Tão
logo finalizou-se o massacre aos tripulantes do Pandora, o covarde e sanguinário capitão pirata Jason Hope ordenou
à sua vil tripulação:
-
Alimentem os peixes, seus diabos dos oceanos!
Aquilo significava que os corpos deveriam ser
atirados ao mar porque, a partir daquele instante, o galeão espanhol pertencia
à esquadra de Francis Drake, o fiel e corajoso servo da Rainha Elizabeth I. Piratas
apoiados nas amuradas atiravam com seus mosquetes contra os sobreviventes que
se debatiam no mar inquieto. Os bandidos matavam friamente os náufragos e riam
com insana alegria, como o homem que se diverte atirando em ratos para
aprimorar a pontaria. Ninguém poderia escapar da selvageria pirata.
Assim
que o corpo do último espanhol foi atirado ao mar, grupos de marujos ingleses
surgiram com baldes com água e sabão, bem como esfregões, para lavar do convés
o sangue endurecido derramado na cruenta batalha. Como haviam baixado âncoras
dos três navios, havia muita gente a bordo do Pandora. O excesso de pessoal gerou um considerável número de
tripulantes ociosos devido à escassez de serviços no momento. Logo, enquanto
alguns corsários se dedicavam a realizar a limpeza do convés, outros tratavam
de percorrer cada cômodo, cada corredor, cada luxuosa cabine do colossal navio
espanhol, à procura de riquezas e bebidas. O sol a pino boiava no céu azul,
como se estivesse bem acima dos mastros, tentava enxergar o que os humanos
saqueavam naquele momento.
O
momento de conferir o produto da pilhagem geralmente era o melhor para os
ladrões do mar. Empanturravam-se das melhores comidas e bebiam até cair,
enquanto pareciam enfeitiçados pelo brilho das preciosidades que encontravam,
além, é claro, de se regozijar com especiarias e tecidos que comumente
achavam em embarcações mercantes. Mas o Pandora
era um gigantesco navio de guerra, e estava saturado de provisões. Caixotes com
frutas típicas da colônia, barris de vinho e cerveja fresca, bastante água
potável, carnes de vários tipos, iguarias exóticas. Tudo à vontade.
Ora,
aquilo era o paraíso para os lobos do mar, pois eles estavam habituados a uma
vida difícil, onde a comida e a bebida, incluindo a água, eram severamente racionadas.
Não raro algum pirata caía doente pela falta de alimentação adequada ou por ter
ingerido comida estragada, e algumas vezes, para não morrer de sede na viagem,
viam-se obrigados a beber a própria urina. Por isso, naquelas ocasiões, eles
aproveitavam. Bebiam até fartar-se, comiam do bom e do melhor. E naquela manhã,
que já quase se convertia em tarde, não poderia ter sido diferente.
Piratas
embriagados, jogados em todos os cantos, dormindo ou cantando, com voz
engrolada, alguma das velhas canções de sua terra natal. Era o que a maioria
fazia. Uma pequena parte andava incessantemente de um lado para outro,
vasculhando cada parte do navio em busca de novos achados. Aguardavam com
ansiedade quando, mais tarde, depois de realizados todos os cálculos, seguindo
as ordens do capitão, o imediato do Ghost
Bride, chamado Thomas Brook, viria ter com a tripulação, para dividir as
riquezas obtidas na abordagem de tão glorioso navio. E os marinheiros estavam
intrigados com a ausência do capitão, o qual, naquelas ocasiões, assim como em
todas as outras, estava no meio deles, comemorando, rindo, contando piadas
obcenas e entornando canecos transbordantes de chope ou rum. Mas dessa vez,
algo estava diferente. Alguma coisa estava estranha.
Desde
que tomaram o Pandora, Jason Hope
estava enfurnado na cabine que, em vida, pertencera ao bravo almirante
hispânico Guilhermo Antunes, que fora morto de modo traiçoeiro pelo comandante
pirata inglês. Desde que pisara naquele camarote, Hope apenas tinha olhos para
a imensa e misteriosa arca postada ao lado da cama do capitão. Ao redor da
mesma, havia uma infinidade de alforjes cheios de moedas de prata e dobrões de
ouro; colares de pérolas e toda sorte de joias incrustadas com pedras
preciosas. Mas a Hope o que interessava era a arca.
Era feita de um belo tipo de madeira negra e
lustrosa, provavelmente ébano. Símbolos estranhos, cruzes e textos escritos
numa língua que parecia latim, estavam entalhados na tampa e nas laterais, em
todos os lados do enigmático e sombrio baú, o qual estava lacrado com um grande
e impressionante cadeado feito de prata pura. Hope esfregava as mãos de
contentamento, imaginando as riquezas que a tal arca traria em seu conteúdo. O
único momento em que permitiu que a tripulação entrasse na cabine foi quando
chamou alguns homens para ajudá-lo a abrir a arca. Enquanto uma equipe de
corsários auxiliava o capitão nessa tarefa, outra levava para os outros dois
navios, o Bride e o Diamond, a fim de que se distribuísse o
peso pelas três embarcações, os outros alforjes e baús menores, contendo também
riquezas. Apenas a excêntrica arca permaneceu no interior da cabine do capitão.
Quando
o resistente cadeado de prata finalmente cedeu e bateu com um ruído seco contra
o assoalho, Jason Hope agiu de modo surpreendente. Rugiu para seus homens,
mostrou os dentes e não permitiu que tocassem na sinistra caixa. Esbravejando,
expulsou os piratas de sua cabine a pontapés, sem nem ao mesmo permitir que
eles visualizassem o conteúdo da arca. O capitão estava totalmente fora de si. Quando
o último corsário saiu, Hope bateu a porta com força e, como tivera que
arrombar a mesma para entrar, usou uma estante de livros sobre navegação para
bloquear a entrada de eventuais curiosos.
