terça-feira, 5 de junho de 2012

A Noite da Besta - Parte 2



- Não compreendo – falou Robson, confuso.
- É uma antiga história da nossa família – começou repentinamente a moça com o bebê no colo.
- Juliana, eu não acho que...
- Eles tem o direito de saber, Marcos – falou Juliana resolutamente, interrompendo o marido – Se estão aqui conosco justo essa noite, precisam conhecer nosso segredo e se preparar para os perigos que todos aqui corremos.
- Besteira! – bradou Waldir com uma risada de escárnio.
- Cale-se, que eu quero ouvir o que ela tem a dizer. – sibilou Robson, sério, antes de se voltar para sua bela e jovem interlocutora – Continue o que estava dizendo, por favor, Juliana.
- Aconteceu há pouco mais de cem anos. Nossa família sempre foi composta por lavradores. Era a época do coronelismo, e a disputas pelas terras se mostrava cada vez mais violenta. Valia de tudo. Uma verdadeira guerra. Nossos antepassados, que viveram bem aqui, nessa mesma fazenda, indispuseram-se com a família de um agricultor vizinho, um homem muito cruel e inescrupuloso. O mais comum nessas situações era o vizinho contratar os chamados jagunços, mercenários armados, para dar cabo de seu desafeto. Mas esse homem... ele fez uma coisa muito pior. Sua família era envolvida com magia negra, e sua esposa era uma espécie de bruxa. Ela arranjou uma mandinga para o meu antepassado. Amaldiçoou-o, assim como todos os descendentes masculinos de minha família. Em noite de lua cheia, eles se transformariam em um bicho metade homem, metade lobo, que correria pela mata, assombrando quem tivesse o azar de cruzar com ele.
- E quem é o amaldiçoado atual? – indagou Robson, embora já imaginasse a resposta.
- Meu pai. – respondeu inesperadamente o garotinho, dando a entender que era irmão da moça. A voz do menino soou muito triste.
- Sinto muito – disse Durval com sinceridade, e indagou – É o pai de vocês quem está lá fora agora, na mata escura, nos vigiando a todos?
Juliana e seu pequeno irmão acenaram afirmativamente com as cabeças. Joel, que  estudava a escuridão exterior através de uma fresta na janela, voltou-se para Robson visivelmente assustado:
- Ei, chefe! Acabei de ver uma coisa muito estranha ali fora. Olhos amarelos brilhando nas sombras. Depois, um vulto passou correndo. Parecia um cachorro grande e preto, sabe? Mas andava em pé, como se fosse um urso, só que muito mais ágil e veloz.
Mal Joel acabou de falar, os cães que vigiavam a fazenda, e estavam trancados no celeiro para não ser destroçados pela fera, começaram a ganir e a uivar, apavorados. Contrastando com a barulheira dos cachorros, um rosnado alto e feroz se fez ouvir, sendo sucedido por um uivo vigoroso e aterrador que, flutuando noite adentro, feriu os ouvidos de quem tinha a infelicidade de escutá-lo.
- Temos de sair daqui o quanto antes. – rosnou Waldir em tom de comando, passando por cima da autoridade de Robson; não por ousadia, mas movido pelo pânico infinito que tomou seu coração.
Diante do espanto silencioso de seu chefe, Waldir voltou-se para os donos da casa:
- Onde estão as chaves do caminhão? Estou indo embora agora; não fugi da cadeia para virar papinha de lobisomem aqui no meio do nada. Quem me acompanha?
- Waldir, quem nomeou você como chefe? – a voz de Robson saiu rouca e perigosamente baixa.
- Ninguém. Não mando em nada, a não ser em minha vida, e em ninguém, a não ser em mim mesmo. Por isso, estou partindo, já que não quero morrer devorado por um monstro que, até ontem, eu duvidava que existisse. Alguém vem comigo?
- Não podem sair! – murmurou Marcos, muito pálido – Aquela coisa está lá fora, faminta, rondando a casa. Se tentarem fugir, não conseguirão chegar ao caminhão. Ele é muito rápido.
- Temos que tentar. – interveio Joel decididamente, enquanto se colocava ao lado de Waldir – Se alcançarmos o veículo, teremos uma chance. Prefiro lutar para escapar; é melhor que esperar até que a fera se canse, entre aqui e nos faça de aperitivo.  Não, obrigado. Vou com Waldir, vamos cair fora daqui.
- Não vão levar o caminhão e me deixar para trás, seus safados! – rugiu Robson indignado, erguendo a arma.
- Não faça isso. – bradou Amós friamente enquanto, apontando a arma para o rosto do chefe, passava para o lado de Joel e Waldir. – Não me obrigue a puxar o gatilho. Posso ter muitos defeitos, mas ingratidão não é um deles. Você nos tirou da cadeia, não quero ter de atirar, não desejo feri-lo. Precisa decidir: ou vem conosco no caminhão, ou nos deixa partir em paz. Derramamento gratuito de sangue não é uma opção, já que estamos todos no mesmo barco.
Após alguns segundos de hesitação, Robson abaixou o revólver devagar, sem tirar os olhos dos companheiros, falando:
- Está bem. Não haverá tiroteio aqui, essas pessoas são inocentes e entre nós temos um bebê de colo. Se querem ir, vão. Eu fico, pois prefiro escutar os moradores. Eles conhecem a besta fera lá fora bem melhor do que nós.
