Apontaram
as armas para o monstro que tentava invadir a casa pelo alto, e aguardaram com
os dedos em prontidão, tocando os gatilhos. Robson engoliu em seco e se
preparou para o pior. Seu coração martelava rápido no peito, bombeando com
urgência. Sangue e adrenalina viajavam rápido através das veias, irrigando cada
célula, cada vaso do corpo do ex-detento. Como é normal em momentos decisivos
como esse, a vida do homem passa diante de seus olhos, como cenas de um filme
marcante. Um nome surge em sua mente alerta. É um nome de mulher. Rafaela.
Junto
com a lembrança do nome, o rosto amado surge em sua mente. Rafaela só podia ser
a mulher da sua vida. Iam se casar. Justamente quando descobriram que ela
estava grávida, Robson perdera o emprego. Durante semanas levantou de madrugada
todos os dias e tentou arranjar outro serviço. Distribuiu currículos para Deus
e o mundo. Pediu aos amigos que o indicassem a seus patrões, já que ele ia ser
em breve pai de família e precisava muito trabalhar. Tudo em vão. O telefone
nunca tocou. A sorte não bateu em sua porta, mas a fome sim. E com ela, veio o
desespero.
Dificilmente
haverá maior humilhação para um homem do que ver a mulher grávida passando
necessidade. Sentia-se o pior dos indivíduos já que não podia fazer nada para
resolver isso. Robson então tentou um empréstimo com os amigos, mas todos
estavam em condições tão complicadas quanto ele. Procurou o banco para saber se
conseguia crédito. Não obteve. As portas se fechavam desdenhosamente diante do
seu nariz, arremessando-o na lama viscosa da aflição, nas raias da loucura. Foi
então que o primo Marcondes apareceu com uma proposta irrecusável.
Primo
Marcondes quis saber se Robson era habilitado para conduzir caminhões pequenos.
Era. Propôs um serviço fácil e rápido, com retorno financeiro satisfatório
garantido. Só precisava fazer algumas entregas. Dinheiro fácil. Serviço tranqüilo.
Robson pedira a ajuda divina e, antes que pudesse receber a resposta, o Diabo
já se adiantara, estendendo a mão. Grana alta e sem complicação. Os riscos eram
mínimos. Foi o que o primo lhe assegurara. Robson sempre fora um homem honesto,
todavia, a situação não lhe deixava escolhas. Que atirasse a primeira pedra
quem nunca tropeçou na vida. O homem mais idôneo acaba vendendo a alma se a
circunstância exigir. Robson aceitou a função com uma única condição: que
Rafaela jamais soubesse realmente em que tipo de trabalho ele estava metido.
-
Claro, primo! A sua pombinha não precisa saber dos negócios. Inventaremos uma
desculpa, ela vai acreditar, fique tranqüilo. – dissera o primo Marcondes com
um sorriso luminoso e uma piscadela cúmplice.
Aquele
maldito...
Durante
algum tempo foi possível esconder tudo dos olhos de Rafaela, justificar a
chegada aparentemente milagrosa de tanto dinheiro. Para todos os efeitos, ele
estava trabalhando numa empresa transportadora registrada. Primo Marcondes não
foi mencionado como contratante. Tampouco a carga a ser conduzida. Como se pode
imaginar, não foi possível sustentar essa situação por muito tempo.
Lembranças
dolorosas confusas, surgindo aleatoriamente como flashes. Robson conduzindo o
caminhão pela rodovia interestadual. Uma blitz de rotina numa manhã de sol. O
policial rodoviário no meio da pista, fazendo sinal para que o jovem encostasse
o veículo. A carga sendo minuciosamente examinada. Gritos. Vozes exaltadas. Ordens
ríspidas e armas saindo velozmente de coldres. Robson empurrado contra o capô
de uma viatura e passando por revista. O frio metálico das algemas atando suas
mãos atrás das costas.
Tristeza
da família. Nada doeu mais do que o olhar de Rafaela quando a jovem foi
visitá-lo no presídio provisório. Ela usava um vestido florido e segurava a
barriga que já começava a aparecer. Seus olhos estavam irritados. Vermelhos.
Vertiam lágrimas de decepção.
-
Me perdoe! – implorava Robson em desespero – Rafa, me perdoe, por favor! Eu não
machuquei ninguém! Juro por Deus!
Ela
se levantou sem dizer palavra, virou-se e saiu.
Robson
acusado de tráfico de drogas. Sentenciado à prisão. Recursos negados pelo juiz.
Primo Marcondes livre como um pássaro e Robson na cadeia, rejeitado pela mulher,
sem poder ver a filha nascendo e crescendo. Bode expiatório. Transferido para
uma penitenciária. Conhecendo Durval, Amós, Joel e Waldir. Um plano se formando
em sua cabeça.
E
agora estava ali. Tudo o que mais queria era poder voltar para casa, lutar pelo
perdão da esposa e segurar a filha no colo. Enquanto ele se recordava de tudo,
as pessoas ao seu redor se angustiavam. A besta roia o telhado obstinada e
nervosamente. Já podia passar a cabeçorra pelo vão que se abrira. Marcos soltando
um grito e disparando a velha e pesada espingarda de caça. Sangue pingando do
teto enquanto o uivo assustador atormentava a todos. Juliana encolhida a um
canto com a criança chorando incessantemente em seu colo. Henrique imóvel
devido ao terror. A velha resmungando algo, apavorada.
