segunda-feira, 11 de junho de 2012

A Noite da Besta - Parte 3


Passando as mãos pela testa encharcada de suor, Robson voltou-se para ver se a família estava bem. Todos se encontravam em segurança, e o fitavam de olhos arregalados. Durval tinha os olhos esbugalhados e sua boca se movia espasmodicamente de um modo grotesco, como se ele tentasse dizer algo, mas não fosse capaz de emitir som. Mas ele não precisava falar nada, o horror estava claramente impresso em seu olhar. Então, no momento seguinte, quando Robson se voltou para espiar pela fresta da janela, um susto cortou-lhe brevemente a respiração.
A besta fera tinha desaparecido. Não estava mais no mesmo local, mastigando os cadáveres dos três ex-presidiários. Ela tinha evanescido na noite, se mesclado às sombras. Em algum ponto na mata, o monstro se ocultara. Provavelmente estava farejando o ar naquele instante, demoradamente degustando, com seus aguçados sentidos selvagens, o medo que os humanos refugiados na casa exalavam naquele instante.
 O medo proporcionava um sabor melhor à carne. Constituía o tempero perfeito para uma máquina de matar sobrenatural como ele. Era bom ser o caçador. Divertia-se cercando a presa. Ninguém no mundo poderia fugir de suas garras, ninguém poderia correr pelos campos de maneira tão veloz como ele. Era o senhor da matas em noites como aquela. Os bichos mais ferozes que habitavam aquela região simplesmente fugiam aterrorizados quando o uivo do homem-lobo se erguia na noite, na tentativa de acariciar a lua cheia, doadora de sua dádiva assassina. Quando ele decidisse entrar na casa, não haveria como impedi-lo. Seus olhos, maléficos e amarelos, reluziam como diamantes na escuridão, banhados pela luz prateada da lua.
No interior da moradia, Robson, inquieto, se movia de um lado para outro, impaciente como uma fera enjaulada. Lobisomens! Se soubesse que essas coisas existiam de fato, teria prestado mais atenção aos filmes de terror que assistia quando criança. Ao pensar nisso, lembrou-se de algo a respeito dos lobisomens, não sabendo ao certo se obtivera aquela informação por meio de algum livro, ou se ouvira algo similar nas lendas de sua cidade. Ostentando um brilho de interesse enigmático em seus olhos profundamente vivos e negros, Robson fitou primeiro o garotinho, e depois mirou Juliana. Com suas feições imaculadamente sérias, inquiriu:
- Como se chama seu irmãozinho?
- Henrique.
- Henrique? Nome bonito. Quando criança, meu melhor amigo se chamava Henrique. Era como um irmão para mim. – disse o homem sorrindo. A seguir, com um sorriso simpático nos lábios, Robson agachou-se diante do garotinho e perguntou com ar de fingida despreocupação:
- Henrique, quantos anos você tem?
- Tenho doze. – disse o menino sorrindo, e rapidamente completou com um ar afobado e juvenil – Mas vou completar treze anos mês que vem. Meu pai diz que já não sou um garotinho.
- E ele está certo. Você é um rapaz. Logo será um homem. – disse Robson gentilmente e completou para si, tristemente, em pensamento – “Logo será um homem, que em noites iguais a essa, se tornará meio lobo e correrá pela mata escura, uivando para a lua cheia e devorando os amigos dos outros, exatamente como seu pai.”
Robson sentiu grande tristeza ao pensar nisso enquanto olhava para o rapaz diante de si. Pelo que ele sabia, um jovem portador daquela maldição hereditária, ao atingir treze anos, se tornaria um lobisomem assim que a lua cheia se erguesse no céu escuro, prenunciando tragédias e matanças, bem como derramamento de sangue inocente, tão inocente quanto o próprio Henrique o era. Afinal de contas, que culpa o pobre menino tinha de ter nascido no seio de uma família amaldiçoada, cuja sina dos descendentes masculinos era, ao completar treze anos de idade, se converter sob os raios da lua cheia em uma besta sanguinária e irracional, que espalharia medo e horror sobre a Terra, ameaçando inclusive a vida da própria família?
Tão logo o jovem Henrique fizesse aniversário, já não seria um, mas dois lobisomens a aterrorizar aquela família toda vez que a lua cheia surgisse. Robson observou demoradamente as pessoas e seu coração, embora embrutecido pelas vezes que fora maltratado pela vida, apiedou-se profundamente daquela gente simples, perseguida através das décadas por uma maldição, fruto da infinita maldade alheia.
