sexta-feira, 29 de junho de 2012

A Arca de Pandora - Parte III



Obedecendo ao capitão, os corsários se prepararam para arremessar os ganchos. Todavia, algo realmente surpreendente ocorreu, adiando a abordagem por mais alguns minutos. No último instante, o Pandora guinou vivamente. Os marujos espanhóis demonstravam sua extrema habilidade ao manobrar os mastros. O galeão, antes aparentemente vulnerável, rapidamente girava sobre si, em um ângulo de 180 graus. Desse modo, em pouco tempo apresentava seus quarenta canhões de estibordo, ou seja, do lado direito, ao inimigo, prontos para disparar.
O comandante do Pandora ordenara essa manobra pois percebia que, se virasse o navio, podia disparar com as peças de artilharia desse lado, enquanto as do outro estivessem sendo rapidamente recarregadas.  Economizaria tempo e apanharia o adversário desprevenido. E tudo aconteceu de acordo com o planejado. Percebendo que a artilharia inimiga os esfacelaria, os barcos ingleses precisaram se separar para desviar-se às pressas da fuzilaria, abrindo mão do assalto por mais algum tempo.
O Ghost Bride e o Red Diamond foram capazes de escapar com agilidade do repentino contra ataque hispânico; para o Lady Storm, porém, aquilo foi o fim da batalha, o último prego no caixão. O canhonear infernal vindo do galeão varreu a água numa linha de destruição que apanhou em cheio o navio pirata inglês, o qual, navegando desfalcado pela perda de alguns mastros, se achava bem no meio da chuva de projéteis.
 Colhido pela tempestade de fogo, o barco estremeceu violentamente com a selvageria do impacto, tal qual um animal alvejado. A mastreação quebrou-se por inteiro e as velas murcharam, emboladas, semelhantes às asas de um pássaro ferido. Então, com um longo rangido da madeira, que parecia um lamento, dolorosamente o Lady Storm despediu-se da incrível batalha, afundando em seguida, tão rapidamente quanto chumbo lançado ao oceano.
No local onde a embarcação submergiu, restaram apenas barris, caixas e tábuas de madeira boiando, aos quais estavam agarrados os náufragos. Um fato interessante sobre os piratas é que, embora passassem boa parte da vida no mar, era minoria os que sabiam nadar. Tinham verdadeiro pavor pela água e, não fosse pelos destroços flutuantes do barco a lhes servir de bóia, pereceriam todos afogados.
Enquanto o Lady Storm era engolido pelo mar, e o Bride e o Diamond tinham que se deslocar para os lados a fim de escapar da perigosa sucessão de tiros, o Pandora executava a segunda manobra idealizada por seu capitão, a de fuga. No meio da confusão de vozes exaltadas e da gritaria dos náufragos, ingleses ou espanhóis, o líder pirata Jason Hope começou a perceber que talvez tivesse subestimado aqueles espanhóis.
Hope sentiu que o vento mudava de direção subitamente, como se o próprio destino houvesse resolvido ajudar os fugitivos. O inglês viu quando as velas do galeão desdobraram-se com um farfalhar, o pano inchado pelo sopro vigoroso. Os gigantescos mastros se moviam com energia, acompanhando o movimento do leme, e fazendo com que o barco espanhol começasse a ganhar distância de seus perseguidores.
Empunhando o sabre com medonha firmeza, Hope sentiu-se tão furioso que teve ímpetos de decapitar alguns de seus marujos. Berrou freneticamente, agitando de modo ameaçador a lâmina no ar:
- Maldição!!!! Atrás deles, seus cães! Que o Diabo me carregue se eu conseguir arrumar uma tripulação mais incompetente! Bastardos! Inúteis! Tragam-nos para perto do vento outra vez! Se aqueles porcos latinos conseguirem escapar, eu vou comer o fígado de cada um de vocês, e exigirei que suas cabeças me sejam servidas em um prato!
A nada sutil repreensão do capitão irado pareceu surtir efeito sobre os piratas, que trabalhavam com mais afinco ainda, para que alcançassem rapidamente o galeão em fuga. Jason Hope continuava proferindo sua série de maldições e xingamentos, usando palavras de baixo calão aprendidas de vários idiomas, transformando sua revolta numa mistura obscena de expressões despudoradas que escapavam de seus lábios crispados de ódio. Estava absolutamente furioso. Via o Pandora afastar-se empurrado pelo vento, ganhando velocidade e distância dos saqueadores marítimos. Isso enfurecia Hope a tal ponto, que ele julgava estar à beira de um infarto, um ataque de nervos.
