sábado, 21 de julho de 2012

A Arca de Pandora - Parte VIII



Rapidamente organizou-se o procedimento para decidir, de modo democrático, o futuro do Pandora, do capitão Jason Hope, da arca maldita e da tripulação. O velho Crawford foi o esteio para que tudo acontecesse dentro da ordem, na medida do possível. Depois de uma acirrada discussão, apurados os votos, descobriu-se que a maioria optara por abandonar o navio.
- Me parece uma decisão justa. – opinou o cozinheiro – Podemos usar os botes para escapar. Vamos revezando nos remos, dentro em breve encontraremos algum tipo de ajuda.
- Certo, mas e o nosso capitão? – lembrou Carrasco, que, a despeito de suas crueldades contra os inimigos, era um marinheiro inquestionavelmente leal ao seu comandante.
Sob os protestos da maior parte da tripulação, acompanhado por alguns poucos companheiros, Carrasco seguiu para o camarote do capitão, imbuído do desejo de fazer com que Hope partisse com eles. Mal surgiram na porta, e os piratas imediatamente perceberam que o cômodo recendia a bebida alcoólica. Encontraram o capitão com expressão de embriagado desalento, sentado a um canto, no chão, tomando rum direto do gargalo.
Disseram a ele que estavam partindo, mas o capitão pirata nem se moveu. Quando pediram que fosse com eles, lentamente ele voltou os olhos anuviados e mirou seus marujos:
- De fato, é como dizem por aí; em caso de perigo, os ratos são os primeiros a abandonar o navio. Mas eu não os culpo, marujos. Falhei com vocês, falhei com todos. Não pude protegê-los dessa coisa que vem dizimando nossos amigos em forma de doença, embora saibamos que não se trata de uma enfermidade. Podem ir, transmitam a minha ordem de “salvem-se quem puder” ao resto da tripulação. Quanto a mim, honrarei meu compromisso como capitão, e permanecerei aqui. Vou enfrentar o mal que tomou esse navio. É a mim que ele quer; não é justo que vocês continuem pagando por isso. Vão, meus amigos. Ficarei para vingar nossos mortos, ou morrerei tentando. Se sobreviverem, tomem um drinque por seu velho capitão. – e dizendo isso, Hope ergueu a garrafa que segurava em direção aos companheiros, como se oferecesse um brinde, para em seguida beber diretamente do bico mais uma vez, deixando a cabeça pender para trás enquanto degustava o longo gole.
Percebendo que a conversa tinha sido encerrada, os corsários partiram decepcionados e foram se reunir aos outros nos convés. Quando o grupo que retornou da cabine do comandante repetiu as palavras de Hope aos companheiros, houve um silêncio breve e respeitoso. Todos sabiam o que a decisão do comandante significava.
- Deixá-lo aí é crueldade demais até para nós. – protestou um dos piratas que estimava o capitão – Depois de tudo o que ele fez por nós, simplesmente abandoná-lo como se faz com um cão raivoso... Seria mais humano alguém ir até lá e dar-lhe um tiro de pistola.
- Vamos embora. – comandou alguém – Fizemos nossa votação, propusemos a Hope que viesse conosco, e ele tomou sua decisão. Terá de arcar com as consequências. Agimos de acordo com o que julgamos certo, e ele também. Estamos partindo, vamos descer estes botes e remar para longe. Quem quiser, que fique com o capitão.
- E os doentes? – lembrou outro corsário.
- Infelizmente, também terão de ser deixados. Não podem se mover, precisam ser carregados, darão trabalho e consumirão suprimentos que não podemos mais dividir. Sobrevivência tem lá seu preço.
Diante do olhar espantado de todos, o pirata que puxava a turma prosseguiu:
- São nossos amigos, mas nada mais podemos fazer por eles. Sabemos que não restam chances, porque a doença mata muito rápido. Depressa, vamos descer os botes. Alguém fica lá embaixo para receber as provisões que restam, e acomodá-las sob os bancos. O mar imóvel nos ajudará pelo menos nisso, a calmaria não atrapalhará nosso desembarque.
