Passando
as mãos pela testa encharcada de suor, Robson voltou-se para ver se a família
estava bem. Todos se encontravam em segurança, e o fitavam de olhos
arregalados. Durval tinha os olhos esbugalhados e sua boca se movia
espasmodicamente de um modo grotesco, como se ele tentasse dizer algo, mas não
fosse capaz de emitir som. Mas ele não precisava falar nada, o horror estava
claramente impresso em seu olhar. Então, no momento seguinte, quando Robson se
voltou para espiar pela fresta da janela, um susto cortou-lhe brevemente a
respiração.
A
besta fera tinha desaparecido. Não estava mais no mesmo local, mastigando os
cadáveres dos três ex-presidiários. Ela tinha evanescido na noite, se mesclado
às sombras. Em algum ponto na mata, o monstro se ocultara. Provavelmente estava
farejando o ar naquele instante, demoradamente degustando, com seus aguçados
sentidos selvagens, o medo que os humanos refugiados na casa exalavam naquele
instante.
O medo proporcionava um sabor melhor à carne. Constituía
o tempero perfeito para uma máquina de matar sobrenatural como ele. Era bom ser
o caçador. Divertia-se cercando a presa. Ninguém no mundo poderia fugir de suas
garras, ninguém poderia correr pelos campos de maneira tão veloz como ele. Era
o senhor da matas em noites como aquela. Os bichos mais ferozes que habitavam
aquela região simplesmente fugiam aterrorizados quando o uivo do homem-lobo se
erguia na noite, na tentativa de acariciar a lua cheia, doadora de sua dádiva
assassina. Quando ele decidisse entrar na casa, não haveria como impedi-lo. Seus
olhos, maléficos e amarelos, reluziam como diamantes na escuridão, banhados
pela luz prateada da lua.
No
interior da moradia, Robson, inquieto, se movia de um lado para outro,
impaciente como uma fera enjaulada. Lobisomens! Se soubesse que essas coisas
existiam de fato, teria prestado mais atenção aos filmes de terror que assistia
quando criança. Ao pensar nisso, lembrou-se de algo a respeito dos lobisomens,
não sabendo ao certo se obtivera aquela informação por meio de algum livro, ou
se ouvira algo similar nas lendas de sua cidade. Ostentando um brilho de
interesse enigmático em seus olhos profundamente vivos e negros, Robson fitou
primeiro o garotinho, e depois mirou Juliana. Com suas feições imaculadamente
sérias, inquiriu:
-
Como se chama seu irmãozinho?
-
Henrique.
-
Henrique? Nome bonito. Quando criança, meu melhor amigo se chamava Henrique.
Era como um irmão para mim. – disse o homem sorrindo. A seguir, com um sorriso
simpático nos lábios, Robson agachou-se diante do garotinho e perguntou com ar
de fingida despreocupação:
-
Henrique, quantos anos você tem?
-
Tenho doze. – disse o menino sorrindo, e rapidamente completou com um ar
afobado e juvenil – Mas vou completar treze anos mês que vem. Meu pai diz que
já não sou um garotinho.
-
E ele está certo. Você é um rapaz. Logo será um homem. – disse Robson
gentilmente e completou para si, tristemente, em pensamento – “Logo será um homem,
que em noites iguais a essa, se tornará meio lobo e correrá pela mata escura,
uivando para a lua cheia e devorando os amigos dos outros, exatamente como seu
pai.”
Robson
sentiu grande tristeza ao pensar nisso enquanto olhava para o rapaz diante de
si. Pelo que ele sabia, um jovem portador daquela maldição hereditária, ao
atingir treze anos, se tornaria um lobisomem assim que a lua cheia se erguesse
no céu escuro, prenunciando tragédias e matanças, bem como derramamento de
sangue inocente, tão inocente quanto o próprio Henrique o era. Afinal de
contas, que culpa o pobre menino tinha de ter nascido no seio de uma família
amaldiçoada, cuja sina dos descendentes masculinos era, ao completar treze anos
de idade, se converter sob os raios da lua cheia em uma besta sanguinária e
irracional, que espalharia medo e horror sobre a Terra, ameaçando inclusive a
vida da própria família?
Tão
logo o jovem Henrique fizesse aniversário, já não seria um, mas dois lobisomens
a aterrorizar aquela família toda vez que a lua cheia surgisse. Robson observou
demoradamente as pessoas e seu coração, embora embrutecido pelas vezes que fora
maltratado pela vida, apiedou-se profundamente daquela gente simples,
perseguida através das décadas por uma maldição, fruto da infinita maldade
alheia.
