sexta-feira, 29 de junho de 2012

A Arca de Pandora - Parte III



Obedecendo ao capitão, os corsários se prepararam para arremessar os ganchos. Todavia, algo realmente surpreendente ocorreu, adiando a abordagem por mais alguns minutos. No último instante, o Pandora guinou vivamente. Os marujos espanhóis demonstravam sua extrema habilidade ao manobrar os mastros. O galeão, antes aparentemente vulnerável, rapidamente girava sobre si, em um ângulo de 180 graus. Desse modo, em pouco tempo apresentava seus quarenta canhões de estibordo, ou seja, do lado direito, ao inimigo, prontos para disparar.
O comandante do Pandora ordenara essa manobra pois percebia que, se virasse o navio, podia disparar com as peças de artilharia desse lado, enquanto as do outro estivessem sendo rapidamente recarregadas.  Economizaria tempo e apanharia o adversário desprevenido. E tudo aconteceu de acordo com o planejado. Percebendo que a artilharia inimiga os esfacelaria, os barcos ingleses precisaram se separar para desviar-se às pressas da fuzilaria, abrindo mão do assalto por mais algum tempo.
O Ghost Bride e o Red Diamond foram capazes de escapar com agilidade do repentino contra ataque hispânico; para o Lady Storm, porém, aquilo foi o fim da batalha, o último prego no caixão. O canhonear infernal vindo do galeão varreu a água numa linha de destruição que apanhou em cheio o navio pirata inglês, o qual, navegando desfalcado pela perda de alguns mastros, se achava bem no meio da chuva de projéteis.
 Colhido pela tempestade de fogo, o barco estremeceu violentamente com a selvageria do impacto, tal qual um animal alvejado. A mastreação quebrou-se por inteiro e as velas murcharam, emboladas, semelhantes às asas de um pássaro ferido. Então, com um longo rangido da madeira, que parecia um lamento, dolorosamente o Lady Storm despediu-se da incrível batalha, afundando em seguida, tão rapidamente quanto chumbo lançado ao oceano.
No local onde a embarcação submergiu, restaram apenas barris, caixas e tábuas de madeira boiando, aos quais estavam agarrados os náufragos. Um fato interessante sobre os piratas é que, embora passassem boa parte da vida no mar, era minoria os que sabiam nadar. Tinham verdadeiro pavor pela água e, não fosse pelos destroços flutuantes do barco a lhes servir de bóia, pereceriam todos afogados.
Enquanto o Lady Storm era engolido pelo mar, e o Bride e o Diamond tinham que se deslocar para os lados a fim de escapar da perigosa sucessão de tiros, o Pandora executava a segunda manobra idealizada por seu capitão, a de fuga. No meio da confusão de vozes exaltadas e da gritaria dos náufragos, ingleses ou espanhóis, o líder pirata Jason Hope começou a perceber que talvez tivesse subestimado aqueles espanhóis.
Hope sentiu que o vento mudava de direção subitamente, como se o próprio destino houvesse resolvido ajudar os fugitivos. O inglês viu quando as velas do galeão desdobraram-se com um farfalhar, o pano inchado pelo sopro vigoroso. Os gigantescos mastros se moviam com energia, acompanhando o movimento do leme, e fazendo com que o barco espanhol começasse a ganhar distância de seus perseguidores.
Empunhando o sabre com medonha firmeza, Hope sentiu-se tão furioso que teve ímpetos de decapitar alguns de seus marujos. Berrou freneticamente, agitando de modo ameaçador a lâmina no ar:
- Maldição!!!! Atrás deles, seus cães! Que o Diabo me carregue se eu conseguir arrumar uma tripulação mais incompetente! Bastardos! Inúteis! Tragam-nos para perto do vento outra vez! Se aqueles porcos latinos conseguirem escapar, eu vou comer o fígado de cada um de vocês, e exigirei que suas cabeças me sejam servidas em um prato!
A nada sutil repreensão do capitão irado pareceu surtir efeito sobre os piratas, que trabalhavam com mais afinco ainda, para que alcançassem rapidamente o galeão em fuga. Jason Hope continuava proferindo sua série de maldições e xingamentos, usando palavras de baixo calão aprendidas de vários idiomas, transformando sua revolta numa mistura obscena de expressões despudoradas que escapavam de seus lábios crispados de ódio. Estava absolutamente furioso. Via o Pandora afastar-se empurrado pelo vento, ganhando velocidade e distância dos saqueadores marítimos. Isso enfurecia Hope a tal ponto, que ele julgava estar à beira de um infarto, um ataque de nervos.
Esbravejava com seus marinheiros como se sua vida dependesse disso. Tinham de por as mãos naquele fabuloso navio. Tinham de ser donos do tesouro que o galeão transportava. Era uma questão de honra, principalmente agora que haviam perdido o Lady Storm na batalha. O capitão inglês nunca estivera tão determinado a caçar algum barco para pilhar antes. Aqueles espanhóis causaram prejuízo. Estavam fazendo com que perdesse tempo, bons homens e uma excelente embarcação. Cães! Precisavam pagar por isso. Não permitiria que eles escapassem bem debaixo do seu nariz. Não tolerava que sua vitória praticamente certa estivesse ruindo diante de seus olhos, assim como um castelo feito com cartas se desfaz ao mínimo toque da brisa mais sutil.
O Pandora, apesar de seu tamanho e peso enormes, navegava à frente, de velas enfunadas, todos os marujos de sua numerosa equipe de bordo trabalhando em conjunto, ritmicamente, para manter a velocidade daquele gigante dos mares, o qual já obtinha uma boa distância dos adversários ingleses. E logo atrás vinham os dois navios pirata. Quando tudo parecia perdido para Hope, o vento variou sua direção mais uma vez. Usando isso a seu favor, o capitão inglês agiu rápido, antes que a brisa, sua maior aliada naquele momento, decidisse soprar em outro rumo novamente.
Atendendo às ordens de seu exigente, porém experiente comandante, as tripulações do Ghost Bride e do Red Diamond fizeram com que os barcos navegassem lado a lado com sua presa. Houve nova e estrondosa troca de tiros de canhão, possante o suficiente para estremecer aqueles mares. Os piratas posicionaram-se junto às amuradas de seus barcos e, tão logo o Pandora entrou mais uma vez em seu alcance, lançaram os arpéus com precisão, sem hesitar.
Manuseados pelas mãos experientes dos corsários, os ganchos de ferro cravaram-se firmemente na amurada do galeão espanhol. Em seguida, sem demora os piratas começaram a puxar. Flanqueando o galeão, os navios pirata foram aproximados pelo puxar vigoroso das cordas, até que se chocassem com estrondo. O Pandora, preso pelos ganchos de abordagem do inimigo, tinha à sua direita, colado ao seu casco, o brigue pirata Ghost Bride, e à esquerda, a escuna corsária Red Diamond. Quando a situação chegava àquele ponto, não havia volta. Não havia salvação para o galeão hispânico, tampouco para seus tripulantes.
- Atacar! – rugiu Jason Hope com o que lhe restava de energia na voz, após gritar durante vários minutos até o momento de êxito ao lançar os arpéus.
Como uma matilha de cães treinados, os piratas deram início ao assalto. Tendo em vista que o Pandora era um navio de três andares, obviamente seu tamanho era superior ao das embarcações que o atacavam. Logo, sua estrutura erguia-se imponentemente acima dos tombadilhos do opositor. Desse modo, para que alcançassem o convés do barco a ser pilhado, os corsários precisavam utilizar as cordas dos ganchos para escalar até a amurada do outro navio.
Gritando como loucos, produziam uma algazarra infernal que tinha como objetivo principal intimidar o inimigo. Rugiam diabolicamente como os velhos lobos do mar que eram. Emitiam seu grito pavoroso de guerra. Com facas presas entre os dentes, içando o peso do corpo por meio de seus braços musculosos devido o árduo trabalho de bordo, os piratas subiam com agilidade pelas cordas, semelhantes a aranhas velozes e repugnantes. Sombreados pelas velas dos navios, emergindo da fumaça negra da pólvora dos tiros de canhão, os sapatos apoiados com firmeza e prática no escorregadio costado de madeira, eles logo surgiam no convés do barco atacado e se arremessavam ao combate.
Durante a subida, muitos eram precipitados ao mar porque lá no alto, apoiando-se na amurada do Pandora, os espanhóis atiravam para baixo, disparando seus mosquetes e pistolas contra os invasores. O problema é que, na ponta de uma corda de onde despencava um corsário, logo em seguida surgiam mais três escalando. Isso acontecia nas duas laterais do navio. Os defensores do barco tinham a desvantagem de o processo para recarregar suas armas ser extremamente demorado.  Tinham de despejar e socar a pólvora nos canos dos mosquetes, depois inserir a bala, e tornar a usar a bucha. Perdiam muito tempo com isso. Tempo suficiente para que os bandidos subissem a bordo e sacassem suas espadas, levando o combate para o corpo a corpo.
