da mãe. Era seu dever, o qual fora impedido de cumprir devido à irresponsabilidade de alguém que interrompera sua vida. Não me admira que eu o veja sempre sério, com expressão soturna.
Vejamos se entendi bem, querido amigo diário de bordo: Arthur e Carlos têm muito mais em comum do que eu podia imaginar. Ambos com dezessete anos, alunos brilhantes, pessoas exemplares. Depois de morto havia mais de vinte anos, finalmente Arthur viu, por meio da minha idéia estúpida de jogar com a Ouija, um modo de retornar à vida e finalizar sua tarefa. Isso faz todo o sentido, posto que, antes de Carlos participar do jogo, Arthur não havia se manifestado. Nenhum de nós, os outros jogadores, era interessante a seus olhos fantasmagóricos. Mas Carlos, sim.
A mesma idade. O mesmo perfil. Quando Carlos, movido por minha insistência, participou do jogo estando gripado e enfraquecido, o fantasma conseguiu se livrar do tabuleiro e se apoderou do meu melhor amigo. Por minha culpa. Apenas por minha culpa. Condenei meu melhor amigo ao fardo da maldição de possessão por espírito.
Mas qual seria a lógica disso, caro diário de bordo? Por que justo Carlos estivera na mira de Arthur? Na verdade, caro amigo encadernado, espíritos não seguem uma lógica semelhante à nossa. Não sei ao certo se eles seguem sequer alguma lógica. Estão mortos, agem de acordo apenas com aquilo que lhes interessa. Arthur sentia raiva porque sua morte súbita e injusta o separara de sua família, de sua mãe. Alguém roubara sua vida.
Ele sabia que Carlos era inocente, e que se apossar de sua vida daquela forma era cruel, mas não se importava com isso. Alguém lhe roubara a vida injustamente, e agora ele fazia o mesmo; roubava uma vida, achava uma forma alternativa de recuperar tudo o que havia perdido: um corpo de carne e osso, família, amigos, trabalho, estudo... E o único obstáculo era o nosso ingênuo grupo de jogadores do tabuleiro Ouija. Arthur sabia que apenas nós podíamos fazer idéia do que se passava e acabar atrapalhando seus planos. Por isso agora ele viria sempre em nosso encalço.
E se eu havia jogado Carlos nessa roubada, cabia a mim tirá-lo dela. Como eu faço para libertá-lo das garras mortais de um espírito furioso? Procuro um médium? Uma necromante? Um exorcista?
Assaltado por essas divagações, liguei para Julia e marquei para que nos encontrássemos. Se há algum lado bom, por menor que seja, em toda essa história, é toda essa confusão haver realmente aproximado Julia de mim. Temos nos encontrado com freqüência. Não chamaria de namoro o que vivemos, mas passamos por um processo de conhecimento, o que me deixa bastante contente. Enfim uma alegria, ainda que tímida, nesse profundo mar de tristeza e escuridão em que me acho mergulhado, amigo diário de bordo.
Encontrei minha musa inspiradora em uma das mais belas praças de nossa cidade e fomos andando até a sorveteria Ice Crime. No caminho, expliquei a ela todas as minhas suspeitas e as conclusões que obtive embasado nos apurados estudos e pesquisas que vinha fazendo ultimamente. Ela me ouviu atentamente, sem me interromper uma vez sequer. Depois, com sua voz calma, disse que também nutria suspeitas parecidas. O restante do grupo, embora assustado, não sabia com certeza o que se passava. Eles ignoravam o perigo tremendo em que se achavam. Caro diário de bordo, isso me lembra uma música que gosto bastante, dos Paralamas do Sucesso, chamada O Calibre:
- “Eu vivo sem saber até quando ainda estou vivo
Sem saber o calibre do perigo
Eu não sei d'aonde vem o tiro
Por que caminhos você vai e volta?
Aonde você nunca vai?
Em que esquinas você nunca pára?
A que horas você nunca sai?
Há quanto tempo você sente medo?
Quantos amigos você já perdeu?”
Naquele momento, nossa situação era exatamente essa. Ainda bem que eu tinha Julia comigo. E somente ela. Meus pais estavam muito preocupados comigo, tentavam conversar, saber o que estava havendo, mas eu não falava nada, nunca. Não podia falar a verdade, eles não acreditariam. Além do que, se eles soubessem de algo, podia ser que Arthur viesse caçá-los também. Estar ciente do segredo do garoto morto era morte certa para qualquer um, talvez algo até pior.
Tendo Julia como minha aliada, elaborei um ousado plano, caro diário de bordo. Para tentar remover aquilo de Carlos, eu precisava primeiro ter certeza de que não era mais ele mesmo que estava no comando. Expliquei a Julia o que tinha em mente e ela concordou. Então começamos a botar a mão na massa. Havia dias que Carlos (?) estava pesquisando sobre a família Dias Azevedo, e não quis nos contar o motivo. Imaginei que Arthur estivesse procurando dados sobre sua família, e instruí a Julia que ligasse para ele. E assim ela fez.
Ela ligou para Carlos (?) e disse que seu pai conhecia um pessoal da família Dias Azevedo que morava no norte da cidade. Se Carlos (?) quisesse, no dia seguinte podíamos ir lá para mostrar a ele onde era a casa do pessoal, já que ultimamente o mesmo andava tão interessado sobre essa família. Inacreditavelmente ele topou, e no dia seguinte, pela tarde, passamos em sua casa
Carlos (?) nos recebeu de modo surpreendentemente amável, até sorriu para mim, jovial. Assim que saiu, fechando o portão atrás de si, ele quis saber como iríamos.
