sexta-feira, 15 de junho de 2012

A Noite da Besta - Parte 4




Apontaram as armas para o monstro que tentava invadir a casa pelo alto, e aguardaram com os dedos em prontidão, tocando os gatilhos. Robson engoliu em seco e se preparou para o pior. Seu coração martelava rápido no peito, bombeando com urgência. Sangue e adrenalina viajavam rápido através das veias, irrigando cada célula, cada vaso do corpo do ex-detento. Como é normal em momentos decisivos como esse, a vida do homem passa diante de seus olhos, como cenas de um filme marcante. Um nome surge em sua mente alerta. É um nome de mulher. Rafaela.
Junto com a lembrança do nome, o rosto amado surge em sua mente. Rafaela só podia ser a mulher da sua vida. Iam se casar. Justamente quando descobriram que ela estava grávida, Robson perdera o emprego. Durante semanas levantou de madrugada todos os dias e tentou arranjar outro serviço. Distribuiu currículos para Deus e o mundo. Pediu aos amigos que o indicassem a seus patrões, já que ele ia ser em breve pai de família e precisava muito trabalhar. Tudo em vão. O telefone nunca tocou. A sorte não bateu em sua porta, mas a fome sim. E com ela, veio o desespero.
Dificilmente haverá maior humilhação para um homem do que ver a mulher grávida passando necessidade. Sentia-se o pior dos indivíduos já que não podia fazer nada para resolver isso. Robson então tentou um empréstimo com os amigos, mas todos estavam em condições tão complicadas quanto ele. Procurou o banco para saber se conseguia crédito. Não obteve. As portas se fechavam desdenhosamente diante do seu nariz, arremessando-o na lama viscosa da aflição, nas raias da loucura. Foi então que o primo Marcondes apareceu com uma proposta irrecusável.
Primo Marcondes quis saber se Robson era habilitado para conduzir caminhões pequenos. Era. Propôs um serviço fácil e rápido, com retorno financeiro satisfatório garantido. Só precisava fazer algumas entregas. Dinheiro fácil. Serviço tranqüilo. Robson pedira a ajuda divina e, antes que pudesse receber a resposta, o Diabo já se adiantara, estendendo a mão. Grana alta e sem complicação. Os riscos eram mínimos. Foi o que o primo lhe assegurara. Robson sempre fora um homem honesto, todavia, a situação não lhe deixava escolhas. Que atirasse a primeira pedra quem nunca tropeçou na vida. O homem mais idôneo acaba vendendo a alma se a circunstância exigir. Robson aceitou a função com uma única condição: que Rafaela jamais soubesse realmente em que tipo de trabalho ele estava metido.
- Claro, primo! A sua pombinha não precisa saber dos negócios. Inventaremos uma desculpa, ela vai acreditar, fique tranqüilo. – dissera o primo Marcondes com um sorriso luminoso e uma piscadela cúmplice.
Aquele maldito...
Durante algum tempo foi possível esconder tudo dos olhos de Rafaela, justificar a chegada aparentemente milagrosa de tanto dinheiro. Para todos os efeitos, ele estava trabalhando numa empresa transportadora registrada. Primo Marcondes não foi mencionado como contratante. Tampouco a carga a ser conduzida. Como se pode imaginar, não foi possível sustentar essa situação por muito tempo.
Lembranças dolorosas confusas, surgindo aleatoriamente como flashes. Robson conduzindo o caminhão pela rodovia interestadual. Uma blitz de rotina numa manhã de sol. O policial rodoviário no meio da pista, fazendo sinal para que o jovem encostasse o veículo. A carga sendo minuciosamente examinada. Gritos. Vozes exaltadas. Ordens ríspidas e armas saindo velozmente de coldres. Robson empurrado contra o capô de uma viatura e passando por revista. O frio metálico das algemas atando suas mãos atrás das costas.
Tristeza da família. Nada doeu mais do que o olhar de Rafaela quando a jovem foi visitá-lo no presídio provisório. Ela usava um vestido florido e segurava a barriga que já começava a aparecer. Seus olhos estavam irritados. Vermelhos. Vertiam lágrimas de decepção.
- Me perdoe! – implorava Robson em desespero – Rafa, me perdoe, por favor! Eu não machuquei ninguém! Juro por Deus!
Ela se levantou sem dizer palavra, virou-se e saiu.
Robson acusado de tráfico de drogas. Sentenciado à prisão. Recursos negados pelo juiz. Primo Marcondes livre como um pássaro e Robson na cadeia, rejeitado pela mulher, sem poder ver a filha nascendo e crescendo. Bode expiatório. Transferido para uma penitenciária. Conhecendo Durval, Amós, Joel e Waldir. Um plano se formando em sua cabeça.
E agora estava ali. Tudo o que mais queria era poder voltar para casa, lutar pelo perdão da esposa e segurar a filha no colo. Enquanto ele se recordava de tudo, as pessoas ao seu redor se angustiavam. A besta roia o telhado obstinada e nervosamente. Já podia passar a cabeçorra pelo vão que se abrira. Marcos soltando um grito e disparando a velha e pesada espingarda de caça. Sangue pingando do teto enquanto o uivo assustador atormentava a todos. Juliana encolhida a um canto com a criança chorando incessantemente em seu colo. Henrique imóvel devido ao terror. A velha resmungando algo, apavorada.