 Dentro em pouco, os hispânicos tiveram que se afastar da amurada para se concentrar em esgrimir suas espadas contra os invasores no convés. Então, os piratas de ambos os navios logo estavam a bordo do impressionante navio espanhol. E a luta se desenvolvia com uma ferocidade assustadora.
 Urros de ódio e de dor de ingleses e espanhóis se misturavam, bem como as imprecações proferidas de ambos os lados. O retinir metálico das espadas se encontrando violentamente. O som inesquecível e nauseante do aço dilacerando a carne e destruindo ossos. Sangue e suor lavando o convés, tornando-o escorregadio. Corpos forrando o solo em qualquer direção que se dirigisse a vista. O cheiro pútrido da morte empesteando o ar, mesclado ao odor fétido da pólvora e o perfume embriagante da maresia. A luta, que a princípio estivera equilibrada, agora pendia contra os espanhóis que, embora lutassem bravamente, estavam sendo gradativamente derrotados, caindo mortos aos pés de seus inimigos ingleses, a bravura hispânica sucumbindo à selvageria pirata inglesa.
Tal triste fato se dava porque, diferentemente das duas tripulações de corsários, que inteiramente eram treinadas tanto para manobrar os barcos, quanto para pilhar e lutar, a equipe de bordo espanhola era dividida entre marujos e soldados. Uns não executavam a função dos outros. Para isso precisavam de uma esquadra de escolta, mas, como sabemos, não mais podiam contar com o apoio dos barcos Dom Filipe e El Vigilante, afundados no combate.  E isso os deixava em uma situação terrivelmente complicada.
Em certo momento, percebendo que os soldados não estavam conseguindo vencer o inimigo, os marujos espanhóis tentaram pegar em armas para ajudar no combate, mas não houve sucesso nem melhora. Sem a prática necessária para manusear as espadas, foram, um a um, abatidos impiedosamente pelo bárbaro adversário. O máximo que os soldados espanhóis conseguiram com a ajuda vinda dos marujos na luta, foi atrasar o início do assalto alguns minutos, e cansar um pouco mais os bandidos do mar. O rugido das lâminas encobria o clamor do mar se chocando contra os cascos. O caos se instalara a bordo. Em desespero, temendo a morte brutal iminente, muitos marujos e soldados espanhóis atiravam-se ao mar.
Caminhando orgulhosamente pelo convés do Pandora, onde os homens se atracavam de modo sangrento no duro combate pela posse do galeão, Jason Hope parecia alguém invencível. Os gritos de dor e fúria, o cheiro de morte e o clangor das espadas à sua volta aparentemente não o incomodavam. Sua frieza era assustadora, sua face denotava indiferença quando usava seu sabre para se defender com maestria de algum golpe ou esquivar-se rapidamente de alguma lâmina que buscasse perfurá-lo. Em oposição aos golpes de seus piratas, os movimentos de Hope eram firmes, velozes, precisos e infalíveis. Movia o sabre três, no máximo quatro vezes quando os inimigos surgiam diante dele. Esquivar ou defender, atacar e continuar andando, como se os espanhóis não merecessem mais atenção do que aquela. Estocava um ponto vital e seguia em frente, sem se importar com o ser humano que acabava de deixar morto no piso atrás de si.
Jason Hope rumava direta e determinadamente rumo ao castelo de popa. Queria adentrar o camarote do capitão, onde provavelmente havia uma parte dos tesouros que o galeão transportava. Algo o puxava para lá, uma espécie de imã. Quando ia começar a subir os degraus para o tombadilho, seus instintos de guerreiro o preveniram a tempo. Girou para o lado e a folha metálica de uma espada silvou no ar, descrevendo uma curva mortal onde se projetara o capitão segundos antes. Hope voltou-se e apertou os olhos com dureza para fitar que ousara atacá-lo pelas costas.
Um homem de tez morena e cabelos negros, elegantemente vestido, trajando roupas vistosas, chapéu emplumado e empunhando um florete espanhol, parado a menos de um metro e meio de Hope, o mirava com desprezo e intensidade.
- Eu sou o almirante Guilhermo Antunes. – falou o homem em um inglês correto – Sou o capitão deste navio e não permitirei que ele seja saqueado por um verme britânico como você. Para entrar naquele camarote, vai ter que passar sobre meu cadáver, pirata dos infernos!
Ao concluir a frase cuspindo ameaçadoramente as palavras, o espanhol tinha o cenho franzido e apontava o florete em riste para Hope. O inglês o fitou de alto a baixo com um olhar recheado de desdém. A seguir, brandindo seu sabre, rosnou ironicamente:
- Que assim seja.
Os capitães atiraram-se avidamente ao duelo, enquanto a carnificina acontecia ao seu redor. Aquela era uma luta fascinante, digna de ser assistida. Antunes e Hope esgrimiam com uma maestria espantosa, movimentos rápidos e certeiros. As lâminas tilintavam em atrito, brilhando ao sol daquela manhã mortífera. O jogo de pés, tão essencial aos esgrimistas quanto aos pugilistas de hoje, era atrapalhado pelo convés, que se tornara escorregadio devido ao sangue que o encharcava. Os dois moviam-se cautelosamente, tomando cuidado onde pisavam, mas sem tirar os olhos um do outro. Algumas vezes, quando suas espadas cruzavam-se, seus rostos contraídos ficavam tão próximos que os duelistas podiam sentir o hálito um do outro.
Sempre atacando e defendendo, foram de um lado a outro, no meio da confusão da batalha. As lâminas tentavam alcançar os corpos do adversário; todavia, eram desviadas ou defendidas com destreza, tanto por um, quanto pelo outro. Passaram pelo mastro e então Hope começou a bolar um plano. Antunes era um bom soldado, um espadachim hábil. Seria difícil vencê-lo daquele modo, pois sua prática com o florete se igualava à de Hope ao manusear o sabre. Começou então a desferir golpes velozes e poderosos, obrigado Antunes a se defender recuando para perto da amurada.
Quando o espanhol estava no ponto onde Hope desejava, o inglês agarrou pela gola o primeiro marujo que passou perto de si e o arremessou contra o inimigo. Surpreendido pelo gesto, Antunes teve que se desviar e, por isso abriu a guarda momentaneamente. Não foi muito tempo, mas bastou para que Hope traiçoeiramente enterrasse o sabre em seu peito, errando por pouco o coração, mas ainda assim, ferindo-o mortalmente.
Com sua espada cravada na carne do inimigo, Jason Hope foi empurrando o espanhol até que o corpo do mesmo se chocasse contra a amurada. Largando o florete, e expelindo uma golfada de sangue pela boca, Antunes olhou para o pirata cheio de desprezo, surpresa e revolta.
- Maldito espanhol! – bradou Hope com um misto de sarcasmo e desdém – Por sua causa, suei a camisa!
Agonizante, Guilhermo esboçou um sorriso sangrento, que se transformou numa careta de dor a seguir, quando ele tossiu mais sangue. Mesmo assim, arfante, conseguiu dizer:
- Sua hora...  vai chegar... seu verme pirata! Sua morte... será muito pior... que a minha... e El Dragón... chorará sobre seu corpo... não como seu comandante... mas como seu amigo...
- Já basta, espanhol. – rosnou Hope e sorriu com ironia – Fala demais para um cão que está morrendo. Dobre a língua ao falar de meu comandante. E, a propósito, o nome dele é Francis Drake.
E, tendo dito isso, Hope arrancou sua espada do corpo do inimigo, ao mesmo tempo em que, apoiando o pé direito no centro de seu peito, empurrava o capitão espanhol moribundo sobre a amurada. Sem um pio, o homem girou e foi projetado ao mar. Se não morreu com a imensa queda, provavelmente se afogou em seguida, mais em seu sangue do que propriamente na água do oceano.
Friamente Jason Hope limpou o sangue de seu sabre na camisa do morto caído mais próximo, para que o líquido vital rubro não enferrujasse sua lâmina. Guardou a espada na bainha e correu para o camarote do capitão. Teve que arrombar a pesada porta depois de atirar com sua pistola na maçaneta de bronze. A porta se abriu com um estrondo. O som feroz da batalha, agora quase finalizada, chegava aos ouvidos do capitão pirata inglês.  
Ao entrar na cabine, o homem viu diversas caixas e baús contendo preciosidades. Entretanto, o que seduziu sua atenção da mesma forma que moscas são atraídas para a luz, foi uma pesada arca, misteriosa e imensa, decorada com jóias e desenhos antigos, colocada a um canto, próximo à cama do falecido capitão Antunes. Jason Hope ainda não sabia, mas assim que pousou os olhos naquela estranha arca, havia acabado de selar seu destino.