Viu-se arrancado desses devaneios quando ouviram pisadas fortes e rápidas ao redor da
casa. Uma sombra monstruosa, denunciada pela claridade emanada das velas,
lamparinas e lampiões, passou velozmente pela janela protegida por tábuas de
madeira. Uma respiração arfante e rápida, semelhante à de um cão, foi
ouvida por todos na casa. Em seguida, um rosnar baixo de fera se preparando
para o ataque cortou o quase absoluto silêncio noturno. Apreensivos, Durval e
Robson engatilharam os revólveres e os apontaram para a janela.
O
estalido seco e mortal das armas sendo preparadas para cuspir chumbo ao menor
sinal de perigo pareceu afugentar momentaneamente a besta fera, que se afastou
correndo agilmente para longe da casa. Pouco depois, ouviram o cacarejar
assustado de galinhas e o grunhido estridente de porcos assustados.
-
Ele foi para perto dos pés de manga, sob o qual foram construídos o galinheiro
e o chiqueiro. – sussurrou Marcos, esposo de Juliana, e pai do garotinho que
ela segurava nos braços.
Ouvindo
isso, sorrateiramente Durval se aproximou da janela, vendo se conseguia
localizar o bicho. Enquanto as galinhas e os porcos promoviam estardalhaço com
sua sinfonia de pavor, era difícil ouvir o lobisomem se movendo. Era complicado
saber o que a ardilosa fera faria em seguida. De todos que, angustiados,
vivenciavam aquele momento, Robson foi o único que teve tempo de imaginar o que
aconteceria. Viu quando uma sombra riscou a luminosidade e desapareceu, como se
algo se detivesse diante da janela. Era preciso estar prestando muita atenção,
pois o movimento da sombra foi velocíssimo, quase tão imperceptível quanto o
tremeluzir de uma vela. Tudo parecia acontecer em câmera lenta. Robson sentia
os membros pesados, e o coração falhar uma batida dentro do peito. Seus olhos
se arregalavam, enquanto ele gesticulava nervosamente para o amigo. Tinha
compreendido a manobra do monstro. Berrou em pânico:
-
Durval, saia daí já! Afaste-se da jan...
Não
pode concluir a frase. Seu aviso foi tardio por questão de segundos. O som
explosivo da janela se arrebentando encobriu sua voz. Lascas de madeira e cacos
de vidros choveram sobre todos, obrigando-os a se proteger como podiam. Aterrado,
Durval voltou-se empunhando a arma, sem, porém, conseguir esboçar qualquer tipo
de reação. Um focinho negro e enorme entrou pela janela destruída e uma bocarra
infernal, repleta de dentes enormes, amarelos e afiados, se fechou sobre o
ombro do pobre ex-presidiário. O homem gritou desesperadamente e, num espasmo
de dor, disparou a arma, mas sua bala cravou-se no teto. Sangue vermelho e vivo
manchou o assoalho de madeira. Juliana tentava acalmar o bebê, que assustado, chorava
aos berros. A velha na cama murmurava uma prece. Henrique chorava baixinho,
encolhido a um canto.
-
Nããããããããããããããão!!!!!! – gritou Robson furioso, disparando seguidamente seu
revólver contra o monstro que atacava o único amigo que lhe restava.
A
primeira bala acertou entre os olhos da fera, que grunhiu de dor e estremeceu
violentamente, mas não soltou Durval. Continuou exercendo pressão com os dentes
cravados dolorosamente no ombro ensangüentado e esfacelado de sua presa. Durval
estava pálido, parecia prestes a desmaiar. Quando Robson prosseguiu acionando o
gatilho, e novos projéteis ferroaram a carne sobrenatural do lobisomem, a
horrenda criatura mais uma vez utilizou sua extrema velocidade sobrenatural
para sair de cena. Tão rápido, que mal pode ser percebido pelos olhos de quem
assistia à diabólica situação, o monstro afastou-se da janela ainda abocanhando
o ombro do homem ferido. Durval foi arrebatado da vista dos presentes, puxado
para fora pela janela a uma velocidade estonteante. Seu revólver caiu
pesadamente no chão de madeira.
-
Robson! Me ajude, por favor! Robsoooooooooon! – e seu grito se perdeu na noite,
enquanto ele era carregado para longe pela besta fera, que rugia sedenta de
carne e sangue.
