segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Arca de Pandora - Parte IV




Tão logo finalizou-se o massacre aos tripulantes do Pandora, o covarde e sanguinário capitão pirata Jason Hope ordenou à sua vil tripulação:
- Alimentem os peixes, seus diabos dos oceanos!
 Aquilo significava que os corpos deveriam ser atirados ao mar porque, a partir daquele instante, o galeão espanhol pertencia à esquadra de Francis Drake, o fiel e corajoso servo da Rainha Elizabeth I. Piratas apoiados nas amuradas atiravam com seus mosquetes contra os sobreviventes que se debatiam no mar inquieto. Os bandidos matavam friamente os náufragos e riam com insana alegria, como o homem que se diverte atirando em ratos para aprimorar a pontaria. Ninguém poderia escapar da selvageria pirata.
Assim que o corpo do último espanhol foi atirado ao mar, grupos de marujos ingleses surgiram com baldes com água e sabão, bem como esfregões, para lavar do convés o sangue endurecido derramado na cruenta batalha. Como haviam baixado âncoras dos três navios, havia muita gente a bordo do Pandora. O excesso de pessoal gerou um considerável número de tripulantes ociosos devido à escassez de serviços no momento. Logo, enquanto alguns corsários se dedicavam a realizar a limpeza do convés, outros tratavam de percorrer cada cômodo, cada corredor, cada luxuosa cabine do colossal navio espanhol, à procura de riquezas e bebidas. O sol a pino boiava no céu azul, como se estivesse bem acima dos mastros, tentava enxergar o que os humanos saqueavam naquele momento.
O momento de conferir o produto da pilhagem geralmente era o melhor para os ladrões do mar. Empanturravam-se das melhores comidas e bebiam até cair, enquanto pareciam enfeitiçados pelo brilho das preciosidades que encontravam, além, é claro, de se regozijar com especiarias e tecidos que comumente achavam em embarcações mercantes. Mas o Pandora era um gigantesco navio de guerra, e estava saturado de provisões. Caixotes com frutas típicas da colônia, barris de vinho e cerveja fresca, bastante água potável, carnes de vários tipos, iguarias exóticas. Tudo à vontade.
Ora, aquilo era o paraíso para os lobos do mar, pois eles estavam habituados a uma vida difícil, onde a comida e a bebida, incluindo a água, eram severamente racionadas. Não raro algum pirata caía doente pela falta de alimentação adequada ou por ter ingerido comida estragada, e algumas vezes, para não morrer de sede na viagem, viam-se obrigados a beber a própria urina. Por isso, naquelas ocasiões, eles aproveitavam. Bebiam até fartar-se, comiam do bom e do melhor. E naquela manhã, que já quase se convertia em tarde, não poderia ter sido diferente.
Piratas embriagados, jogados em todos os cantos, dormindo ou cantando, com voz engrolada, alguma das velhas canções de sua terra natal. Era o que a maioria fazia. Uma pequena parte andava incessantemente de um lado para outro, vasculhando cada parte do navio em busca de novos achados. Aguardavam com ansiedade quando, mais tarde, depois de realizados todos os cálculos, seguindo as ordens do capitão, o imediato do Ghost Bride, chamado Thomas Brook, viria ter com a tripulação, para dividir as riquezas obtidas na abordagem de tão glorioso navio. E os marinheiros estavam intrigados com a ausência do capitão, o qual, naquelas ocasiões, assim como em todas as outras, estava no meio deles, comemorando, rindo, contando piadas obcenas e entornando canecos transbordantes de chope ou rum. Mas dessa vez, algo estava diferente. Alguma coisa estava estranha.
Desde que tomaram o Pandora, Jason Hope estava enfurnado na cabine que, em vida, pertencera ao bravo almirante hispânico Guilhermo Antunes, que fora morto de modo traiçoeiro pelo comandante pirata inglês. Desde que pisara naquele camarote, Hope apenas tinha olhos para a imensa e misteriosa arca postada ao lado da cama do capitão. Ao redor da mesma, havia uma infinidade de alforjes cheios de moedas de prata e dobrões de ouro; colares de pérolas e toda sorte de joias incrustadas com pedras preciosas. Mas a Hope o que interessava era a arca.
 Era feita de um belo tipo de madeira negra e lustrosa, provavelmente ébano. Símbolos estranhos, cruzes e textos escritos numa língua que parecia latim, estavam entalhados na tampa e nas laterais, em todos os lados do enigmático e sombrio baú, o qual estava lacrado com um grande e impressionante cadeado feito de prata pura. Hope esfregava as mãos de contentamento, imaginando as riquezas que a tal arca traria em seu conteúdo. O único momento em que permitiu que a tripulação entrasse na cabine foi quando chamou alguns homens para ajudá-lo a abrir a arca. Enquanto uma equipe de corsários auxiliava o capitão nessa tarefa, outra levava para os outros dois navios, o Bride e o Diamond, a fim de que se distribuísse o peso pelas três embarcações, os outros alforjes e baús menores, contendo também riquezas. Apenas a excêntrica arca permaneceu no interior da cabine do capitão.