Continua...

Danilo Alex da Silva


“A morte e ela, a morte em vida,
Jogaram os dados para a tripulação
Ela ganhou o marinheiro
E ele pertence a ela agora.
Então... a tripulação, um a um,
Caíram mortos, duzentos homens
Ela... ela, morte em vida
Ela o deixou viver, o seu Escolhido”

(Rime of the Ancient Mariner – Iron Maiden) 

terça-feira, 26 de junho de 2012

A Arca de Pandora - Parte II





O imenso navio se aproximava de modo imponente, cortando as ondas com suavidade e rapidez, as velas enfunadas pela brisa marítima da manhã. Uma intrigante aura de mistério parecia envolver o Pandora.
Hasteada no topo de sua mastreação, tremulava a bandeira com as cores da Espanha. De onde estava, Jason Hope, o capitão inglês do brigue pirata Ghost Bride, fazendo uso de sua luneta, pode divisar com nitidez a frente do galeão. Na proa, entalhada com esmero e habilidade artística incomuns, havia a sinistra carranca, ou figura de proa, uma imagem, geralmente assustadora, usada na frente, na ponta das antigas embarcações para afugentar os maus espíritos.
A figura que ornava a proa do galeão Pandora, era a de uma mulher bela, jovem e sombria, de olhar medonho, e cabelos longos, revoltos, como se agitados pelo vento que encrespava o mar, gerando ondas que embalavam a embarcação. Ela usava uma túnica grega, como aquelas que vemos nas representações da deusa Athena. Em suas mãos a jovem trazia uma caixa ornamentada com inscrições místicas, a qual estava prestes a abrir, despejando seu conteúdo maligno sobre a face da Terra. Sem sombra de dúvida, aquela era a lendária personagem da mitologia grega, cujo nome fora usado para batizar também aquele misterioso galeão espanhol. Jason Hope tornou a sentir um arrepio avassalador percorrendo sua espinha.
Havia pouca movimentação a bordo do Pandora. Os navios que o escoltavam eram menores e insignificantes aos olhos de Hope. Mesmo fortemente armados, não mereciam mais a atenção do capitão pirata inglês. Pandora era o que lhe interessava. Algo inexplicável o atraía para aquele navio. Então, Hope se voltou e começou a organizar sua tripulação de ladrões do mar para o ataque. Quase em seguida, o sentinela de bordo do Pandora emitiu o alerta de aproximação sobre a flotilha ainda não identificada que navegava ao seu encontro. Imediatamente, como mágica, uma grande quantia de marujos emergiu de escotilhas e passou a transitar preocupadamente pelo convés do galeão espanhol.
- Eles desejam nosso sinal, senhor. – disse Thomas Brook, o imediato, a seu capitão, Jason Hope.
Com um sorriso frio, o comandante pirata disse ao seu subordinado:
- Pois bem; então não vamos fazê-los esperar mais, não é mesmo, meu bom amigo?
Dada a ordem, a bandeira da Inglaterra foi içada e hasteada, agitando-se majestosamente ao vento impetuoso que engordava velas e golpeava flâmulas. Feito isso, o imediato Brook, que seria o substituto do capitão caso algo ocorresse a Hope, fez nova pergunta:
- Qual cor, senhor? A negra ou a vermelha?
- Vermelha. – rosnou Hope pousando a mão sobre a bainha de seu sabre, atrelada à sua cintura.
Mal o capitão respondeu, o segundo estandarte começou a subir. Era a Jolly Roger, a famosa bandeira pirata, com uma caveira acima de duas tíbias cruzadas. Se ainda hoje esse símbolo representa para nós perigo mortal, na época era motivo de desespero a bordo das embarcações. Geralmente a Jolly Roger era negra; todavia, havia também a rubra, aquela que o capitão Jason Hope escolhera. Quando a bandeira pirata de cor vermelha surgia no topo do mastro, o pânico percorria a tripulação do navio a ser atacado como uma grave doença de contágio instantâneo, porque o vermelho era a cor da morte. Ele indicava que os corsários não demonstrariam misericórdia durante a abordagem.
Enquanto os navios espanhóis começavam a se alinhar para enfrentar os sanguinários ladrões do mar, os navios pirata Lady Storm e Red Diamond imitaram o Ghost Bride, hasteando as mesmas bandeiras e perfilando-se para a luta, que seria feroz. 
 O mar espelhava o azul do céu. O vento zunia nos cordames e enchia as velas, impulsionando os barcos em suas precisas manobras de guerra. O sol, silencioso e vívido, espiava enquanto os seres humanos se aprontavam para derramar sangue. As ondas tocavam suavemente os cascos das embarcações, os mesmos cascos entre os quais, algum tempo mais tarde, após a batalha, estariam encobertos pelas ondas, rumando solenemente para seu local de descanso eterno no fundo do mar.
O par de navios hispânicos que defendia o Pandora foi o primeiro a disparar seus canhões. Abriram fogo quase ao mesmo tempo, tão logo se posicionaram para o combate. Um canhonaço perdeu-se na água, entre os barcos pirata, mas o outro fez estremecer o Red Diamond, abrindo um buraco considerável no convés de proa. O reboar dos canhões soando de modo apocalíptico. A madeira rangeu, como se gemesse. Das alturas, um albatroz majestoso contemplava a luta enquanto batia suas asas para perto das poucas nuvens que pincelavam o céu. Hope deu a ordem e o Ghost Bride vomitou fogo sobre o oponente, destroçando o mastro de ré de um dos barcos hispânicos de escolta. Enquanto isso acontecia, o Pandora concluía pesadamente seu posicionamento e apontava suas bocas mortíferas para o trio de navios inimigos. Era um galeão ainda mais formidável por seu incrível poder de fogo: possuía cerca de oitenta canhões, quarenta de cada lado, distribuídos ao longo de seus impressionantes três andares.