Robson,
sem se importar mais com o perigo, aproximou-se da abertura destruída da janela
e atirou em direção à fera até que não restassem mais balas no tambor. Mesmo
assim o monstro, que corria a uma velocidade medonha, chegou rapidamente à mata
cerrada, onde se entranhou arrastando Durval. Gritos vigorosos se tornaram
gemidos débeis, talvez pela distância, talvez porque Durval agora agonizasse.
-
Meu Deus! – balbuciou Robson enquanto, com as mãos trêmulas, recarregava seu
revólver. A seguir, abaixou-se e apanhou do chão a arma de Durval.
Não
podia crer naquilo que acontecia. No começo daquela noite, ele e seus amigos
fugiram da prisão onde estiveram confinados havia algum tempo. Agora, no meio da
madrugada, ele era o único sobrevivente. Todos os outros foram mortos por um
ser que saíra dos contos de fadas. E ele tinha certeza de que o bicho voltaria.
Estava irado por haver sido ferido. Sim, o lobisomem voltaria para buscar Robson.
Não deixaria barato os tiros que recebera. Seu ódio selvagem e sua força descomunal
primitiva seriam o combustível para a vingança daquele pesadelo em forma de
homem lobo.
Ajudado
por Marcos e por Henrique, Robson empurrou um pesado guarda-roupas para frente
da janela, a fim de bloquear a passagem que o monstro obtivera ao destroçar a
mesma.
-
Falta muito para o amanhecer? – quis saber Robson com ar cansado, enxugando o
rosto suado com as costas das mãos. Transpirava tanto que a camiseta colava ao
corpo, e uma mancha escura se formava sob sua axila.
Quando
soube que faltavam menos de duas horas para o dia raiar, ele ficou
relativamente aliviado. Suspirou e verificou mais uma vez a carga das armas. Empunhava
um revólver em cada mão. Marcos foi buscar uma velha espingarda e passou a
montar guarda juntamente com ele. Um silêncio suspeito e absoluto inundou a
casa e carregou de apreensão o ar que os sobreviventes respiravam. Tudo quieto
demais. Não podia ser coisa boa. A calmaria sempre precede a tempestade.
Menos
de uma hora mais tarde, um ruído repentino fez com que todos estremecessem. Alguma
coisa se movia com rapidez sobre o telhado. As telhas rangiam, denunciando a
velocidade com que o intruso as percorria. Um rugido feroz deixou clara a
identidade de quem estava sobre a casa.
O
bebê acordou assustado com a barulheira e recomeçou o berreiro. Isso pareceu
atiçar a besta fera que, no alto da casa, rugiu de novo, ainda mais alto. Juliana,
em pânico, tentava fazer o bebê calar.
-
Ele quer a criança! – gemeu a velha deitada.
-
O seu filhinho é batizado? – indagou Robson esfregando os olhos cansados,
enquanto empunhava as armas com firmeza.
-
Ainda não. – respondeu Juliana num fio de voz. – Ele nasceu semana passada. Já tínhamos
conversado com o padre para batizá-lo essa semana, antes da lua cheia, mas
infelizmente o reverendo enfrentou alguns imprevistos e ainda não pode vir.
-
Essa não – rosnou Robson apontando as armas para o teto, tentando descobrir
onde a fera se achava.
Crianças
não batizadas eram uma espécie de filé para lobisomem, o ex-presidiário sabia. Já
ouvira dizer. Tinham um grande problema pela frente. Olhou significativamente
para Marcos. Pisadas animalescas no telhado. Uma telha se partiu. Gritos de
Juliana. Gritos da velha. Gritos de Henrique. Choro estridente de bebê. Rosnado,
rugido e uivos da fera enlouquecida. Pelo buraco aberto no teto, dois olhos
famintos, amarelos, lupinos e selvagens, espiavam diabolicamente o interior da residência. Uma pata imensa, coberta de pelos negros, munida de garras
enormes afiadas pendeu ameaçadoramente do alto, como se tentasse alcançar a mãe
o bebê apesar da distância que separava o telhado do chão de madeira.
Robson
olhou mais uma vez para Marcos, e viu que o homem, agarrado à velha espingarda,
suava tanto ou mais do que ele.
-
Chegou a hora, senhor Marcos. – disse Robson com voz rouca – Agora é tudo ou
nada.
Continua...
Danilo Alex da Silva
“Uivando nas sombras
Vivendo em um feitiço lunar
Ele encontra seu paraíso
Vomitado da boca do inferno
Aqueles que a besta está procurando
Ouça em pavor e você vai ouvi-lo
Uivar para a Lua”
(Bark at the Moon – Ozzy Osbourne)
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