Esbravejava com seus marinheiros como se sua vida dependesse disso. Tinham de por as mãos naquele fabuloso navio. Tinham de ser donos do tesouro que o galeão transportava. Era uma questão de honra, principalmente agora que haviam perdido o Lady Storm na batalha. O capitão inglês nunca estivera tão determinado a caçar algum barco para pilhar antes. Aqueles espanhóis causaram prejuízo. Estavam fazendo com que perdesse tempo, bons homens e uma excelente embarcação. Cães! Precisavam pagar por isso. Não permitiria que eles escapassem bem debaixo do seu nariz. Não tolerava que sua vitória praticamente certa estivesse ruindo diante de seus olhos, assim como um castelo feito com cartas se desfaz ao mínimo toque da brisa mais sutil.
O Pandora, apesar de seu tamanho e peso enormes, navegava à frente, de velas enfunadas, todos os marujos de sua numerosa equipe de bordo trabalhando em conjunto, ritmicamente, para manter a velocidade daquele gigante dos mares, o qual já obtinha uma boa distância dos adversários ingleses. E logo atrás vinham os dois navios pirata. Quando tudo parecia perdido para Hope, o vento variou sua direção mais uma vez. Usando isso a seu favor, o capitão inglês agiu rápido, antes que a brisa, sua maior aliada naquele momento, decidisse soprar em outro rumo novamente.
Atendendo às ordens de seu exigente, porém experiente comandante, as tripulações do Ghost Bride e do Red Diamond fizeram com que os barcos navegassem lado a lado com sua presa. Houve nova e estrondosa troca de tiros de canhão, possante o suficiente para estremecer aqueles mares. Os piratas posicionaram-se junto às amuradas de seus barcos e, tão logo o Pandora entrou mais uma vez em seu alcance, lançaram os arpéus com precisão, sem hesitar.
Manuseados pelas mãos experientes dos corsários, os ganchos de ferro cravaram-se firmemente na amurada do galeão espanhol. Em seguida, sem demora os piratas começaram a puxar. Flanqueando o galeão, os navios pirata foram aproximados pelo puxar vigoroso das cordas, até que se chocassem com estrondo. O Pandora, preso pelos ganchos de abordagem do inimigo, tinha à sua direita, colado ao seu casco, o brigue pirata Ghost Bride, e à esquerda, a escuna corsária Red Diamond. Quando a situação chegava àquele ponto, não havia volta. Não havia salvação para o galeão hispânico, tampouco para seus tripulantes.
- Atacar! – rugiu Jason Hope com o que lhe restava de energia na voz, após gritar durante vários minutos até o momento de êxito ao lançar os arpéus.
Como uma matilha de cães treinados, os piratas deram início ao assalto. Tendo em vista que o Pandora era um navio de três andares, obviamente seu tamanho era superior ao das embarcações que o atacavam. Logo, sua estrutura erguia-se imponentemente acima dos tombadilhos do opositor. Desse modo, para que alcançassem o convés do barco a ser pilhado, os corsários precisavam utilizar as cordas dos ganchos para escalar até a amurada do outro navio.
Gritando como loucos, produziam uma algazarra infernal que tinha como objetivo principal intimidar o inimigo. Rugiam diabolicamente como os velhos lobos do mar que eram. Emitiam seu grito pavoroso de guerra. Com facas presas entre os dentes, içando o peso do corpo por meio de seus braços musculosos devido o árduo trabalho de bordo, os piratas subiam com agilidade pelas cordas, semelhantes a aranhas velozes e repugnantes. Sombreados pelas velas dos navios, emergindo da fumaça negra da pólvora dos tiros de canhão, os sapatos apoiados com firmeza e prática no escorregadio costado de madeira, eles logo surgiam no convés do barco atacado e se arremessavam ao combate.
Durante a subida, muitos eram precipitados ao mar porque lá no alto, apoiando-se na amurada do Pandora, os espanhóis atiravam para baixo, disparando seus mosquetes e pistolas contra os invasores. O problema é que, na ponta de uma corda de onde despencava um corsário, logo em seguida surgiam mais três escalando. Isso acontecia nas duas laterais do navio. Os defensores do barco tinham a desvantagem de o processo para recarregar suas armas ser extremamente demorado.  Tinham de despejar e socar a pólvora nos canos dos mosquetes, depois inserir a bala, e tornar a usar a bucha. Perdiam muito tempo com isso. Tempo suficiente para que os bandidos subissem a bordo e sacassem suas espadas, levando o combate para o corpo a corpo.