Naquele momento, as quatro dezenas de canhões de bombordo, ou seja, do lado esquerdo da feérica embarcação, estavam apontadas para os corsários, os quais, tendo o vento a seu favor, aproximavam-se a todo pano. Quando o capitão espanhol emitiu a ordem, simultaneamente as bocas de fogo estrondosamente lançaram chumbo sobre os atacantes. A maioria dos tiros acertou o mar, erguendo imensas trombas d’água. Todavia, alguns provocaram estrago.
O Lady Storm viu-se terrivelmente sacudido quando três canhonaços certeiros golpearam consecutivamente seu corpanzil reforçado de madeira. Um dos mastros foi atingido; partindo-se fragorosamente, veio abaixo tragicamente, como o tronco da árvore abatido pelo machado inclemente do lenhador. O mastro despedaçado tombou pesadamente sobre o convés, esmagando uma dúzia de piratas que não conseguiu fugir a tempo.
Enquanto o trovoar dos canhões rasgava os ares, os projéteis sacudiam o mar e os navios que possuíam o infortúnio de ser alvejados. As balas de canhão eram bolas negras de ferro, que pesavam cerca de 15 kg, destruindo o que surgisse pela frente. Jamais aquele trecho de mar havia presenciado batalha naval tão estupenda. A fumaça escura provocada pela pólvora formava uma nuvem que pairava sobre a água e comprometia a visibilidade dos artilheiros de ambos os lados. Os canhões rugiam e flamejavam incessantemente. Os ingleses já se encontravam perigosamente perto. Se o vento continuasse os ajudando, dentro em pouco poderiam lançar os ganchos e iniciar o assalto aos barcos hispânicos. Por isso, avançavam veloz e bravamente, encarando destemidamente os canhonaços inimigos, que os destroçavam aos poucos.
Os dois navios de escolta do Pandora eram embarcações de guerra, com tripulação experiente e soldados bem treinados a bordo. Uma esguia fragata batizada de Dom Filipe, e uma charmosa corveta que trazia gravado em seu casco o nome El Vigilante. Ambos haviam sido de grande valor na batalha, e causaram grandes danos na flotilha pirata, mas agora estavam indo a pique e falhando com sua missão; antes que tocassem o fundo do oceano, o Pandora já estaria sendo saqueado, e sua tripulação impiedosamente exterminada pelo inimigo implacável.
Isso acontecia porque Jason Hope era um capitão singular, estrategista como poucos. Sentia-se honrado quando lhe era dada a oportunidade de combater lado a lado com seu comandante e grande amigo, o temível pirata inglês Francis Drake, um homem que aprendera a odiar os espanhóis desde a infância, e usava toda sua habilidade para se vingar e destruir o inimigo.
 Com Drake, Hope aprendera a comandar um navio e batalhar com maestria em alto mar. Fora igualmente convivendo com o amigo que Jason desenvolvera similar ódio pelos hispânicos. Iria abordar aquele galeão em nome da Inglaterra. Iria honrar a amizade e a autoridade de seu capitão Francis Drake. Atacaria. Pilharia. Mataria. Queria ser motivo de orgulho para Drake. Desejava apoderar-se do Pandora e de seus tesouros. Mais riquezas espanholas para a Coroa britânica. Vida longa à rainha Elizabeth I! Mais um majestoso navio para integrar a frota pirata de Francis Drake, conhecido como “El Dragón” por todo homem cujo berço fosse a Espanha e, por conseguinte, seu inimigo mortal.
Enquanto o Dom Filipe e o El Vigilante afundavam, deixando boa parte de sua tripulação a se debater na água, e abandonando o Pandora à própria sorte em pleno confronto, os ingleses se preparavam para iniciar a abordagem. Os três navios pirata rumavam diretamente para o titânico galeão que, a despeito de toda a sua grandeza estrutural e poder de fogo, aparentava estar indefeso frente ao inimigo, meio oculto pela fumaça negra e fétida provocada pela pólvora.
O Ghost Bride e o Red Diamond, embora avariados pela artilharia inimiga, navegavam de modo elegante em direção ao adversário. Sua maneira orgulhosa de se deslocar mais lembrava dois cidadãos ingleses que percorressem a pé, com seu costumeiro ar afetado e superior, as enevoadas ruas de Londres.
 Já o Lady Storm se encontrava visivelmente comprometido. Vinha um pouco atrás, sofrendo com a perda de alguns postes de sua mastreação. Estava adernado, mal parecia conseguir manter-se flutuando. Possivelmente estava fazendo água bem rápido e, se os porões chegassem a ficar inundados, o temível navio pirata iria, inevitavelmente, naufragar em poucos instantes.  Resistira à tormenta, mas não à intensa e competente fuzilaria espanhola.
 Saber que um dos navios estava condenado irritou ainda mais Jason Hope, que passou a gritar e a gesticular para os seus marujos, exigindo que se aproximassem logo do galeão, para que o ataque tivesse início. Parecia um homem possesso por um mau espírito.
 Conquanto lutasse sozinho agora, e prosseguisse na tentativa de rechaçar os adversários com seus canhonaços devastadores, o Pandora finalmente estava ao alcance dos ingleses e, portanto, vulnerável ao assalto. Percebendo isso, com as faces afogueadas pelo ódio e excitação, o capitão Jason Hope ordenou que se realizasse a abordagem.
Sacou com um gesto pomposo o seu fabuloso sabre, cuja empunhadura era dourada e o cabo, decorado com jóias preciosas roubadas de tesouros hispânicos, e a lâmina reluziu fascinantemente ao sol daquela manhã fatídica. Então, apontando de maneira ensandecida a espada, primeiro para o alto, e em seguida para frente, com o vento bagunçando seus cabelos e propiciando um clima tenebroso à fantástica cena, o capitão pirata inglês Jason Hope urrou selvagemente, a plenos pulmões:
- Lancem os arpéus, seus energúmenos! Eu ordeno; roubem e matem à vontade! Não façam prisioneiros! Nenhum desses espanhóis verá o pôr do sol de hoje.

Continua...