Viu-se arrancado desses devaneios quando ouviram pisadas fortes e rápidas ao redor da casa. Uma sombra monstruosa, denunciada pela claridade emanada das velas, lamparinas e lampiões, passou velozmente pela janela protegida por tábuas de madeira. Uma respiração arfante e rápida, semelhante à de um cão, foi ouvida por todos na casa. Em seguida, um rosnar baixo de fera se preparando para o ataque cortou o quase absoluto silêncio noturno. Apreensivos, Durval e Robson engatilharam os revólveres e os apontaram para a janela.
O estalido seco e mortal das armas sendo preparadas para cuspir chumbo ao menor sinal de perigo pareceu afugentar momentaneamente a besta fera, que se afastou correndo agilmente para longe da casa. Pouco depois, ouviram o cacarejar assustado de galinhas e o grunhido estridente de porcos assustados.
- Ele foi para perto dos pés de manga, sob o qual foram construídos o galinheiro e o chiqueiro. – sussurrou Marcos, esposo de Juliana, e pai do garotinho que ela segurava nos braços.
Ouvindo isso, sorrateiramente Durval se aproximou da janela, vendo se conseguia localizar o bicho. Enquanto as galinhas e os porcos promoviam estardalhaço com sua sinfonia de pavor, era difícil ouvir o lobisomem se movendo. Era complicado saber o que a ardilosa fera faria em seguida. De todos que, angustiados, vivenciavam aquele momento, Robson foi o único que teve tempo de imaginar o que aconteceria. Viu quando uma sombra riscou a luminosidade e desapareceu, como se algo se detivesse diante da janela. Era preciso estar prestando muita atenção, pois o movimento da sombra foi velocíssimo, quase tão imperceptível quanto o tremeluzir de uma vela. Tudo parecia acontecer em câmera lenta. Robson sentia os membros pesados, e o coração falhar uma batida dentro do peito. Seus olhos se arregalavam, enquanto ele gesticulava nervosamente para o amigo. Tinha compreendido a manobra do monstro. Berrou em pânico:
- Durval, saia daí já! Afaste-se da jan...
Não pode concluir a frase. Seu aviso foi tardio por questão de segundos. O som explosivo da janela se arrebentando encobriu sua voz. Lascas de madeira e cacos de vidros choveram sobre todos, obrigando-os a se proteger como podiam. Aterrado, Durval voltou-se empunhando a arma, sem, porém, conseguir esboçar qualquer tipo de reação. Um focinho negro e enorme entrou pela janela destruída e uma bocarra infernal, repleta de dentes enormes, amarelos e afiados, se fechou sobre o ombro do pobre ex-presidiário. O homem gritou desesperadamente e, num espasmo de dor, disparou a arma, mas sua bala cravou-se no teto. Sangue vermelho e vivo manchou o assoalho de madeira. Juliana tentava acalmar o bebê, que assustado, chorava aos berros. A velha na cama murmurava uma prece. Henrique chorava baixinho, encolhido a um canto.
- Nããããããããããããããão!!!!!! – gritou Robson furioso, disparando seguidamente seu revólver contra o monstro que atacava o único amigo que lhe restava.
A primeira bala acertou entre os olhos da fera, que grunhiu de dor e estremeceu violentamente, mas não soltou Durval. Continuou exercendo pressão com os dentes cravados dolorosamente no ombro ensangüentado e esfacelado de sua presa. Durval estava pálido, parecia prestes a desmaiar. Quando Robson prosseguiu acionando o gatilho, e novos projéteis ferroaram a carne sobrenatural do lobisomem, a horrenda criatura mais uma vez utilizou sua extrema velocidade sobrenatural para sair de cena. Tão rápido, que mal pode ser percebido pelos olhos de quem assistia à diabólica situação, o monstro afastou-se da janela ainda abocanhando o ombro do homem ferido. Durval foi arrebatado da vista dos presentes, puxado para fora pela janela a uma velocidade estonteante. Seu revólver caiu pesadamente no chão de madeira.
- Robson! Me ajude, por favor! Robsoooooooooon! – e seu grito se perdeu na noite, enquanto ele era carregado para longe pela besta fera, que rugia sedenta de carne e sangue.
