16 de maio de 2012 –
01:02 h
Caríssimo diário de
bordo, olá mais uma vez! Para variar, não consegui dormir, então vim buscar
conforto em suas páginas. Embora meu corpo esteja exausto, minha mente se
recusa a descansar, meu inconsciente de alguma forma tentando avisar que não
posso dormir; preciso, mas não posso. Não é seguro fechar os olhos, não é bom
permitir que a mente divague, percorrendo os obscuros caminhos de um sono
reparador. Me sinto dentro de um filme de terror, sabe caro diário de bordo?
Como se de algum modo inexplicável eu houvesse sido sugado para dentro de A
Hora do Pesadelo, e fosse capaz de ouvir garras afiadas arranhando a
parede do meu quarto, enquanto crianças com os olhos arrancados, de mãos dadas
numa ciranda horrenda ao meu redor, cantam para mim em uníssono, uma canção
sinistra e monótona:
- “Um, dois, Freddy vem
te pegar... três, quatro, melhor a porta trancar...”
Quem me dera meu
perseguidor fosse esse, amigo diário de bordo. Como sugere a fúnebre canção,
talvez Freddy Krueger seja impedido pela porta. Meu adversário as atravessa,
rindo divertido enquanto o faz. Enquanto o tempo corre, o destino zombeteiro,
parece cantar para mim:
- “Um, dois, Arthur vem
te pegar...”
Freddy Krueger tinha
fraquezas. Se Arthur possui alguma, eu ainda não descobri. Por isso, meus amigos
vem pagando o preço por minha irresponsabilidade. Sabe, caro diário de bordo,
desde o acidente mortal envolvendo Fabio e Tina, ando totalmente aéreo,
enfrentando certas dificuldades para concatenar as idéias e registrá-las em
suas páginas. Realmente complicado organizar os pensamentos para relatá-los
aqui com a coerência e coesão necessárias, quando minha mente parece arrebatada
de encontro aos acontecimentos avassaladores dos quais todo dia temos uma
notícia.
Há poucos dias Márcia,
uma das garotas do nosso grupo de jogadores, sofreu um grave acidente na
escola. Márcia é patologicamente alérgica a abelhas, alergia essa que traz do
berço. Acontece que, na escola, a garota foi atacada por um enxame raivoso
desses insetos mortais, os quais podem ser criaturas extremamente pacíficas se
não forem perturbadas. E o fato é que Márcia não faria mal sequer a uma
formiga. Estranhamente Carlos, embora eu não tenha mais tanta certeza se é ele
quem está atrás do volante agora, estava por perto na ocasião, foi ele quem
chamou ajuda para a nossa colega. Márcia foi ferroada na garganta e por muito
pouco escapou de morrer asfixiada. Encontra-se agora em estado grave, numa
Unidade de Tratamento Intensivo em um dos hospitais de nossa cidade.
Carlos (?), como o
tratarei doravante, caro diário de bordo, disse haver testemunhado o acidente,
e alegou que as abelhas investiram contra Márcia porque um garoto de outra
série apedrejou uma colméia localizada no galho de uma das árvores do pátio da
escola. Segundo ele, a colméia atingida caiu sobre Márcia justamente quando
essa passava, e então os insetos, irados, picaram impiedosamente a menina. O
interessante é que Carlos (?) não foi capaz de posteriormente ao ocorrido
identificar o suposto aluno autor da pedrada que derrubara a caixa das abelhas.
Pergunto-me se não fora ele mesmo quem atirara a pedra contra a colméia.
O verdadeiro, o
bom e velho Carlos, que estudava com Márcia desde que eles tinham oitos anos de
idade, sabia de cor e salteado que nossa colega é extremamente alérgica a
picadas de abelha. E ele saberia também calcular com exatidão a que
distância deveria estar da garota e da árvore com as abelhas para que pudesse
atirar uma pedra certeira, fazendo com que a colméia caísse sobre Márcia e ele
estivesse livre de suspeitas. Já fizéramos muito isso em nossa infância, mas
era uma brincadeira menos maldosa; escondidos e munidos de pequenas pedras,
derrubávamos bexigas cheias de água sobre nossos colegas e nos divertíamos ao
vê-los zangados, procurando inutilmente encontrar o autor da pedrada que
estourara o balão cheio de água. Aquele gesto era uma assinatura de Carlos: uma
atitude esperta utilizada com um fim totalmente diverso ao de nossa infância.