Como
uma criança afoita, o homem se curvou diante da arca e precisou usar bastante
os músculos para erguer a maciça tampa, que era mais pesada do que aparentava. Com
um suspiro, abriu a caixa e espiou avidamente seu interior. Seus olhos
brilharam de modo cobiçoso quando diante deles surgiu um dos maiores tesouros
já contemplados na face da Terra. Moedas de ouro e prata de inúmeros países, joias,
pedras preciosas, colares, tiaras, anéis, taças, punhais, adagas e
canecos adornados com rubis e safiras, do que se puder imaginar de valioso
havia um pouco dentro daquela arca. Todavia, o que se sobressaía, se destacava do
resto era uma imensa espada de cabo ricamente ornado, com empunhadura e
protetor de punho feitos de ouro maciço. A lâmina, longa e de brilho ofuscante,
era feita de prata pura. Estava fincada no meio do tesouro, seu cabo e
empunhadura num ângulo que formavam uma cruz apontando para o alto.
Jason
Hope, que até então estivera enfeitiçado pela arca, maravilhou-se
instantaneamente ao ver a fabulosa arma. Era uma rapieira espanhola, uma espada
estupenda, muito parecida com a que Francis Drake manejava nos combates. Doravante,
aquela seria sua lâmina gloriosa. Fascinado, segurou o cabo com a mão direita e
tentou puxar a espada, mas ela não se moveu. Franziu a sobrancelha, intrigado, e
tentou mais uma vez, novamente sem sucesso. A lâmina parecia estar presa
firmemente a algo que havia no fundo da arca, sob toda aquela camada espessa e
brilhante do tesouro. O silêncio pesado, arranhado apenas pela respiração rápida
do obcecado capitão, parecia carregado de maus presságios. Mesmo assim, Hope,
que era um homem cético, não muito dado a certas crenças, fez nova tentativa.
Usando
ambas as mãos para segurar o cabo da arma, e empregado muita força, finalmente
conseguiu desencravar a espada do tesouro. Ia sorrir, mas algo o deteve: quando
a rapieira saiu da arca, aquilo que a estava prendendo emergiu bruscamente do
tesouro, acompanhando o movimento da arma ao ser puxada e fazendo transbordar o
baú. Cheio de assombro, Hope primeiro viu a lâmina coberta de um sangue negro e
podre. Depois divisou, dentro da arca, quase sentado devido a força que fora
arrancado do fundo do baú, um morto. Era um homem na casa dos quarenta anos,
muito pálido, com as feições tão serenas, que se poderia dizer que ele estava
dormindo apenas, ao invés de morto.
O
cadáver tinha no semblante os claros traços de sua origem latina, como a pele
morena, os cabelos escuros e um pouco compridos, um rosto anguloso, culminando
em um queixo virilmente quadrado, e um garboso cavanhaque. Trajava roupas
antigas e espalhafatosas, parecia um cigano; usava camisa de seda e colete de cores
chamativas. Estava meio soterrado na arca do tesouro, e não era
possível vê-lo da cintura para baixo ainda.
Ao
por os olhos nele, com uma careta mista de asco e horror, Hope assustou-se
tanto que caiu sentado para trás.
-
Aqueles espanhóis loucos! Onde já se viu, transportar um morto no meio de ouro
e prata?
E
o capitão pirata lançou um olhar repleto de repugnância para o cadáver. Curioso,
percebeu que o homem sangrava na altura do coração, onde provavelmente estivera
enterrada a lâmina de prata da espada que acabara de obter. Era sangue fresco,
como se ele tivesse morrido poucas horas antes. Havia quanto tempo que o
defunto estava ali naquela arca? Por que ele estava tão conservado, sem nenhum
mau cheiro, ou sinal de putrefação? E por que aqueles porcos hispânicos o
estava transportando escondido sob o tesouro?
-
Que diabos?! – resmungou Hope olhando mais uma vez para o rosto plácido do
homem inerte na arca. Havia certo cinismo mórbido na expressão do defunto e, se
Hope não fosse um sujeito realmente incrédulo, seria capaz de jurar que um
sorriso irônico estivera se formando lentamente nos lábios mortos daquele
cigano.
Esfregando
os olhos e sacudindo a cabeça, o capitão inglês rosnou para si, mal-humorado:
-
Maldição! Estive tanto tempo aqui, que começo a imaginar coisas. Acho que
preciso sair um pouco, tomar um ar e uma bebida.
Dito
isso, Hope ajeitou o corpo do cigano na arca do melhor modo que pode (teve uma
sensação estranha ao tocar a pele fria como gelo e rija como pedra), e em
seguida fechou a pesada tampa, deixando-a apenas escorada, já que o cadeado se
fora. Então, limpando o sangue de sua bela e mais nova espada, Jason Hope tirou
a sua antiga arma da bainha e jogou-a em um canto, para em seguida guardar na
cintura a elegante rapieira espanhola, sua maior descoberta naquela fantástica
arca. Feito isso, com passos firmes de suas pesadas botas, deixou a cabine e
foi se juntar aos seus homens no convés.
Continua...
Danilo Alex da Silva
“Ao
oscilar da bússola, minha determinação é forte
Eu
não vou ser desviado
Mistérios
do tempo, nuvens que escondem o sol
Mas
eu sei, eu sei”
(Ghost
of the Navigator – Iron Maiden)
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