Robson, sem se importar mais com o perigo, aproximou-se da abertura destruída da janela e atirou em direção à fera até que não restassem mais balas no tambor. Mesmo assim o monstro, que corria a uma velocidade medonha, chegou rapidamente à mata cerrada, onde se entranhou arrastando Durval. Gritos vigorosos se tornaram gemidos débeis, talvez pela distância, talvez porque Durval agora agonizasse.
- Meu Deus! – balbuciou Robson enquanto, com as mãos trêmulas, recarregava seu revólver. A seguir, abaixou-se e apanhou do chão a arma de Durval.
Não podia crer naquilo que acontecia. No começo daquela noite, ele e seus amigos fugiram da prisão onde estiveram confinados havia algum tempo. Agora, no meio da madrugada, ele era o único sobrevivente. Todos os outros foram mortos por um ser que saíra dos contos de fadas. E ele tinha certeza de que o bicho voltaria. Estava irado por haver sido ferido. Sim, o lobisomem voltaria para buscar Robson. Não deixaria barato os tiros que recebera. Seu ódio selvagem e sua força descomunal primitiva seriam o combustível para a vingança daquele pesadelo em forma de homem lobo.
Ajudado por Marcos e por Henrique, Robson empurrou um pesado guarda-roupas para frente da janela, a fim de bloquear a passagem que o monstro obtivera ao destroçar a mesma.
- Falta muito para o amanhecer? – quis saber Robson com ar cansado, enxugando o rosto suado com as costas das mãos. Transpirava tanto que a camiseta colava ao corpo, e uma mancha escura se formava sob sua axila.
Quando soube que faltavam menos de duas horas para o dia raiar, ele ficou relativamente aliviado. Suspirou e verificou mais uma vez a carga das armas. Empunhava um revólver em cada mão. Marcos foi buscar uma velha espingarda e passou a montar guarda juntamente com ele. Um silêncio suspeito e absoluto inundou a casa e carregou de apreensão o ar que os sobreviventes respiravam. Tudo quieto demais. Não podia ser coisa boa. A calmaria sempre precede a tempestade.
Menos de uma hora mais tarde, um ruído repentino fez com que todos estremecessem. Alguma coisa se movia com rapidez sobre o telhado. As telhas rangiam, denunciando a velocidade com que o intruso as percorria. Um rugido feroz deixou clara a identidade de quem estava sobre a casa.
O bebê acordou assustado com a barulheira e recomeçou o berreiro. Isso pareceu atiçar a besta fera que, no alto da casa, rugiu de novo, ainda mais alto. Juliana, em pânico, tentava fazer o bebê calar.
- Ele quer a criança! – gemeu a velha deitada.
- O seu filhinho é batizado? – indagou Robson esfregando os olhos cansados, enquanto empunhava as armas com firmeza.
- Ainda não. – respondeu Juliana num fio de voz. – Ele nasceu semana passada. Já tínhamos conversado com o padre para batizá-lo essa semana, antes da lua cheia, mas infelizmente o reverendo enfrentou alguns imprevistos e ainda não pode vir.
- Essa não – rosnou Robson apontando as armas para o teto, tentando descobrir onde a fera se achava.
Crianças não batizadas eram uma espécie de filé para lobisomem, o ex-presidiário sabia. Já ouvira dizer. Tinham um grande problema pela frente. Olhou significativamente para Marcos. Pisadas animalescas no telhado. Uma telha se partiu. Gritos de Juliana. Gritos da velha. Gritos de Henrique. Choro estridente de bebê. Rosnado, rugido e uivos da fera enlouquecida. Pelo buraco aberto no teto, dois olhos famintos, amarelos, lupinos e selvagens, espiavam diabolicamente o interior da residência. Uma pata imensa, coberta de pelos negros, munida de garras enormes afiadas pendeu ameaçadoramente do alto, como se tentasse alcançar a mãe o bebê apesar da distância que separava o telhado do chão de madeira.  
Robson olhou mais uma vez para Marcos, e viu que o homem, agarrado à velha espingarda, suava tanto ou mais do que ele.
- Chegou a hora, senhor Marcos. – disse Robson com voz rouca – Agora é tudo ou nada.

Continua...

Danilo Alex da Silva


“Uivando nas sombras
Vivendo em um feitiço lunar
Ele encontra seu paraíso
Vomitado da boca do inferno

Aqueles que a besta está procurando
Ouça em pavor e você vai ouvi-lo

Uivar para a Lua”

(Bark at the Moon – Ozzy Osbourne)


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