Danilo Alex da Silva


“Então gritou o marinheiro,
Lá vem uma embarcação no horizonte
Mas como ela pode navegar
Sem vento e sem correntes?”
(Rime of the Ancient Mariner – Iron Maiden)

sábado, 23 de junho de 2012

A Arca de Pandora




Provavelmente você já ouviu falar de navios fantasma. Talvez tenha acreditado nos relatos que te forneceram, talvez não. De qualquer forma, embora não crer seja um direito seu, peço que acompanhe comigo essa história e, no fim da mesma, tire suas próprias conclusões. Não precisa prometer que vai acreditar em cada vírgula escrita aqui, tampouco é necessário que jure levar a sério cada palavra desta narrativa. Sei que é difícil dar credibilidade ao que vou contar, mas tudo o que desejo é alguém para compartilhar a lenda. Invista um pouco do seu tempo nisso, permita-se carregar pelas asas da imaginação. Garanto que não se arrependerá.
Navios fantasma são vistos há muito tempo, ao redor de todo o mundo. Quando aparecem, geralmente são interpretados como presságios de morte: tempestades brutais a caminho, terríveis desastres marítimos, ataques de corsários sanguinários. São arautos indesejáveis, sua aparição comumente é sinal de mau agouro. Navios que foram encontrados à deriva, os móveis e objetos intactos, mas sem nenhum vestígio da tripulação. Mistérios marítimos que perduram até os dias atuais. Navios assombrados, fadados a singrar os mares de modo eternal e fantasmagórico, regidos pela situação inexplicável que os transformou nessa espécie de aviso mortal.
Falaremos então sobre um navio fantasma, conheceremos a origem de sua lenda. Entretanto, a fim de que você compreenda melhor, é preciso que retrocedamos alguns séculos no tempo, até um ponto específico onde começa nossa história. O ano é 1.580. Estamos na gloriosa era das velas, quando navios enormes, movidos pelos ventos poderosos de alto-mar, cruzavam os oceanos infinitos rumo ao desconhecido. Época de imensas conquistas; desbravar terras, angariar tesouros e, principalmente, tempo de grandes conflitos no mar. Quem ousava se aventurar pelos oceanos, não devia temer apenas o mau tempo. Precisava estar preparado também para enfrentar outro grande terror das águas: os lendários piratas.
E havia um corsário em especial, um inglês, que estava tirando o sono de Dom Filipe II, o rei da Espanha. Seu afamado nome era Francis Drake. Tendo recebido uma carta de corso, famosa “licença para roubar”, outorgada pela própria rainha Elizabeth I, Drake cruzava os mares pilhando navios espanhóis e obtendo riquezas para a Inglaterra. Ele abordava e saqueava os galeões espanhóis que navegavam lentamente devido o peso do ouro e da prata que obtinham nas colônias. Francis Drake fez com que grande parte dos tesouros que chegariam às mãos de Dom Filipe II fosse parar nas profundezas do Atlântico. Ouro, prata e esqueletos de valorosos soldados hispânicos jazem encerrados no fundo do mar, sepultados no bojo amplo e majestoso de suas embarcações. Não é de se admirar então que o rei da Espanha tenha oferecido uma vultosa recompensa pela cabeça desse comandante pirata.
À medida que Drake realizava seus ataques a bordo do seu temido galeão inglês, o Golden Hind, mais navios se agregavam à sua pavorosa frota pirata. Certa vez, comandando sua esquadra de navios corsários, Drake retornava de uma de suas patrulhas em busca de navios carregados que pudesse pilhar. Saíra do mar do Caribe, costeara o Haiti, a Jamaica e a República Dominicana, e subia em direção às Bahamas, onde abasteceria os navios para a longa viagem de volta até a Inglaterra, a fim de entregar à sua majestade britânica os frutos de seus roubos no mar. E assim o fez.
Quando havia pouco que partiram das Bahamas e já se encontravam em pleno Atlântico, uma violenta tempestade os colheu no caminho. O mar rugia e agigantava suas ondas ao redor da fabulosa frota pirata, que não mais parecia tão ameaçadora. Frente à força descomunal da natureza, não há invenção humana que possa se equiparar. Os imensos e portentosos navios ingleses, assemelhavam-se a míseras folhas no centro da tormenta, lançados de um lado para outro como brinquedos de criança. Dois barcos foram destroçados pela tempestade e rapidamente tragados para o fundo do oceano furioso. Navios e marujos desapareceram nas águas escuras e sinistras, desfalcando a esquadra de Drake.  
Dos navios que não afundaram, alguns saíram bastante avariados do temporal. O nosso navio é um brigue garboso, chamado Ghost Bride. Seu capitão se chamava Jason Hope, um homem muito chegado a Francis Drake, uma espécie de irmão do famoso pirata.
Hope era muito respeitado entre os amigos, e temido entre os inimigos. Naquele instante de intenso perigo, quando a maioria dos capitães estaria trancada em seu camarote, Jason Hope se misturava aos seus homens, contribuindo na árdua tarefa de fazer o barco resistir ao mau tempo. Elevava o máximo que podia sua voz de comando, para que fosse ouvido acima do rugido do vento. Como o resto da tripulação, amarrou-se a uma das cordas presas aos mastros, para impedir que fosse varrido ao mar pelas ondas colossais que a todo instante assaltavam o barco. Tinha perdido alguns marujos quando estes escalavam os mastros para recolher as velas, o que era essencial. Velas desfraldadas em uma ventania daquelas eram certeza de naufrágio.
O balanço brusco e constante da embarcação tornava praticamente impossível permanecer de pé sobre o convés. Relâmpagos rasgavam a escuridão e, não raro um raio ia alvejar o mar revolto. A chuva copiosa doía na pele, parecia encharcar os ossos e arder na alma. Madeiras estalando e rangendo fantasmagoricamente. O mastro principal envergado pelo vento poderoso, dando a impressão de que ia se partir a qualquer momento. O piloto pálido, agarrado ao timão enquanto tentava fazer uma prece. Sua voz saía enrolada devido ao rum que estivera bebendo antes de o alerta de tempestade ser dado pelo vigia lá do alto da gávea. Apesar de seus admiráveis esforços, o timão girava sozinho, bem como o brigue, que se achava irremediavelmente descontrolado. Os homens faziam o que podiam: usavam baldes para atirar fora do barco a água que invadia o tombadilho. O Ghost Bride resistia valentemente à terrível tormenta. A figura de proa, uma espectral mulher vestida de noiva e de braços abertos, parecia desafiar os céus e o mar enfurecidos. O vento, a chuva e a escuridão fechavam o cerco, deixando o brigue de Jason Hope cada vez mais encurralado.
Então, milagrosamente, depois de algumas horas que pareceram uma eternidade, finalmente o vento soprou com menos intensidade e a chuva deu uma trégua. O céu começou a se livrar das nuvens gordas e escuras. O sol brilhou e os pássaros voltaram a atravessar o ar entoando seu canto magnífico, que aquecia o coração embrutecido daqueles lobos do mar. A tempestade se foi, mas os resultados de sua passagem ficaram: o mastro principal estava torto, em tempo de se partir, tamanha a força da tormenta.
A maior parte da esquadra de Drake havia desaparecido, restando apenas o Lady Storm e o Red Diamond para navegar lado a lado com o Ghost Bride. O Golden Hind de Drake e os outros navios deviam estar a muitas milhas de distância, o temporal podia tê-los arrastado em qualquer direção; talvez ainda estivesse carregando-os naquele momento, distanciando-os mais e mais da rota e da outra parte da esquadra.
Jason Hope, por ser o mais velho e mais experiente, foi escolhido para comandar a flotilha de bandidos do mar. Como o Bride, os outros barcos também precisavam de reparos, então não seria possível prosseguir na longa jornada de volta para casa. Teriam de regressar às Bahamas, onde poderiam consertar as embarcações e renovar os suprimentos, já que boa parte da comida se perdera devido a água que invadira os porões. Além do mais, se voltassem, durante o tempo que aguardassem para que os navios estivessem reparados e o estoque de comida reposto, talvez Drake surgisse para reencontrá-los. Assim, poderiam seguir viagem juntos normalmente. Já havia acontecido algo parecido antes. E a cidade portuária das Bahamas para onde estavam indo era um ponto de reencontro previamente combinado por Drake com todos os capitães dos demais barcos de pilhagem sob seu comando. Quando puderam consultar a bússola, seguiram as recomendações do capitão Hope e voltaram os três barcos ingleses temporariamente para terra firme.
Durante o tempo que estiveram na cidade, Drake não apareceu, o que levou Hope a deduzir que estavam sendo esperados mais adiante. Com tudo preparado, sob o comando do capitão Jason Hope, os três navios pirata ingleses ergueram âncoras, içaram velas e fizeram-se ao mar. Acertaram a rota, o destino seria uma cidade africana, local de encontro para diversos piratas do mundo todo, principalmente aqueles que trabalhavam com Francis Drake. No caminho, atacaram alguns navios mercantes e obtiveram especiarias e alguns tecidos caros. Nada de complicado, esses barcos eram presas fáceis. Hope ansiava por emoção, queria tomar parte de uma abordagem perigosa, enfrentar navios de guerra e cruzar espadas com soldados bem treinados. Estava sentindo falta dos espanhóis naquelas águas.
Então, no terceiro dia de viagem pela imensidão azul do Atlântico, quando o vigia gritou lá do alto, do cesto da gávea, que havia navios espanhóis à estibordo, o próprio Hope apanhou sua luneta e correu para a amurada, a fim de conferir. O vigia estava certo. Três embarcações navegavam na direção de sua flotilha pirata, mas a do meio lhe chamou mais a atenção. Era um fabuloso e gigantesco galeão espanhol que, de velas infladas pelo vento, parecia uma águia de asas estendidas, pairando majestosamente sobre as águas. O navio estava sendo escoltado por dois barcos menores, embora fortemente armados. O galeão deslizava devagar sobre as ondas, seu bojo estava mais submerso que o normal. Estava certamente transportando grandes riquezas.
 Com olhos cobiçosos, o capitão Jason Hope, então, usou sua luneta para vasculhar o costado de proa do galeão espanhol que se aproximava, provavelmente retornando de uma incursão à grande colônia hispânica, o México. Buscava o nome do barco que iria pilhar em seguida. Quando leu o que procurava, Hope sentiu certo arrepio. Uma espécie de mau pressentimento. Tinha a impressão de que não esqueceria aquele nome tão cedo.
O galeão espanhol se chamava Pandora.