Quando o resistente cadeado de prata finalmente cedeu e bateu com um ruído seco contra o assoalho, Jason Hope agiu de modo surpreendente. Rugiu para seus homens, mostrou os dentes e não permitiu que tocassem na sinistra caixa. Esbravejando, expulsou os piratas de sua cabine a pontapés, sem nem ao mesmo permitir que eles visualizassem o conteúdo da arca. O capitão estava totalmente fora de si. Quando o último corsário saiu, Hope bateu a porta com força e, como tivera que arrombar a mesma para entrar, usou uma estante de livros sobre navegação para bloquear a entrada de eventuais curiosos.
Como uma criança afoita, o homem se curvou diante da arca e precisou usar bastante os músculos para erguer a maciça tampa, que era mais pesada do que aparentava. Com um suspiro, abriu a caixa e espiou avidamente seu interior. Seus olhos brilharam de modo cobiçoso quando diante deles surgiu um dos maiores tesouros já contemplados na face da Terra. Moedas de ouro e prata de inúmeros países, joias, pedras preciosas, colares, tiaras, anéis, taças, punhais, adagas e canecos adornados com rubis e safiras, do que se puder imaginar de valioso havia um pouco dentro daquela arca. Todavia, o que se sobressaía, se destacava do resto era uma imensa espada de cabo ricamente ornado, com empunhadura e protetor de punho feitos de ouro maciço. A lâmina, longa e de brilho ofuscante, era feita de prata pura. Estava fincada no meio do tesouro, seu cabo e empunhadura num ângulo que formavam uma cruz apontando para o alto.
Jason Hope, que até então estivera enfeitiçado pela arca, maravilhou-se instantaneamente ao ver a fabulosa arma. Era uma rapieira espanhola, uma espada estupenda, muito parecida com a que Francis Drake manejava nos combates. Doravante, aquela seria sua lâmina gloriosa. Fascinado, segurou o cabo com a mão direita e tentou puxar a espada, mas ela não se moveu. Franziu a sobrancelha, intrigado, e tentou mais uma vez, novamente sem sucesso. A lâmina parecia estar presa firmemente a algo que havia no fundo da arca, sob toda aquela camada espessa e brilhante do tesouro. O silêncio pesado, arranhado apenas pela respiração rápida do obcecado capitão, parecia carregado de maus presságios. Mesmo assim, Hope, que era um homem cético, não muito dado a certas crenças, fez nova tentativa.
Usando ambas as mãos para segurar o cabo da arma, e empregado muita força, finalmente conseguiu desencravar a espada do tesouro. Ia sorrir, mas algo o deteve: quando a rapieira saiu da arca, aquilo que a estava prendendo emergiu bruscamente do tesouro, acompanhando o movimento da arma ao ser puxada e fazendo transbordar o baú. Cheio de assombro, Hope primeiro viu a lâmina coberta de um sangue negro e podre. Depois divisou, dentro da arca, quase sentado devido a força que fora arrancado do fundo do baú, um morto. Era um homem na casa dos quarenta anos, muito pálido, com as feições tão serenas, que se poderia dizer que ele estava dormindo apenas, ao invés de morto.
O cadáver tinha no semblante os claros traços de sua origem latina, como a pele morena, os cabelos escuros e um pouco compridos, um rosto anguloso, culminando em um queixo virilmente quadrado, e um garboso cavanhaque. Trajava roupas antigas e espalhafatosas, parecia um cigano; usava camisa de seda e colete de cores chamativas. Estava meio soterrado na arca do tesouro, e não era possível vê-lo da cintura para baixo ainda.
Ao por os olhos nele, com uma careta mista de asco e horror, Hope assustou-se tanto que caiu sentado para trás.
- Aqueles espanhóis loucos! Onde já se viu, transportar um morto no meio de ouro e prata?
E o capitão pirata lançou um olhar repleto de repugnância para o cadáver. Curioso, percebeu que o homem sangrava na altura do coração, onde provavelmente estivera enterrada a lâmina de prata da espada que acabara de obter. Era sangue fresco, como se ele tivesse morrido poucas horas antes. Havia quanto tempo que o defunto estava ali naquela arca? Por que ele estava tão conservado, sem nenhum mau cheiro, ou sinal de putrefação? E por que aqueles porcos hispânicos o estava transportando escondido sob o tesouro?
- Que diabos?! – resmungou Hope olhando mais uma vez para o rosto plácido do homem inerte na arca. Havia certo cinismo mórbido na expressão do defunto e, se Hope não fosse um sujeito realmente incrédulo, seria capaz de jurar que um sorriso irônico estivera se formando lentamente nos lábios mortos daquele cigano.
Esfregando os olhos e sacudindo a cabeça, o capitão inglês rosnou para si, mal-humorado:
- Maldição! Estive tanto tempo aqui, que começo a imaginar coisas. Acho que preciso sair um pouco, tomar um ar e uma bebida.
Dito isso, Hope ajeitou o corpo do cigano na arca do melhor modo que pode (teve uma sensação estranha ao tocar a pele fria como gelo e rija como pedra), e em seguida fechou a pesada tampa, deixando-a apenas escorada, já que o cadeado se fora. Então, limpando o sangue de sua bela e mais nova espada, Jason Hope tirou a sua antiga arma da bainha e jogou-a em um canto, para em seguida guardar na cintura a elegante rapieira espanhola, sua maior descoberta naquela fantástica arca. Feito isso, com passos firmes de suas pesadas botas, deixou a cabine e foi se juntar aos seus homens no convés.

Continua...


Danilo Alex da Silva


“Ao oscilar da bússola, minha determinação é forte
Eu não vou ser desviado
Mistérios do tempo, nuvens que escondem o sol
Mas eu sei, eu sei”

(Ghost of the Navigator – Iron Maiden)


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