- Vocês não deviam ir, por favor, não sejam tão... – começou a resmungar Durval, mas foi interrompido pela voz grave e autoritária de Waldir.
- Cale-se. Fiquei aí então, mas não nos amole. Estamos armados, e lobisomem nenhum vai nos impedir de entrar naquele caminhão. Senhora Juliana, senhor Marcos, deem-nos as chaves, por favor.
- Isso é loucura... – murmurou a velha lá de seu leito.
As chaves do veículo foram colocadas na mão de Waldir assim que os donos da casa explicaram onde estava estacionado o veículo, a aproximadamente vinte e cinco metros da residência. Em seguida, acompanhado por Joel e Amós, Waldir empurrou o pesado móvel que bloqueava a porta, engatilhou seu revólver e ganhou a noite, seguido de perto pelos companheiros. Não olharam para trás uma vez sequer, nem mesmo quando o pessoal da casa fechou a porta e a bloqueou novamente arrastando para junto dela o pesado móvel de madeira.
Mal os três homens saíram, o pessoal do interior da casa escutou um rugido capaz de fazer estremecer a mata escura. Lá fora, ecoavam os passos pesados do trio de fugitivos correndo em direção ao caminhão. Subitamente a noite bucólica encheu-se de medo, tendo em seu âmago uma sinfonia horrenda de sangue, dor, e morte. Com o coração apertado, Robson tentava ver o que se passava pela fresta da janela, mas foi pouca coisa o que conseguiu enxergar. Revólveres rugiam, cuspindo chumbo, suas línguas de fogo rasgando a escuridão assassina que teimava em envolver os três homens com seus tentáculos obscuros e mortais.
Angustiado, Robson ouvia os tiros e os gritos aterrorizados de seus amigos lá fora, envoltos pela escuridão, cercados pela mata deserta, observados do alto pelo esbugalhado olho prateado e místico da lua cheia, grande responsável por todo aquele pesadelo. O líder dos fugitivos pensou em sair, tentar socorrer os companheiros. Chegou mesmo a engatilhar o revólver, mas a mão de Durval, pousando em seu ombro sutilmente o deteve. Com um olhar de censura, o companheiro remanescente alertou em voz baixa, quase inaudível:
- Se sair, você também morrerá. Eles fizeram sua escolha; agora estão arcando com as conseqüências.
Compreendendo que o amigo tinha razão, Robson se conformou, encerrando-se em um silêncio doloroso. Podia-se ver o luto no fundo de seus olhos negros.
Dentro da casa, a tensão reinava. O garotinho agarrava firmemente a mão trêmula e enrugada da velha deitada, enferma. Marcos abraçava a mulher, que segurava o bebê. E Robson e Durval trocavam um olhar pesaroso, significativo. Do lado de fora, vinham os sons infernais, que chocavam os sobreviventes dentro da casa e trazia lágrimas aos seus olhos.
Primeiro eram os tiros e os gritos de horror. A seguir, os tiros cessaram e o som de passos apressados, desesperados pareceu vir dos lados da casa, acompanhado pelo galopar pesado de patas imensas e peludas. Uma respiração animalesca e arfante de algo que caçava os três fugitivos implacavelmente. Gritos de ódio, dor e morte enchiam a noite, que deveria ser pacífica na zona rural. Enquanto os homens gritavam em desespero, a fera urrava de modo estarrecedor, e o urro ia aumentando gradativamente, ao mesmo tempo em que os gritos de dor e morte começavam a perder intensidade, e o silêncio dos mortos se apoderava do lugar. Um rugido sinistro vibrava no ar frio noturno, dando a impressão de que havia um leão faminto bem ao lado da casa. Em seguida, o rugido foi substituído pelo som nauseante de mastigação, como se ossos estalassem ao ser triturados por mandíbulas colossais e dentes poderosos.
 Os três fugitivos já não gritavam, talvez porque não possuíssem mais cordas vocais, talvez porque suas gargantas dilaceradas por garras imensas e afiadas obstruíssem a passagem do ar e do som. Talvez não mais gritassem porque estavam engasgados nos próprio sangue, ou porque a vida há muito abandonara seus corpos, agora provavelmente irreconhecíveis.
E no meio daquele banquete de morte, Robson o viu, pela fresta da janela, banhado pelo luar e pelo brilho das estrelas. Um monstro enorme e musculoso, com o corpo coberto de pelos, debruçado sobre os cadáveres de seus amigos. A criatura ergueu a cabeça descomunal subitamente e, apontando seu focinho lambuzado de sangue quente para o alto, homenageou a lua cheia com mais um de seus uivos insanos e sobrenaturais. Aquele uivo faria tremer o próprio inferno em chamas. Diante de tal fúria primitiva, e perante aqueles olhos profundamente amarelos, morbidamente bestiais, que vasculhavam a escuridão silenciosamente vigilantes, os próprios demônios fugiriam em disparada.


Continua...

Danilo Alex da Silva

"Na névoa da manhã, ele não pode mais lutar
Por mil luas ou mais, ele vem uivando
Bate na porta, e um grito que logo acabará
Bagunça no chão de novo..."

(Full Moon – Sonata Arctica)


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