Carlos, o verdadeiro,
estava em algum lugar naquele corpo, talvez aprisionado em seu íntimo, já que
seu modo de agir deixava claro que ele não estava mais com as mãos no guidom
havia algum tempo. Aquilo que se apoderara de Carlos estava usando seu
conhecimento para nos destruir, e depois simplesmente apagava seus rastros,
impossibilitando qualquer tentativa de se obter provas para incriminá-lo. A
questão era: por que? O que havíamos feito contra Arthur para que ele tentasse
nos banir da face da Terra de tal modo?
Há pouco me dei conta
que só pode ser uma espécie de dominação espiritual mesmo, pois o penteado de
Carlos (?) mudou realmente, e sem os óculos, ele está realmente parecido com o
garoto que vejo na foto no computador, o qual agora se ocupa, entre outras
coisas, de assombrar minhas noites. O jeito de andar mudou, a voz, o olhar,
tudo. E ele continua me evitando o máximo que pode.
Sabe, amigo diário de
bordo, acredito que, ao longo dos anos, muitas pessoas se percam de seus amigos
em virtude dessas infinitas bifurcações das estradas tortuosas da vida.
Inúmeros podem ser os motivos desse distanciamento, porém, creio que se possa
contar nos dedos casos iguais ao meu, quando é preciso se afastar do melhor
amigo porque ele se tornou uma espécie de serial killer sobrenatural.
Honestamente, jamais eu poderia imaginar que em algum momento de nossas vidas
estaríamos em lados opostos do tabuleiro, nos enfrentando em um jogo mortal,
cuja finalidade para ele era a mórbida diversão e, para mim e para os meus,
questão de sobrevivência. Não há em minha mente uma única dúvida a respeito de
que Carlos (?) seja o verdadeiro culpado por Márcia ter se machucado tanto.
Da mesma maneira,
acredito piamente que na morte de Fabio e Tina tenha havido um dedo desse
monstro que agora parece habitar meu melhor amigo. Como eu disse anteriormente,
Fabio não era habituado a ingerir bebidas alcoólicas em tamanha quantidade como
a que foi encontrada em seu sangue durante a autópsia. Finalmente decidi deixar
de lado por ora esse meu ceticismo ferrenho, e pesquisei a respeito na
internet. Por isso, descobri que maus espíritos podem manipular pessoas vivas,
induzi-las a fazer algo que elas não queiram, podem praticamente obrigar as
pessoas a realizarem atos totalmente contrários aos seus princípios. Essa
informação justificaria a embriaguez inexplicável de Fabio e Tina. E quanto a
Carlos (?)? Bem, dele eu não duvido mais nada. Nada mais me surpreende.
Algumas noites atrás
tive um pesadelo. Sonhei que estava em meu quarto, sentado sobre meus
calcanhares à maneira nipônica, em minha cama. Sobre o meu colo jazia o maldito
jogo, o terrível tabuleiro Ouija, o qual eu manipulava sozinho. Lembro que me
sentia angustiado, à procura de respostas. Então, subitamente, eu via cenas
projetadas na parede branca do meu quarto. Imagens sem áudio, como um filme
pavoroso e mudo. Era noite, e havia três jovens sentados em um animado bar,
conversando e rindo alegremente. Imediatamente reconheci os rostos de Carlos,
Fabio e Tina. Os dois últimos pareciam não querer consumir bebidas alcoólicas e
empurravam garrafas de cerveja para longe, mas alguém insistia que bebessem. Um
garoto branco, de cabelos loiros, curtos e lisos e aspecto sombrio estava de pé
tenebrosamente ao lado de meus amigos e sussurrava algo em seus ouvidos. Então,
movidos por uma força obscura invisível e superior, Fabio e Tina obedeciam
àquela sugestão infernal, e entornavam garrafas e latas de cerveja, pouco a
pouco o álcool invadindo sua corrente sanguínea e condenando-os àquela morte
horrível que viriam a ter mais tarde, a Zafira preta do pai de Fabio servindo
como sua caixa metálica funerária.