Subitamente
uma forma imensa, musculosa e peluda despencou do teto e pousou poderosamente
no centro da sala. Marcos tentou golpeá-la com a coronha da arma. Porém, a fera
se adiantou: balançando a pata enorme e forte, atingiu o peito do homem,
lançando-o ao outro lado da sala. O
monstro então, erguido nas patas traseiras, caminhou quase igual a um ser
humano. Aproximava-se de Juliana e do bebê.
Robson
interpôs-se entre o bicho e as suas vítimas certas. Enquanto ele estivesse ali,
respirando, vovô lobisomem nenhum comeria o próprio neto.
-
Ei grandão, você aí! – berrou Robson destemidamente – Por que não procura
alguém do seu tamanho? Se quiser um bife, é só vir buscar!
Os
olhos amarelos e injetados da criatura se fixaram no rapaz enquanto o monstro
emitia um rosnado crescente e ameaçador. Então, estando diante do inimigo,
Robson pode enxergá-lo plenamente, pela primeira vez. Robson era um homem alto; media quase dois
metros de altura e, mesmo assim, sentiu-se pequeno perante o monstro, que
aparentava ter quase três metros. O corpo, inteiramente coberto de longos pelos
negros e luzidios, era incrivelmente musculoso. Os pelos estavam manchados de
vermelho, em parte devido às pessoas que ele devorara, e em parte devido os
ferimentos que as armas dos homens causaram em sua pele monstruosa. Uma
perfeita e indestrutível máquina de matar gerada no inferno.
Sustinha-se soberbamente sobre duas grossas
patas traseiras, sobre as quais estava em pé naquele momento e se locomovia
pesadamente, como um urso. Os braços, peludos, musculosos, estavam separados; suas
mãos descomunais exibiam unhas longas e curvas, como se fossem garras de uma
ave de rapina. Garras capazes de destroçar a carne com facilidade e partir
ossos como se fossem gravetos. Garras que decapitariam um ser humano num pisca
de olhos.
Sobre
o pescoço taurino, largo e poderoso havia uma cabeça imensa de cão. Orelhas
curtas e pontudas que se achavam erguidas, em sinal de alerta. Um focinho forte
e peludo. Olhos selvagens e amarelos, dos quais escapava um brilho brutal. Da
bocarra escancarada pendia um espesso fio se saliva. Os dentes expostos,
pontudos e colossais, ainda estavam tintos devido o sangue dos amigos de
Robson. Havia, inclusive, alguns fiapos de roupas enganchados entre as presas. Irado,
Robson franziu a sobrancelha, apontou as armas e começou a puxar o gatilho.
A
fera saltou imediatamente sobre ele e os dois rolaram pelo assoalho,
engalfinhados numa luta mortal e inacreditável. A luz bruxuleante das velas e
lampiões alcançava os combatentes, desenhando de modo agigantado suas figuras
contra a velha parede. Refletida nas sombras, a inenarrável luta adquiria
proporções ainda mais titânicas. Obviamente Robson
estava em desvantagem. Quem poderia se desvencilhar do abraço letal daquele lobo colossal? Sentia o peso do monstro sobre si quando caiu de costas. As patas do lobo pousaram sobre seu peito, prensando-o contra o chão e seu inimigo. Tentou
se erguer, mas não conseguiu: era como estar soterrado por uma montanha de
concreto. O hálito bestial do bicho soprando vigorosamente em seu rosto. A morte tão
próxima, inevitável.
Será
que Rafaela o perdoaria algum dia?
O homem lobo enlouquecido desferindo mordidas no ar, quase rente ao seu pescoço,
chocando os dentes colossais. Tinha-se a impressão de que a cabeça de um humano
caberia inteiramente naquela bocarra infernal e animalesca. Na luta, Robson
perdeu um dos revólveres. Determinado, com a coronha do revólver restante, o
rapaz começou a golpear repetidamente a cabeça do horrendo ser sobre si,
rosnando entre dentes de modo raivoso:
-
Ele é seu neto, seu filho da mãe! Sei que você está aí em algum lugar debaixo
dessa carcaça peluda. Pode me ouvir? Você precisa pensar! Pense, retome o
controle! Vai acabar devorando seu netinho. É o que quer, seu palhaço com cara
de cão?
Mas
o monstro parecia surdo, insensível. Continuava atacando. Quando mais Robson o
espancava, mais furioso o bicho ficava. Não dava o menor sinal de compreender o
que o homem tentava lhe dizer. O lobisomem arreganhou os dentes e preparou-se
para a próxima mordida. Robson percebeu que não havia escapatória. Pensou em
sua filhinha.
Será
que ela saberia quem ele era? Será que ela já sabia dizer “papai”?
A Besta Fera avançou com a boca imensa e mordeu vigorosamente. Um grito rouco escapou da
garganta de Robson. Seu sangue quente, vermelho e vivo respingou no velho
assoalho de madeira da rústica casa rural.
Continua...
Danilo Alex da Silva
“Tudo
vai desmoronar essa noite, a lua cheia está aqui de novo
Na
saúde e na doença, compreendendo e exigindo
Não
tem nome, há uma para cada estação
O
deixa insano para saber”
(Full
Moon – Sonata Arctica)
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