Rapidamente cumpriu-se o ritual de trazer os suprimentos para os botes, os quais ficavam elevados junto à amurada do galeão, pendendo de um tipo de estrado. Cordas presas à popa, à proa e às laterais mantinham os mesmos suspensos. Desataram alguns nós e desceram o primeiro bote com provisões e um marujo dentro. A longa descida, já que o galeão possuía três andares, era controlada pelos homens a bordo, os quais seguravam uma corda que deslizava por uma roldana barulhenta.
Um a um, os botes foram descidos com agilidade ao longo do imenso costado. A já reduzida tripulação embarcou. Sem demora os piratas se puseram a remar. O sol vespertino a tudo presenciava das alturas, cravado em um céu divinamente azul e limpo de qualquer nuvem. O som dos remos cortando a água absolutamente estagnada. A respiração ruidosa e pesada dos homens, os quais suavam pelo esforço e pela ausência total de ventos.
Enquanto se afastavam, os piratas, unidos por um silêncio solene, fitaram a figura majestosa do galeão espanhol estacado no meio do mar. O navio lembrava uma montanha em pleno oceano. O Pandora estava silencioso como um túmulo. E em breve, era nisso que ia se transformar: numa grande sepultura que abrigaria o capitão Jason Hope e os companheiros doentes que estavam encerrados nas cabines do castelo de proa. Alguns bandidos do mar sentiam certo remorso em ter deixado os companheiros para trás, mesmo sabendo que não havia alternativa.  Em pouco tempo, o vulto do navio imóvel desapareceu da vista dos sobreviventes, e eles se concentraram em resistir, em chegar a terra. Preocuparam enfim com suas próprias vidas, e deixaram de lado as dos amigos.
O sol descrevia seu arco implacável no céu, rumando de maneira inexorável para o horizonte o qual, dentro de poucas horas, tocaria, dando a impressão de que estava beijando a água parada, cuja superfície azul espelhava o céu fabuloso. Hope nem se mexera. Continuara em seu lugar, sentado, bebendo sem parar. Imaginou que houvesse homens doentes na ala de quarentena sem, no entanto, se erguer ou fazer menção de ir ajudá-los. Não podia fazer mais nada por eles. A morte deles ocorreria em breve, seria rápida e pouco sofrida. Hope quase os invejava. Sabia que com ele a coisa haveria de ser completamente diferente. O Diabo estava a bordo, dormindo na arca maldita no porão, esperando. Assim que o sol desaparecesse no horizonte, o inimigo sobrenatural viria buscar Jason Hope. Não restavam dúvidas.
Num acesso de fúria, Hope arremessou com força e raiva contra a parede da cabine a garrafa de vinho quase cheia que estava entornando. Som de vidro se despedaçando. Cacos chovendo para todos os lados. O vinho, escarlate, tingindo as paredes, escorrendo pelo assoalho, e respingando no capitão pirata bêbado e jogado a um canto. Ainda sentado, as costas apoiadas na quina da parede, o inglês observou o halo de luz que entrava pela janela, coado pelas cortinas confeccionadas e bordadas artesanalmente pelas mulheres que ele chamava de “aquelas espanholas imundas.” Sentiu um ódio insano e repentino por aquele navio, ao lembrar que o mesmo fora feito em uma estalagem hispânica, pelas mãos de seus inimigos. Desejou estar bem longe daquele barco infecto e maldito. Arrependeu-se por um momento da decisão de ficar ali.
Ao fitar o ângulo da luz e sua intensidade, calculou mentalmente a posição do sol, concluindo que a tarde partia com rapidez. Em breve seria noite. Logo viriam as trevas em seu encalço. Estava chegando a hora do confronto. O momento de ajustar contas com a criatura que assombrava o navio sob a forma detestável de um cigano. Seria tudo ou nada. Era a hora de lutar como nunca e, dessa vez, sozinho. O tempo, implacável, devorava minutos. O ar estagnado da tarde ardia como fogo ao penetrar as narinas do capitão, fazendo seus pulmões queimar como se cheios de brasas. O momento final se aproximava, e essa certeza apocalíptica invadia a mente de Hope com uma clareza cortante. Estava chegando o momento inevitável de vingar seus companheiros mortos, ou de se juntar a eles no Além.