Mal eram interrompidas
essas imagens, sem que eu fizesse pergunta alguma, o ponteiro se movia sozinho
sob meu dedo e percorria com urgência o tabuleiro Ouija, indicando letras,
construindo mensagens. O fantasma interagindo comigo naquele instante não era
Arthur, disso eu tinha certeza: pela presença irradiada eu sabia que se tratava
de Fabio ou Tina. Cheguei mesmo, no sonho, a sentir o perfume agradável dessa
última.
- “C-U-I-D-A-D-O” – foi
o que pude ler quando meu interlocutor invisível terminava de transmitir sua
mensagem.
Então, antes que eu
pudesse me dar conta, uma presença terrivelmente pesada e negativa chegava ao
meu quarto. Bruscamente o tabuleiro Ouija era arrancado de minhas mãos e voava
contra a janela. Juntamente com o estilhaçar do vidro, eu ouvia os gritos
desesperados de Fabio e Tina, mesclados ao guincho trágico dos pneus contra o
asfalto, enquanto a Zafira preta descontrolada avançava veloz e inexoravelmente
contra seu letal destino: o poste cravado na esquina, cuja rija estrutura se
abalou com a colisão brutal.
Voando contra a janela,
o tabuleiro Ouija não estilhaçava apenas o vidro, mas também o meu pesadelo e o
meu sono, trazendo de volta a minha indesejável e freqüente mais nova
companheira, a insônia; a prova mais concreta da minha realidade aterradora.
Caro diário de bordo,
esse pesadelo parecia um aviso, uma forma encontrada por Fabio e Tina para se
comunicar comigo, me explicar como eles morreram e me prevenir do perigo
iminente. Sim, amigo diário de bordo, esse ainda sou eu, Pablo Oliveira Neves
falando e não, não estou mais tão certo quanto minhas crenças ou falta delas.
Primeiro Fabio e Tina, e agora Márcia. Nosso grupo de nove jogadores
reduzira-se para cinco pessoas, já que agora Carlos também contava como vítima
de Arthur. Estávamos sendo caçados e destruídos pelo espírito que minha
irresponsabilidade trouxe à tona. Na foto Arthur parecia um garotinho ingênuo,
sua seriedade mesclada a um ar angelical quase convincente. Aparentemente um
bom e comum menino de 17 anos. Mas apenas aparentemente.
Amigo diário de bordo,
há bem pouco tempo estive lendo A Arte da Guerra, e lá o sábio general
estrategista chinês Sun Tzu diz que, para se vencer qualquer batalha, é
necessário antes conhecer o inimigo. E foi justamente o que procurei fazer.
Mergulhei nos estudos, passei a aproveitar minhas incontáveis noites de insônia
para realizar pesquisas sobre o oculto.
Quando eu soube do
ocorrido com Márcia, fiz o que devia ter feito há muito: destruí o maldito
jogo, na ingênua esperança de que isso de algum modo detivesse os planos
malévolos de Arthur. Antes, no entanto, realizei uma rigorosa pesquisa para
conhecer o procedimento correto, e só então o executei: quebrei o malfadado
tabuleiro em sete partes, depois deitei água benta sobre o mesmo (isso mesmo,
eu fui a uma igreja obter água benta) e só então o queimei. Desde os tempos
antigos o fogo tem sido utilizado como elemento purificador.
Logo depois que
transformei o jogo maldito em cinzas, foi quando comecei a enxergar o rosto maligno
de Arthur onde quer que eu olhasse. Ele pareceu realmente zangado, derrubou
livros e CDs da minha estante, bateu a porta e a janela do meu quarto. E passou
a me assombrar. Não há uma noite que eu não veja seu rosto flutuando na
escuridão do meu quarto. Não adianta ligar o interruptor, a luz não o intimida.