Continua...

Danilo Alex da Silva



“É tempo de olhar para o sol
Uma grande falha
O céu desaba, o Paraíso segue
O Fim está aqui”
(The Storm – Trivium)




terça-feira, 19 de junho de 2012

A Noite da Besta - Parte 5 - Final




No interior da casa, o pânico total havia se alastrado tal como o fogo. A visão do sangue abundante de Robson lavando o chão empoeirado de madeira fez vacilar as pernas de todos aqueles que assistiam à macabra cena. No coração daquelas pessoas, o amanhecer nunca demorara tanto.
No chão, embolados, fera e homem ainda se atracavam. O cheiro do sangue parecia haver incitado ainda mais a criatura dantesca a qual, de narinas dilatadas, investia ainda mais furiosamente contra o homem enfraquecido sob si, subjugado por seu peso e agressividade.
Embora se encontrasse em uma situação completamente desfavorável, Robson ainda estava vivo. Sua obstinação era admirável, e seu coração bombeava o sangue enlouquecidamente, mais do que nunca lutando para sobreviver, defender seu direito nato de existir, mesmo tendo a morte tão próxima de si, com sua bocarra aberta e cheia de dentes afiados quase alcançando sua cabeça, o bafo insuportável de carne e sangue atingindo seu rosto porejado de suor. Seguindo as probabilidades, Robson, àquela altura, já deveria estar morto. Entretanto, toda a sua vida foi escrita fora da coerência comum. As probabilidades não se aplicavam àquele homem, porque ele vivia de acordo com uma lógica diferente; a lógica de que o homem é capaz de traçar seu caminho, de mudar o fim de sua história.
O lobisomem mirara seu pescoço ao descer com a boca arreganhada; porém, no último instante, Robson conseguiu erguer o braço esquerdo e aparou a monstruosa abocanhada, que deveria ter decepado sua cabeça. Claro que, para ter sua vida salva, Robson precisou pagar um preço. Um alto e sangrento custo, diga-se de passagem.
 A mordida da besta fera parecia pesar toneladas: Robson sentiu-se grato por não haver perdido o braço. Uma dor atroz o agoniou quando os dentes enormes cravaram-se fundo em sua carne, a infernal boca lupina exercendo uma pressão capaz de esmagar seus ossos sem muito esforço. Pele e carne dilacerados deram vazão ao sangue copioso, o qual, naquele momento, encharcava o assoalho. Seu grito de dor e aflição parecia lacerar o cérebro e o coração dos presentes. Com o joelho direito, passou a golpear repetida e poderosamente o ventre da criatura, que se recusava a largar seu braço, mordendo-o com a obstinação destrutiva de um cão da raça Pit Bull.
O braço gravemente ferido de Robson era um obstáculo temporário ao lobisomem, impedindo-o precariamente de degolar a vítima. O homem tinha escapado da morte naquele momento, mas no próximo instante estaria morto, já que o braço praticamente inutilizado cederia, e o monstruoso ser iria desferir o ataque definitivo.
Quando tudo parecia realmente perdido, a velha espingarda trovejou. Uma generosa e fervente carga de chumbo atravessou a sala, indo explodir o pescoço da fera. Uivando de dor, em meio a uma chuva de carne e pelos, com um esguicho de sangue saltando no ar, a besta fera foi projetada para longe de Robson, indo aterrissar pesadamente aos pés do móvel que bloqueava a porta contra a sua entrada. Os olhares se voltaram para o local de onde o disparo viera. Ofegante, com a camisa em frangalhos e um fio de sangue escorrendo de seu supercílio direito, Marcos empunhava com firmeza a poderosa arma.
Vendo-se livre do peso de seu agressor, Robson rolou para longe, gemendo com a dor insuportável a ferroar seu braço dilacerado e sangrento.  Mesmo assim, perseverantemente rastejou em direção ao seu revólver. Enquanto isso, apesar de grandes tremores sacudirem o corpanzil musculoso e peludo, a fera irada estava se erguendo. Seu processo de regeneração era mágico, inacreditável a olhos humanos. De modo sobrenatural, as balas eram expelidas enquanto a carne se reconstruía e o sangue estancava. O bicho diabólico se preparava para um novo ataque.
Robson estava pronto para gritar a plenos pulmões, ordenar que Juliana fugisse com o bebê para longe dali, quando o monstro começou a avançar. No meio do caminho ele estacou. Todavia, o que o parou dessa vez não foi uma bala. Foi uma voz de mulher.
- Já chega, Antônio. Basta de fazer mal às pessoas. Você não é um monstro; você é o meu Antônio, o meu bom e velho Antônio.
Quando todos se voltaram rumo ao ponto de origem da voz, a surpresa os paralisou por um instante. De pé junto à porta, embora visivelmente trêmula e vacilante, jazia a velha enferma, apoiada precariamente em uma bengala. Com a voz débil, própria das pessoas acometidas por doenças, ela suplicou mais uma vez:
- Essa matança tem que acabar, Antônio. Está ferindo pessoas inocentes. Não se lembra de mim? Não se lembra da sua família?
O momento foi tão surpreendente que a própria fera ficou sem reação, encarando a corajosa mulher. Conforme ela ia falando, a situação se transformava inacreditavelmente. Um lampejo de reconhecimento passou pelos olhos selvagemente amarelos da fera. A agressividade característica desapareceu, dando lugar a uma rara e sincera curiosidade. O homem sob a pele do lobo parecia estar se lembrando vagamente de quem era, ao ser tratado por seu nome de batismo. Olhou em dúvida para suas garras mortais e notou que o sangue escorrendo de sua boca não era seu, mas das suas vítimas. Viu então as pessoas feridas, arquejantes, ostentando olhares apavorados em sua direção.
Então, deixando escapar um uivo doloroso, o lobisomem se virou e em seguida pesadamente se atirou pela janela. Passou por ela como um grande míssil peludo, fazendo em pedaços o pesado móvel que bloqueava a passagem, convertendo-o praticamente em uma pilha de tocos e lascas de madeira. Uma vez do lado de fora da casa, ele correu furiosamente sem olhar para trás. Galopou sobre quatro patas como um animal e ganhou a mata, onde desapareceu em seguida. Pouco tempo depois a noite se afastou silenciosamente e o céu foi caprichosamente tingido com as cores da aurora. Os galos, batendo asas, cantavam anunciando a chegada do novo dia. Com o raiar da manhã, as trevas se dissipavam. A luz era bem vinda; sua proximidade fazia com que a metamorfose maldita fosse desfeita.
Aliviado pela chegada da manhã, Robson, caído de bruços, relaxou o corpo e mergulhou na inconsciência, sendo imediatamente cercado pelas pessoas que ele acabara de tentar salvar.