Subitamente uma forma imensa, musculosa e peluda despencou do teto e pousou poderosamente no centro da sala. Marcos tentou golpeá-la com a coronha da arma. Porém, a fera se adiantou: balançando a pata enorme e forte, atingiu o peito do homem, lançando-o ao outro lado da sala.  O monstro então, erguido nas patas traseiras, caminhou quase igual a um ser humano. Aproximava-se de Juliana e do bebê.
Robson interpôs-se entre o bicho e as suas vítimas certas. Enquanto ele estivesse ali, respirando, vovô lobisomem nenhum comeria o próprio neto.
- Ei grandão, você aí! – berrou Robson destemidamente – Por que não procura alguém do seu tamanho? Se quiser um bife, é só vir buscar!
Os olhos amarelos e injetados da criatura se fixaram no rapaz enquanto o monstro emitia um rosnado crescente e ameaçador. Então, estando diante do inimigo, Robson pode enxergá-lo plenamente, pela primeira vez.  Robson era um homem alto; media quase dois metros de altura e, mesmo assim, sentiu-se pequeno perante o monstro, que aparentava ter quase três metros. O corpo, inteiramente coberto de longos pelos negros e luzidios, era incrivelmente musculoso. Os pelos estavam manchados de vermelho, em parte devido às pessoas que ele devorara, e em parte devido os ferimentos que as armas dos homens causaram em sua pele monstruosa. Uma perfeita e indestrutível máquina de matar gerada no inferno.
 Sustinha-se soberbamente sobre duas grossas patas traseiras, sobre as quais estava em pé naquele momento e se locomovia pesadamente, como um urso. Os braços, peludos, musculosos, estavam separados; suas mãos descomunais exibiam unhas longas e curvas, como se fossem garras de uma ave de rapina. Garras capazes de destroçar a carne com facilidade e partir ossos como se fossem gravetos. Garras que decapitariam um ser humano num pisca de olhos.
Sobre o pescoço taurino, largo e poderoso havia uma cabeça imensa de cão. Orelhas curtas e pontudas que se achavam erguidas, em sinal de alerta. Um focinho forte e peludo. Olhos selvagens e amarelos, dos quais escapava um brilho brutal. Da bocarra escancarada pendia um espesso fio se saliva. Os dentes expostos, pontudos e colossais, ainda estavam tintos devido o sangue dos amigos de Robson. Havia, inclusive, alguns fiapos de roupas enganchados entre as presas. Irado, Robson franziu a sobrancelha, apontou as armas e começou a puxar o gatilho.
A fera saltou imediatamente sobre ele e os dois rolaram pelo assoalho, engalfinhados numa luta mortal e inacreditável. A luz bruxuleante das velas e lampiões alcançava os combatentes, desenhando de modo agigantado suas figuras contra a velha parede. Refletida nas sombras, a inenarrável luta adquiria proporções ainda mais titânicas.  Obviamente Robson estava em desvantagem. Quem poderia se desvencilhar do abraço letal daquele lobo colossal? Sentia o peso do monstro sobre si quando caiu de costas. As patas do lobo pousaram sobre seu peito, prensando-o contra o chão e seu inimigo. Tentou se erguer, mas não conseguiu: era como estar soterrado por uma montanha de concreto. O hálito bestial do bicho soprando vigorosamente em seu rosto. A morte tão próxima, inevitável.
Será que Rafaela o perdoaria algum dia?
O homem lobo enlouquecido desferindo mordidas no ar, quase rente ao seu pescoço, chocando os dentes colossais. Tinha-se a impressão de que a cabeça de um humano caberia inteiramente naquela bocarra infernal e animalesca. Na luta, Robson perdeu um dos revólveres. Determinado, com a coronha do revólver restante, o rapaz começou a golpear repetidamente a cabeça do horrendo ser sobre si, rosnando entre dentes de modo raivoso:
- Ele é seu neto, seu filho da mãe! Sei que você está aí em algum lugar debaixo dessa carcaça peluda. Pode me ouvir? Você precisa pensar! Pense, retome o controle! Vai acabar devorando seu netinho. É o que quer, seu palhaço com cara de cão?
Mas o monstro parecia surdo, insensível. Continuava atacando. Quando mais Robson o espancava, mais furioso o bicho ficava. Não dava o menor sinal de compreender o que o homem tentava lhe dizer. O lobisomem arreganhou os dentes e preparou-se para a próxima mordida. Robson percebeu que não havia escapatória. Pensou em sua filhinha.
Será que ela saberia quem ele era? Será que ela já sabia dizer “papai”?
A Besta Fera avançou com a boca imensa e mordeu vigorosamente. Um grito rouco escapou da garganta de Robson. Seu sangue quente, vermelho e vivo respingou no velho assoalho de madeira da rústica casa rural.

Continua...

Danilo Alex da Silva

“Tudo vai desmoronar essa noite, a lua cheia está aqui de novo
Na saúde e na doença, compreendendo e exigindo
Não tem nome, há uma para cada estação
O deixa insano para saber”

(Full Moon – Sonata Arctica)




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