Meu quarto, que agora é gélido, também é habitado pelo garoto morto que tem
convertido minha vida em um inferno.
Claro que o fato
de eu haver destruído o tabuleiro nem de longe impediu Arthur, pois seu
espírito agora encontrara Carlos, o hospedeiro perfeito. Não estando mais
vinculado à tábua Ouija, ele podia vagar por aí à vontade, manipulando o corpo
de meu amigo ou simplesmente se deslocando sozinho. O lado bom de ser humano,
caro diário de bordo, é que nós nos acostumamos com tudo. Somos capazes de nos
adequar aos mais inóspitos lugares e às mais hostis situações. Portanto,
visualizar o rosto etéreo de Arthur cada vez que abro os olhos em minha cama
não é mais a coisa mais apavorante do mundo.
Todavia, as maldades
que o fantasma é capaz de praticar utilizando o corpo do meu melhor amigo, isso
sim, me induz ao pânico. E era nessa forma que eu precisava combater o inimigo.
Fantasmas são espíritos
de pessoas mortas presos ao mundo dos vivos por assuntos pendentes. Esses
assuntos não resolvidos aprisionam a alma desencarnada, impedindo que ela parta
para seu descanso final e eterno. Como Arthur era um fantasma, eu precisava descobrir
que motivos o prendiam ainda a esse plano, e buscar entender porque ele se
tornara um espírito violento e assassino. Por isso, busquei investigar o máximo
que pude.
Não foi uma tarefa
muito fácil, meu amigo encadernado: tive de visitar pessoalmente o Arquivo
Municipal e verificar os registros de obituário, os quais eram quilos de papéis
amarelados e cobertos de pó. Tinha a impressão de que aquelas pastas e
fichários, vítimas do tempo, iriam se esfarelar em minhas mãos a qualquer
momento. Naveguei horas pela internet, promovendo uma busca minuciosa no site
da prefeitura.
Finalmente, em um
jornal com data de 11 de abril de 1988, encontrei o que achava. Arthur Dias
Azevedo, de dezessete anos, havia sofrido um sério acidente na Rua Sargento
Emílio Vaz, em frente ao antigo supermercado da rede Pascoal (atualmente no
local funciona uma gigantesca academia), que ficava situado na esquina com a
Avenida Barão Theodoro Marques.
Segundo o periódico,
por volta de três e quinze daquela tarde, enquanto atravessava a rua sobre a
faixa de pedestres, Arthur fora atropelado por um carro em alta velocidade que
passava pelo local. O motorista, jovem, inabilitado, e talvez embriagado, fugiu
sem prestar socorro, antes que alguém pudesse anotar a placa.
Com o impacto, o jovem
pedestre foi arremessado a muitos metros de distância e sofreu diversas
fraturas, entre elas traumatismo craniano. A ponta de uma costela quebrada
também lhe perfurou o pulmão esquerdo, aniquilando qualquer chance de
sobrevivência. Arthur Dias Azevedo não resistiu aos vários ferimentos e faleceu
na ambulância a caminho do hospital.
Segundo depoimento dos
familiares, Arthur era um excelente rapaz: ótimo aluno e ímpar filho. Estava
voltando para casa naquela tarde, saíra mais cedo da escola para ir cuidar da
mãe que se achava em casa, passando mal. Havia uma foto em preto e branco, caro
diário de bordo, e vi mais uma vez o já familiar rosto do garoto Arthur. Por
incrível que pareça, na foto ele sorria; não de modo gélido e sombrio, mas um
sorriso sincero, de menino feliz.