Pele ardente. Suor febril. Fraqueza. Fome. Sede. Dor sufocante na boca do estômago. Um homem lutando pela vida, transpirando e rolando entre grossas cobertas. Os lábios secos, quase rachando. Um grito doloroso emergindo do fundo da alma, seu interior queimando como se ele tivesse bebido lava de vulcão.
Vozes confusas vindo de longe, ininteligíveis como ecos distantes. Imagens difusas quando seus olhos se abriam lenta e gradativamente. Enquanto recuperava pouco a pouco a consciência, Robson percebeu que se achava em uma confortável cama. Seu braço esquerdo, conquanto doesse terrivelmente devido a seriedade dos ferimentos, estava envolto em bandagens umedecidas, aplicadas sobre um emplastro que preveniria a dor e a infecção. As vozes pareciam animadas ao notar a pouca melhora do homem, ao ver que ele se tornava consciente.
Robson repetia o nome de sua esposa em meio aos delírios febris. Precisava sobreviver, precisava escapar. O lobisomem estava vindo. A polícia estava chegando. Uma palavra martelava sua mente: Fugir. Fugir. Fugir. Por que seu corpo não obedecia? Porque estava muito cansado e ferido. Enquanto sua mente pensava em fugir, o corpo implorava por repouso para que pudesse se curar.
Um cheiro agradável acariciou o olfato de Robson. Fome. Sua boca seca salivou imediatamente. Alguém estava entornando delicadamente algo em sua boca. Uma sopa? Um caldo espesso quentinho, com sabor de frango caipira. Também sentiu gosto de verduras. Estava sendo alimentado. Graças a Deus! Quanto tempo fazia que seu estômago não via comida? Perdera muito sangue. Era necessário repor as energias.
Quando começou a abrir os olhos, sua vista ainda estava anuviada. Viu rostos preocupados ao redor da cama e um sorriso começou a se desenhar em seus lábios pálidos e trincados, mas no meio do caminho converteu-se em uma careta de dor. Tombou a cabeça de lado e cochilou por mais algum tempo, esgotado pelo esforço de tentar falar algo.
Algum tempo mais tarde, finalmente recobrou inteiramente a consciência. A névoa foi desaparecendo de sua vista, o contorno das coisas e pessoas tornou-se novamente nítido. Juliana estava ao lado da cama, enxugando sua testa febril com um pano úmido. Ao ver que ele voltava a si, ela sorriu, aliviada. Logo apareceram o garotinho Henrique, Marcos segurando o bebê, e a velha senhora, que Robson descobriu, se chamava Célia. Seus anfitriões demonstravam imensa satisfação por vê-lo acordado.
Entre encabulado e comovido pelos cuidados que estava recebendo daquela família, o jovem ex-presidiário olhou ao redor e contemplou o quarto da casa que ajudara a defender durante a noite, o que quase lhe custara a vida. De onde estava deitado, Robson podia ver algumas partes da sala devastada pelos tiros e pela ação do lobisomem. Lamentou em silêncio pela destruição material do lugar, mas, em compensação, sentiu-se feliz em ver sãs e salvas aquelas pessoas que o trataram e o acolheram, apesar de ele ser um foragido da justiça. Fixando os olhos em Marcos e no bebê, perguntou:
- Ele já tem nome?
- Até ontem ele não tinha. Hoje decidimos batizá-lo de Robson.
Surpreso, o jovem arregalou os olhos. Depois, sorriu. De repente, lembrou-se de algo e seu semblante mudou, ficando sério, sombrio:
- Que horas são agora?
- Perto de meio-dia – respondeu dona Célia.
- Preciso ir. – disse Robson com um gemido enquanto se levantava da cama. Sentia o braço esquerdo queimar terrivelmente, como se fosse desprender-se do resto do corpo a qualquer momento. Tentaram detê-lo, convencê-lo a ficar onde estava, contudo o rapaz estava determinado:
- Tenho que ir embora. As autoridades estão me procurando, logo estarão aqui e não quero mais expor vocês a riscos desnecessários. Se me encontrarem aqui, podem acusar vocês de abrigar um fugitivo. Isso traria ainda mais complicações. Como eu disse ontem à noite, preciso seu caminhão provisoriamente. A polícia logo o encontrará e vocês o terão de volta, vou usá-lo apenas para conseguir alguma vantagem sobre meus perseguidores. Digam a eles que eu os ameacei e roubei o caminhão.
Notando a tristeza do pessoal, ele sorriu mais uma vez e completou, agradecido:
- Jamais esquecerei o que fizeram por mim. Agradeço a hospitalidade.
- Nós que agradecemos o que você fez, meu filho – exclamou Célia – Não fosse você aqui ontem, teríamos mais uma tragédia na família. Meu netinho teria sido devorado pelo monstro irracional que toma meu marido nas noites de lua cheia.
Marcos, entregando o pequeno à Juliana, saiu da casa e foi ao quintal procurar as chaves do caminhão, as quais deveriam ter caído em algum lugar depois que a besta fera atacou os outros ex-detentos na noite anterior, quando eles tentavam fugir da fazenda.
Robson se levantou e caminhou penosamente até a sala. Viu um homem magro e baixo dormindo profundamente no sofá. Tinha a pele muito branca. Sua roupa estava em frangalhos, e havia sangue seco grudado em várias partes do corpo. Um sangue que não parecia ser seu.
- Esse é o senhor Antônio? – perguntou Robson pensativo – Era ele o lobisomem de noite passada?
Juliana, Célia e Henrique assentiram com a cabeça.
- Existe algum meio de se acabar com um lobisomem? – indagou o rapaz novamente.
- Prata. – respondeu Juliana, lacônica e melancolicamente.
- E por que vocês não usam a prata então? – Robson inquiriu ao mesmo tempo em que indicava com o queixo o homem amaldiçoado ressonando tranquilamente no sofá, como se não tivesse matado brutalmente quatro pessoas na noite anterior.
- Porque ele é meu pai! – quase gritou Henrique escandalizado – Ele é da família!
Robson não disse mais nada. Chamando-o à parte, Célia explicou que Antônio não se lembraria de nada do que acontecera, nada do que havia feito. Carregava o peso da maldição de ser uma besta assassina sem jamais ver o rosto de suas vítimas. Sabia que estava condenado a ser um monstro, uma ameaça para todos que o cercassem. E não podia se controlar. Não podia evitar. Todo mês, durante o ciclo lunar maldito, aquele pesadelo se repetiria todos os anos. E seria transmitida a maldição a Henrique, e depois ao pequeno Robson. Uma família fadada a conviver com o horror em sua própria casa por todo o sempre.
Enquanto pensava nisso, Marcos entrou e lhe entregou as chaves. Estavam sujas de lama e sangue. O rosto do homem denotava preocupação. Disse então a Robson:
- Vi dois helicópteros voando muito baixo a leste, como se procurassem alguém. Estão muito distantes ainda, mas se dirigem para cá.
- A polícia! – sobressaltou-se Robson – Não há mais tempo a perder!
- Devia dar uma olhada nesse braço. – sugeriu Juliana. – Ver um médico... O machucado foi grave, fizemos o que podíamos, mas tem que ir a um hospital.