 Dentro em pouco, os hispânicos tiveram que se afastar da amurada para se concentrar em esgrimir suas espadas contra os invasores no convés. Então, os piratas de ambos os navios logo estavam a bordo do impressionante navio espanhol. E a luta se desenvolvia com uma ferocidade assustadora.
 Urros de ódio e de dor de ingleses e espanhóis se misturavam, bem como as imprecações proferidas de ambos os lados. O retinir metálico das espadas se encontrando violentamente. O som inesquecível e nauseante do aço dilacerando a carne e destruindo ossos. Sangue e suor lavando o convés, tornando-o escorregadio. Corpos forrando o solo em qualquer direção que se dirigisse a vista. O cheiro pútrido da morte empesteando o ar, mesclado ao odor fétido da pólvora e o perfume embriagante da maresia. A luta, que a princípio estivera equilibrada, agora pendia contra os espanhóis que, embora lutassem bravamente, estavam sendo gradativamente derrotados, caindo mortos aos pés de seus inimigos ingleses, a bravura hispânica sucumbindo à selvageria pirata inglesa.
Tal triste fato se dava porque, diferentemente das duas tripulações de corsários, que inteiramente eram treinadas tanto para manobrar os barcos, quanto para pilhar e lutar, a equipe de bordo espanhola era dividida entre marujos e soldados. Uns não executavam a função dos outros. Para isso precisavam de uma esquadra de escolta, mas, como sabemos, não mais podiam contar com o apoio dos barcos Dom Filipe e El Vigilante, afundados no combate.  E isso os deixava em uma situação terrivelmente complicada.
Em certo momento, percebendo que os soldados não estavam conseguindo vencer o inimigo, os marujos espanhóis tentaram pegar em armas para ajudar no combate, mas não houve sucesso nem melhora. Sem a prática necessária para manusear as espadas, foram, um a um, abatidos impiedosamente pelo bárbaro adversário. O máximo que os soldados espanhóis conseguiram com a ajuda vinda dos marujos na luta, foi atrasar o início do assalto alguns minutos, e cansar um pouco mais os bandidos do mar. O rugido das lâminas encobria o clamor do mar se chocando contra os cascos. O caos se instalara a bordo. Em desespero, temendo a morte brutal iminente, muitos marujos e soldados espanhóis atiravam-se ao mar.
Caminhando orgulhosamente pelo convés do Pandora, onde os homens se atracavam de modo sangrento no duro combate pela posse do galeão, Jason Hope parecia alguém invencível. Os gritos de dor e fúria, o cheiro de morte e o clangor das espadas à sua volta aparentemente não o incomodavam. Sua frieza era assustadora, sua face denotava indiferença quando usava seu sabre para se defender com maestria de algum golpe ou esquivar-se rapidamente de alguma lâmina que buscasse perfurá-lo. Em oposição aos golpes de seus piratas, os movimentos de Hope eram firmes, velozes, precisos e infalíveis. Movia o sabre três, no máximo quatro vezes quando os inimigos surgiam diante dele. Esquivar ou defender, atacar e continuar andando, como se os espanhóis não merecessem mais atenção do que aquela. Estocava um ponto vital e seguia em frente, sem se importar com o ser humano que acabava de deixar morto no piso atrás de si.
Jason Hope rumava direta e determinadamente rumo ao castelo de popa. Queria adentrar o camarote do capitão, onde provavelmente havia uma parte dos tesouros que o galeão transportava. Algo o puxava para lá, uma espécie de imã. Quando ia começar a subir os degraus para o tombadilho, seus instintos de guerreiro o preveniram a tempo. Girou para o lado e a folha metálica de uma espada silvou no ar, descrevendo uma curva mortal onde se projetara o capitão segundos antes. Hope voltou-se e apertou os olhos com dureza para fitar que ousara atacá-lo pelas costas.
Um homem de tez morena e cabelos negros, elegantemente vestido, trajando roupas vistosas, chapéu emplumado e empunhando um florete espanhol, parado a menos de um metro e meio de Hope, o mirava com desprezo e intensidade.
- Eu sou o almirante Guilhermo Antunes. – falou o homem em um inglês correto – Sou o capitão deste navio e não permitirei que ele seja saqueado por um verme britânico como você. Para entrar naquele camarote, vai ter que passar sobre meu cadáver, pirata dos infernos!
Ao concluir a frase cuspindo ameaçadoramente as palavras, o espanhol tinha o cenho franzido e apontava o florete em riste para Hope. O inglês o fitou de alto a baixo com um olhar recheado de desdém. A seguir, brandindo seu sabre, rosnou ironicamente:
- Que assim seja.
Os capitães atiraram-se avidamente ao duelo, enquanto a carnificina acontecia ao seu redor. Aquela era uma luta fascinante, digna de ser assistida. Antunes e Hope esgrimiam com uma maestria espantosa, movimentos rápidos e certeiros. As lâminas tilintavam em atrito, brilhando ao sol daquela manhã mortífera. O jogo de pés, tão essencial aos esgrimistas quanto aos pugilistas de hoje, era atrapalhado pelo convés, que se tornara escorregadio devido ao sangue que o encharcava. Os dois moviam-se cautelosamente, tomando cuidado onde pisavam, mas sem tirar os olhos um do outro. Algumas vezes, quando suas espadas cruzavam-se, seus rostos contraídos ficavam tão próximos que os duelistas podiam sentir o hálito um do outro.
Sempre atacando e defendendo, foram de um lado a outro, no meio da confusão da batalha. As lâminas tentavam alcançar os corpos do adversário; todavia, eram desviadas ou defendidas com destreza, tanto por um, quanto pelo outro. Passaram pelo mastro e então Hope começou a bolar um plano. Antunes era um bom soldado, um espadachim hábil. Seria difícil vencê-lo daquele modo, pois sua prática com o florete se igualava à de Hope ao manusear o sabre. Começou então a desferir golpes velozes e poderosos, obrigado Antunes a se defender recuando para perto da amurada.
Quando o espanhol estava no ponto onde Hope desejava, o inglês agarrou pela gola o primeiro marujo que passou perto de si e o arremessou contra o inimigo. Surpreendido pelo gesto, Antunes teve que se desviar e, por isso abriu a guarda momentaneamente. Não foi muito tempo, mas bastou para que Hope traiçoeiramente enterrasse o sabre em seu peito, errando por pouco o coração, mas ainda assim, ferindo-o mortalmente.
Com sua espada cravada na carne do inimigo, Jason Hope foi empurrando o espanhol até que o corpo do mesmo se chocasse contra a amurada. Largando o florete, e expelindo uma golfada de sangue pela boca, Antunes olhou para o pirata cheio de desprezo, surpresa e revolta.
- Maldito espanhol! – bradou Hope com um misto de sarcasmo e desdém – Por sua causa, suei a camisa!
Agonizante, Guilhermo esboçou um sorriso sangrento, que se transformou numa careta de dor a seguir, quando ele tossiu mais sangue. Mesmo assim, arfante, conseguiu dizer:
- Sua hora...  vai chegar... seu verme pirata! Sua morte... será muito pior... que a minha... e El Dragón... chorará sobre seu corpo... não como seu comandante... mas como seu amigo...
- Já basta, espanhol. – rosnou Hope e sorriu com ironia – Fala demais para um cão que está morrendo. Dobre a língua ao falar de meu comandante. E, a propósito, o nome dele é Francis Drake.
E, tendo dito isso, Hope arrancou sua espada do corpo do inimigo, ao mesmo tempo em que, apoiando o pé direito no centro de seu peito, empurrava o capitão espanhol moribundo sobre a amurada. Sem um pio, o homem girou e foi projetado ao mar. Se não morreu com a imensa queda, provavelmente se afogou em seguida, mais em seu sangue do que propriamente na água do oceano.
Friamente Jason Hope limpou o sangue de seu sabre na camisa do morto caído mais próximo, para que o líquido vital rubro não enferrujasse sua lâmina. Guardou a espada na bainha e correu para o camarote do capitão. Teve que arrombar a pesada porta depois de atirar com sua pistola na maçaneta de bronze. A porta se abriu com um estrondo. O som feroz da batalha, agora quase finalizada, chegava aos ouvidos do capitão pirata inglês.  
Ao entrar na cabine, o homem viu diversas caixas e baús contendo preciosidades. Entretanto, o que seduziu sua atenção da mesma forma que moscas são atraídas para a luz, foi uma pesada arca, misteriosa e imensa, decorada com jóias e desenhos antigos, colocada a um canto, próximo à cama do falecido capitão Antunes. Jason Hope ainda não sabia, mas assim que pousou os olhos naquela estranha arca, havia acabado de selar seu destino.

Continua...

Danilo Alex da Silva


“A morte e ela, a morte em vida,
Jogaram os dados para a tripulação
Ela ganhou o marinheiro
E ele pertence a ela agora.
Então... a tripulação, um a um,
Caíram mortos, duzentos homens
Ela... ela, morte em vida
Ela o deixou viver, o seu Escolhido”

(Rime of the Ancient Mariner – Iron Maiden) 

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