Então era isso, caro
diário de bordo. Arthur sofrera uma morte violenta e injusta quando tinha
apenas dezessete anos, há vinte e quatro anos. Morrera quando seguia para casa,
a fim de cuidar da mãe. Era uma boa pessoa, mas a morte despertou em sua alma
emoções negativas. E ele sentia, mesmo após a morte, que precisava permanecer
na Terra, para de alguma forma cuidar da mãe. Era seu dever, o qual fora
impedido de cumprir devido à irresponsabilidade de alguém que interrompera sua
vida. Não me admira que eu o veja sempre sério, com expressão soturna.
Vejamos se entendi bem,
querido amigo diário de bordo: Arthur e Carlos têm muito mais em comum do que
eu podia imaginar. Ambos com dezessete anos, alunos brilhantes, pessoas
exemplares. Depois de morto havia mais de vinte anos, finalmente Arthur viu,
por meio da minha idéia estúpida de jogar com a Ouija, um modo de retornar à
vida e finalizar sua tarefa. Isso faz todo o sentido, posto que, antes de
Carlos participar do jogo, Arthur não havia se manifestado. Nenhum de nós, os
outros jogadores, era interessante a seus olhos fantasmagóricos. Mas Carlos,
sim.
A mesma idade. O mesmo
perfil. Quando Carlos, movido por minha insistência, participou do jogo estando
gripado e enfraquecido, o fantasma conseguiu se livrar do tabuleiro e se
apoderou do meu melhor amigo. Por minha culpa. Apenas por minha culpa. Condenei
meu melhor amigo ao fardo da maldição de possessão por espírito.
Mas qual seria a lógica
disso, caro diário de bordo? Por que justo Carlos estivera na mira de Arthur?
Na verdade, caro amigo encadernado, espíritos não seguem uma lógica semelhante
à nossa. Não sei ao certo se eles seguem sequer alguma lógica. Estão mortos,
agem de acordo apenas com aquilo que lhes interessa. Arthur sentia raiva porque
sua morte súbita e injusta o separara de sua família, de sua mãe. Alguém
roubara sua vida.
Ele sabia que Carlos
era inocente, e que se apossar de sua vida daquela forma era cruel, mas não se
importava com isso. Alguém lhe roubara a vida injustamente, e agora ele fazia o
mesmo; roubava uma vida, achava uma forma alternativa de recuperar tudo o que
havia perdido: um corpo de carne e osso, família, amigos, trabalho, estudo... E
o único obstáculo era o nosso ingênuo grupo de jogadores do tabuleiro Ouija.
Arthur sabia que apenas nós podíamos fazer idéia do que se passava e acabar
atrapalhando seus planos. Por isso agora ele viria sempre em nosso encalço.
E se eu havia jogado
Carlos nessa roubada, cabia a mim tirá-lo dela. Como eu faço para libertá-lo
das garras mortais de um espírito furioso? Procuro um médium? Uma necromante?
Um exorcista?
Assaltado por essas
divagações, liguei para Julia e marquei para que nos encontrássemos. Se há
algum lado bom, por menor que seja, em toda essa história, é toda essa confusão
haver realmente aproximado Julia de mim. Temos nos encontrado com freqüência.
Não chamaria de namoro o que vivemos, mas passamos por um processo de
conhecimento, o que me deixa bastante contente. Enfim uma alegria, ainda que
tímida, nesse profundo mar de tristeza e escuridão em que me acho mergulhado,
amigo diário de bordo.
Encontrei minha musa
inspiradora em uma das mais belas praças de nossa cidade e fomos andando até a
sorveteria Ice Crime. No caminho, expliquei a ela todas as minhas suspeitas e
as conclusões que obtive embasado nos apurados estudos e pesquisas que vinha
fazendo ultimamente. Ela me ouviu atentamente, sem me interromper uma vez
sequer. Depois, com sua voz calma, disse que também nutria suspeitas parecidas.
O restante do grupo, embora assustado, não sabia com certeza o que se
passava. Eles ignoravam o perigo tremendo em que se achavam. Caro diário de
bordo, isso me lembra uma música que gosto bastante, dos Paralamas do Sucesso,
chamada O Calibre:
- “Eu vivo sem saber até
quando ainda estou vivo
Sem saber o calibre do perigo
Eu não sei d'aonde vem o tiro
Sem saber o calibre do perigo
Eu não sei d'aonde vem o tiro
Por que caminhos você vai e volta?