Robson concordou e prometeu buscar assistência médica assim que pudesse. Apanhou seu revólver, enfiou-o na cintura, despediu-se de todos e rumou para o pequeno caminhão. Entrou, deu partida e subiu rapidamente a pequena estrada de terra que o levaria para longe dali. Minutos depois, estava na rodovia, dirigindo o mais rápido que podia. Era meio difícil guiar com o braço esquerdo todo enfaixado, mas ele se virava bem. Deixou uma, duas cidades para trás. Tomava atalhos sempre que podia, evitando as estradas principais, que certamente estariam sendo vigiadas pela polícia.
As primeiras horas de viagem foram tranqüilas. Entretanto, conforme a tarde corria, as coisas começaram a mudar. Primeiro um tremor convulsivo tomou conta de seu corpo. A febre voltou, escaldando seu organismo enfraquecido. Suava abundantemente. O braço ferido latejava. Depois de um tempo, tudo isso passou. E veio o sono.
Era brando. Manifestou-se discretamente a princípio, fazendo Robson bocejar vez ou outra. Em seguida, se abateu de modo avassalador sobre o homem. Os olhos de Robson pareciam estar cheios de areia e lacrimejavam fartamente. O homem lutava bravamente contra o sono. Não podia parar. Tinha de seguir em frente. No entanto, logo seus olhos estavam se fechando sozinhos, a cabeça pendia e ele estava prestes a adormecer na direção. Por duas vezes evitou causar acidentes graves com um golpe rápido no volante, corrigindo a direção do veículo que teimava em invadir o fluxo contrário do trânsito na rodovia. O sono o vencia. Era impossível derrotar aquela sonolência poderosa, assim como é dificílimo desvencilhar-se do aperto mortal da sucuri, cujo abraço tem como única função esmagar os ossos da presa.
Sentindo-se no limite de suas forças, Robson reduziu a velocidade, acionou a seta, rumando para o acostamento. Seus olhos, muito cansados, contemplaram o céu, e ele imaginou que deveriam ser aproximadamente dezesseis horas. Mal girou a chave na ignição e sentiu o motor do caminhão morrer, após puxar o freio de mão, Robson tombou para frente e sua vista escureceu instantaneamente.
Despertou algum tempo depois, sua mente nublada buscando emergir da confusão. Estava deitado em uma maca. Algemas atavam seus pulsos. Trepidação. Encontrava-se dentro de um veículo em movimento. Imaginou que fosse uma ambulância. Sentados à sua direita e à sua esquerda, viu policiais carrancudos e fortemente armados a fitá-lo com desconfiança. Também havia enfermeiros junto dele, verificando sua pressão, prestando atendimento. Pelo que entendeu da conversa dos policiais, Robson fora encontrado dormindo na rodovia por motoristas. Julgavam que ele estivesse passando mal e chamaram o socorro. E o socorro acionou a polícia.
Essa não! Não podia voltar para a cadeia. Estivera tão perto da morte! Queria ver sua esposa. Queria ver sua filha. Droga, um homem não deveria ser privado do direito de ver sua família. Percebeu que seu curativo fora substituído por outro bem melhor, provavelmente feito por um dos enfermeiros. Sacudiu raivosamente as algemas e um dos policiais com cara de poucos amigos ordenou que ficasse quieto.
A mente de Robson trabalhava a mil por hora. Os enfermeiros perguntavam onde ele tinha se machucado. Os policiais também faziam perguntas sobre seus companheiros. Perdera muito sangue. Estava recebendo uma transfusão naquele momento. Fechou os olhos. Não queria saber de nada daquilo. Não queria falar com aquela gente. Queria ir para casa, e eles o estavam levando de volta para a prisão.
Então, Robson intuiu que havia algo diferente. Seu ferimento latejava, mas era um latejar própria da cura. Nem precisou olhar para saber que, sob as bandagens, seu braço se regenerava rapidamente, como por milagre. Ergueu um pouco a cabeça e olhou pela janela. O céu sem nuvens estava tingido de vermelho sangue. O sol se punha cerimoniosamente.
- Você ficou muito tempo apagado - explicou um enfermeiro com certa simpatia - É quase noite. Logo a lua cheia vai estar no céu. Particularmente adoro noites assim. Acho-as misteriosas.
Robson entendeu tudo. A mordida. O ferimento se curando sozinho com grande rapidez. O sono extremo. A febre. Seus olhos negros lentamente adquirindo uma tonalidade amarela, brilhante, sem que nenhum dos presentes percebesse. Podia sentir um imenso poder nascendo dentro dele, como se uma fera enjaulada, aprisionada em seu interior, urrasse tenebrosamente, ansiosa para se libertar. Suas narinas se dilatavam, captando qualquer mínimo cheiro que flutuasse pelo ar. Algo também se modificava em sua audição: começou a escutar o som de vários tambores tocando de maneira ritmada. Olhando ao redor, viu que ele era o único a ouvir aquilo. Então compreendeu que não eram tambores.
Na verdade, Robson ouvia o pulsar do coração dos policiais e enfermeiros com tal clareza, que tinha a impressão de estar com o ouvido colado ao peito deles. Conseguia escutar separadamente cada coração batendo em seu próprio ritmo. Dons fantásticos e animalescos aflorando no homem que fora mordido pela fera e sobrevivera. Dentro de poucos minutos, tudo mudaria drasticamente naquela ambulância.
A força de Robson se multiplicaria em muitas e muitas vezes. Aquelas algemas não poderiam segurá-lo. As balas que viessem dos fuzis dos policiais fariam cócegas em sua nova epiderme, invulnerável, musculosa, peluda e sobrenatural. A vida dos homens estaria em grande perigo, sua chance de sobrevivência era quase nula. Depois que terminasse o que faria na ambulância, ele saltaria e correria pelas matas e serras. Não ia voltar para a cadeia. Iria ao encontro de Rafaela. Iria ao encontro da filha. Fitando os policiais armados, bendisse o maldito dom recém-adquirido. Conseguia sentir a lua surgindo no horizonte já escuro, erguendo-se majestosamente no céu e envolvendo a noite com seus braços de luz prateada. Robson começou a rir de modo enlouquecido e um dos policiais mandou que calasse a boca.
A risada de Robson tornou-se um grito causado pela dor insana que anunciava o princípio da transformação. Subitamente, para o espanto total dos presentes, um urro ferino escapou da garganta do prisioneiro. Antes que Robson perdesse definitivamente o domínio sobre sua racionalidade e se entregasse à conversão monstruosa, lembrou-se das proféticas palavras de Dona Célia em seu leito de enfermidade:
- “Toda vez que a lua cheia se levanta no céu, a Besta caminha sobre a terra.”

Fim

Danilo Alex da Silva


 “Ela não deveria trancar a porta
(Fuja! Fuja! Fuja!)
Lua cheia está no céu e ele não é mais um homem.
Ela vê a mudança nele, mas não pode
(Fugir! Fugir! Fugir)
Vê o que surge de seu homem querido
Lua cheia.”

 (Full Moon – Sonata Arctica)