- Vamos a pé, oras! – disse Julia, sorrindo – A casa do pessoal que te falei não fica longe daqui, e a tarde está muito agradável. Podemos ir caminhando e conversando. Em dois tempos estaremos lá.
Ele torceu o nariz um pouco, mas acabou concordando. Muito suspeito, caro diário de bordo. Carlos adorava caminhar. Seguimos conversando e ele nos acompanhou sem suspeitar de nada. Falava animadamente com Julia e comigo, por alguns instantes parecendo ser o nosso velho Carlos, nosso grande amigo desde os tempos do jardim de infância. Disfarçadamente consultei as horas: passavam dez minutos das três da tarde. Estávamos chegando ao local desejado bem em tempo. Segundo o jornal do Arquivo Municipal, Arthur havia sido atropelado aproximadamente às três e quinze da tarde.
Dobramos a esquina e começamos a caminhar pela Rua Sargento Emílio Vaz. Desde que Arthur faleceu, muita coisa mudou na arquitetura dos prédios, nas lojas. Mas ainda é a mesma rua. Carlos (?) só percebeu isso muito tarde. Ao chegarmos à esquina onde a Sargento Emílio se encontrava com a Avenida Barão Theodoro, Carlos (?) estacou de repente. Seus olhos se arregalaram e ele começou a estudar o local à beira do pânico. Olhou para a fachada da academia situada na esquina, onde antigamente funcionava o supermercado da rede Pascoal.
Na esquina onde Arthur fora atropelado eles haviam instalado um semáforo havia coisa de uns dez anos ou mais, porque o índice de acidentes ali era realmente alto. Além do garoto morto que nos assombrava, posteriormente muitas outras pessoas foram vitimadas naquele local por acidentes de trânsito.  Eram pontualmente quinze passados das três quando Julia e eu pisamos na faixa de pedestres, fazendo menção de cruzar a rua enquanto o semáforo estava favorável para nós. Olhei para trás e vi Carlos (?) congelado, preso no lugar como se alguém o tivesse cimentado ali.
Estava doentiamente pálido, suando frio, tremendo dos pés à cabeça. Parecia aterrorizado. Agora eu podia ver com impressionante nitidez o semblante de Arthur no rosto que havia pertencido a Carlos. Em seus olhos vi medo. E vi ódio também. Um fenômeno estava ocorrendo ali: o morto estava usando o cérebro de meu melhor amigo para reviver memórias dolorosas, que ele desejava ardentemente esquecer. Lembranças de quando morreu tão jovem e cheio de vida, arrancado do meio dos vivos, daqueles que o amavam e que se preocupavam com ele.
O som do trânsito intenso o atingia como uma ventania que o empurrasse para trás, fazendo-o recuar lenta e dolorosamente. Um carro em alta velocidade freou bruscamente para respeitar um sinal vermelho nas proximidades e o guincho dos pneus pareceu ferir Carlos (?), que se afastou totalmente da rua, encostou-se à vitrine de uma loja e foi encolhendo como uma criança assustada. Naquele momento tive a confirmação necessária de que aquele ali não era o meu melhor amigo.
Com o pé direito já na faixa de pedestres, olhei para o rapaz e, em alto e bom som, com a voz carregada de ironia, indaguei:
- Ei, Arthur, você não vem conosco?
Em resposta, o rapaz quase agachado olhou para mim com raiva, se ergueu e saiu correndo, fazendo o caminho de volta para casa de Carlos. Olhei significativamente para Julia e meneamos as nossas cabeças, sérios. Arthur estava apavorado por ter ido ao local de sua morte. Desse modo, se traiu, confirmando nossas suspeitas de que ele controlava meu amigo. Agora sim eu podia confrontá-lo sem medo de errar. Precisava descobrir um modo de arrancá-lo de Carlos, pois isso o enfraqueceria. Depois dessa estranha situação, Julia eu voltamos a caminhar, eu a deixei em casa e segui para a minha.
E cá estou eu agora, querido diário de bordo. Aquele dia, Arthur ficou irado, e na mesma noite, assim que Carlos dormiu, ele veio me fazer uma de suas fúnebres visitinhas. Derrubou coisas, ligou aparelhos eletrônicos, acendeu e apagou luzes, esfriou o ambiente de um modo quase insuportável. Estava furioso por eu o ter definitivamente desmascarado e foi lá se vingar. E é o que ele tem feito desde então. Toda vez que Carlos fecha os olhos, Arthur surge em meu quarto para me incomodar. Agora mesmo, enquanto escrevo, ele está tamborilando no meu computador. Algumas vezes ele liga o rádio no último volume. Não me deixa mais dormir. Por isso, escrevo. Arthur está tentando me enlouquecer, meu amigo encadernado. E está quase conseguindo realizar seu intento. Provavelmente qualquer dia desses vou sucumbir diante de seus feitos maléficos, punido dessa forma pelo próprio mal que acabei despertando.
Enquanto isso não acontece, caro amigo diário de bordo, meu fiel escudeiro, estou indo deitar e tentar dormir. Talvez consiga se me mantiver ouvindo música pelos fones do MP3, pois isso abafa um pouco a barulheira causada por meu desagradável visitante que é, na verdade, uma espécie de torturador invisível.
Despeço-me desse modo, caro diário de bordo. Nem faço idéia de como consegui escrever tanto com todo esse barulho, e todo esse cansaço pesando em meu corpo. Em breve estarei de volta, buscando o meu precioso bálsamo mental em suas páginas. Isto é, se essa falta de repouso não me matar antes.

Até breve!

Danilo Alex da Silva




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