Aonde você nunca vai?
Em que esquinas você nunca pára?
A que horas você nunca sai?
Há quanto tempo você sente medo?
Quantos amigos você já perdeu?”
Aonde você nunca vai?
Em que esquinas você nunca pára?
A que horas você nunca sai?
Há quanto tempo você sente medo?
Quantos amigos você já perdeu?”
Naquele momento, nossa
situação era exatamente essa. Ainda bem que eu tinha Julia comigo. E somente
ela. Meus pais estavam muito preocupados comigo, tentavam conversar, saber o
que estava havendo, mas eu não falava nada, nunca. Não podia falar a verdade,
eles não acreditariam. Além do que, se eles soubessem de algo, podia ser que
Arthur viesse caçá-los também. Estar ciente do segredo do garoto morto era
morte certa para qualquer um, talvez algo até pior.
Tendo Julia como minha
aliada, elaborei um ousado plano, caro diário de bordo. Para tentar remover
aquilo de Carlos, eu precisava primeiro ter certeza de que não era mais ele
mesmo que estava no comando. Expliquei a Julia o que tinha em mente e ela
concordou. Então começamos a botar a mão na massa. Havia dias que Carlos (?)
estava pesquisando sobre a família Dias Azevedo, e não quis nos contar o
motivo. Imaginei que Arthur estivesse procurando dados sobre sua família, e
instruí a Julia que ligasse para ele. E assim ela fez.
Ela ligou para Carlos
(?) e disse que seu pai conhecia um pessoal da família Dias Azevedo que
morava no norte da cidade. Se Carlos (?) quisesse, no dia seguinte podíamos ir lá para mostrar a ele onde era a casa do pessoal, já que ultimamente o mesmo andava tão
interessado sobre essa família. Inacreditavelmente ele topou, e no dia
seguinte, pela tarde, passamos em sua casa
Carlos (?) nos recebeu
de modo surpreendentemente amável, até sorriu para mim, jovial. Assim que saiu,
fechando o portão atrás de si, ele quis saber como iríamos.
- Vamos a pé, oras! –
disse Julia, sorrindo – A casa do pessoal que te falei não fica longe daqui, e
a tarde está muito agradável. Podemos ir caminhando e conversando. Em dois
tempos estaremos lá.
Ele torceu o nariz um
pouco, mas acabou concordando. Muito suspeito, caro diário de bordo. Carlos
adorava caminhar. Seguimos conversando e ele nos acompanhou sem suspeitar de
nada. Falava animadamente com Julia e comigo, por alguns instantes parecendo
ser o nosso velho Carlos, nosso grande amigo desde os tempos do jardim de
infância. Disfarçadamente consultei as horas: passavam dez minutos das três da
tarde. Estávamos chegando ao local desejado bem em tempo. Segundo o jornal do
Arquivo Municipal, Arthur havia sido atropelado aproximadamente às três e
quinze da tarde.
Dobramos a esquina e
começamos a caminhar pela Rua Sargento Emílio Vaz. Desde que Arthur faleceu,
muita coisa mudou na arquitetura dos prédios, nas lojas. Mas ainda é a mesma
rua. Carlos (?) só percebeu isso muito tarde. Ao chegarmos à esquina onde a Sargento
Emílio se encontrava com a Avenida Barão Theodoro, Carlos (?) estacou de
repente. Seus olhos se arregalaram e ele começou a estudar o local à beira do
pânico. Olhou para a fachada da academia situada na esquina, onde antigamente
funcionava o supermercado da rede Pascoal.
Na esquina onde Arthur
fora atropelado eles haviam instalado um semáforo havia coisa de uns dez anos
ou mais, porque o índice de acidentes ali era realmente alto. Além do garoto
morto que nos assombrava, posteriormente muitas outras pessoas foram vitimadas
naquele local por acidentes de trânsito. Eram pontualmente quinze
passados das três quando Julia e eu pisamos na faixa de pedestres, fazendo
menção de cruzar a rua enquanto o semáforo estava favorável para nós. Olhei
para trás e vi Carlos (?) congelado, preso no lugar como se alguém o tivesse
cimentado ali.
Estava doentiamente
pálido, suando frio, tremendo dos pés à cabeça. Parecia aterrorizado. Agora eu
podia ver com impressionante nitidez o semblante de Arthur no rosto que havia pertencido
a Carlos. Em seus olhos vi medo. E vi ódio também. Um fenômeno estava ocorrendo
ali: o morto estava usando o cérebro de meu melhor amigo para reviver memórias
dolorosas, que ele desejava ardentemente esquecer. Lembranças de quando morreu
tão jovem e cheio de vida, arrancado do meio dos vivos, daqueles que o amavam e
que se preocupavam com ele.
O som do trânsito
intenso o atingia como uma ventania que o empurrasse para trás, fazendo-o
recuar lenta e dolorosamente. Um carro em alta velocidade freou bruscamente
para respeitar um sinal vermelho nas proximidades e o guincho dos pneus pareceu
ferir Carlos (?), que se afastou totalmente da rua, encostou-se à vitrine de
uma loja e foi encolhendo como uma criança assustada. Naquele momento tive a
confirmação necessária de que aquele ali não era o meu melhor amigo.
Com o pé direito já na
faixa de pedestres, olhei para o rapaz e, em alto e bom som, com a voz
carregada de ironia, indaguei:
- Ei, Arthur, você não
vem conosco?
Em resposta, o rapaz
quase agachado olhou para mim com raiva, se ergueu e saiu correndo, fazendo o
caminho de volta para casa de Carlos. Olhei significativamente para Julia e
meneamos as nossas cabeças, sérios. Arthur estava apavorado por ter ido ao
local de sua morte. Desse modo, se traiu, confirmando nossas suspeitas de que
ele controlava meu amigo. Agora sim eu podia confrontá-lo sem medo de errar.
Precisava descobrir um modo de arrancá-lo de Carlos, pois isso o enfraqueceria.
Depois dessa estranha situação, Julia eu voltamos a caminhar, eu a deixei em
casa e segui para a minha.
E cá estou eu agora,
querido diário de bordo. Aquele dia, Arthur ficou irado, e na mesma noite,
assim que Carlos dormiu, ele veio me fazer uma de suas fúnebres visitinhas.
Derrubou coisas, ligou aparelhos eletrônicos, acendeu e apagou luzes, esfriou o
ambiente de um modo quase insuportável. Estava furioso por eu o ter
definitivamente desmascarado e foi lá se vingar. E é o que ele tem feito desde
então. Toda vez que Carlos fecha os olhos, Arthur surge em meu quarto para me
incomodar. Agora mesmo, enquanto escrevo, ele está tamborilando no meu
computador. Algumas vezes ele liga o rádio no último volume. Não me deixa mais
dormir. Por isso, escrevo. Arthur está tentando me enlouquecer, meu amigo
encadernado. E está quase conseguindo realizar seu intento. Provavelmente
qualquer dia desses vou sucumbir diante de seus feitos maléficos, punido dessa
forma pelo próprio mal que acabei despertando.
Enquanto isso não
acontece, caro amigo diário de bordo, meu fiel escudeiro, estou indo deitar e
tentar dormir. Talvez consiga se me mantiver ouvindo música pelos fones do MP3,
pois isso abafa um pouco a barulheira causada por meu desagradável visitante
que é, na verdade, uma espécie de torturador invisível.
Despeço-me desse modo,
caro diário de bordo. Nem faço idéia de como consegui escrever tanto com todo
esse barulho, e todo esse cansaço pesando em meu corpo. Em breve estarei de
volta, buscando o meu precioso bálsamo mental em suas páginas. Isto é, se essa
falta de repouso não me matar antes.
Até breve!
Danilo Alex da Silva
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