Sacando da cintura sua pistola, Hope observou-a atentamente. Limpou-a e carregou-a sem pressa. Executava aquela tarefa sombria pela milésima vez na vida, mas dessa vez sua mão não estava tão firme. Pensar que aquela seria provavelmente a última batalha de sua vida. Enfrentar um inimigo que não deveria existir nesse mundo. Um adversário em quem sua razão se recusava a acreditar. Pagar o preço por ter aberto o baú maldito. Ele abrira a arca de Pandora literalmente, libertando no âmago do galeão todo o mal que se pudesse imaginar: morte, ódio, doenças, violência, cobiça, traição, deslealdade. Riu sozinho, um riso afogado de bêbado, que mais lembrava um latido áspero de cão doente. Riu alto como um alucinado. Sua situação era tão miserável que ele acabou achando graça.
Ele, Jason, abrira a arca maldita. Cometera o mesmo erro que alguém da mitologia grega, povoando o mundo com o que podia haver de pior sob os céus, as coisas mais temíveis que pudessem existir acima dos mares e sobre a terra. E apenas ele, praticamente apenas ele restara a bordo do galeão amaldiçoado. Ele permanecera ali. Jason Hope. Na mitologia grega, após a abertura da caixa de Pandora e liberação dos males no mundo dos homens, apenas a Esperança restara dentro da caixa. E Hope significa Esperança em inglês. Jason soltou uma sonora e insana gargalhada.
Somente agora percebia a macabra coincidência, a irônica ação do destino. Mas parou de rir tão subitamente quanto começara. Ele era apenas um homem cheio de maldades e amargor. A despeito de seu belo sobrenome, não havia qualquer resquício de esperança em seu coração negro. Terminando de carregar a pistola, Jason Hope encostou-a na própria testa e posicionou o dedo no gatilho. Respirou fundo.
O contato frio e áspero do metal contra a sua pele provocava ondas de arrepio. Hope foi invadido pela tentação de disparar a arma e acabar logo com tudo aquilo. Seu pensamento vagou para longe, buscando imagens confusas de sua vida, trazendo à tona imagens de um passado que ele perdera, ou desejava esquecer. Dizem que isso é o que acontece a todo homem à beira da morte; relembrar a vida. Apenas precisava acionar o gatilho e Bam! Aqui jaz o capitão pirata Jason Hope... Era isso o que ele era. Seria lembrado, talvez até com deferência pelos bandidos do mar, mas com desprezo pelas outras pessoas. O opróbrio dos homens. Além de capitão corsário, quem havia sido Jason Hope nesse mundo?
Um guerreiro destemido. Um pirata impiedoso. Um assassino talentoso. Um bandido vil. Alguém que não temera Deus nem Diabo durante toda a vida, pelo menos até botar o pé naquele galeão. Um inglês movido pelo ódio. Ignorava a segurança trazida por uma família. Desconhecia o amor verdadeiro de uma mulher. Um homem que era prezado por poucos. Que não tinha para quem voltar quando estava em terra. Sem família. Sem mulher ou filhos para deixar como herança nessa vida.
Seu único amigo era alguém chamado Francis Drake, para muitos, um pirata odioso. Para ele, um irmão. Jason Hope morreria por seu amigo e comandante sem hesitar, se fosse preciso. Daria a vida para defender a vida, a honra, a reputação de seu devotado amigo inglês, o qual deveria estar a léguas de distância, vasculhando cada milha marítima à sua procura. E foi a lembrança da amizade que Francis Drake nutria por ele que impediu Jason Hope de apertar aquele gatilho. Imaginou o olhar de decepção de Drake ao ver Hope caído naquele camarote, um furo sangrento entre os olhos, os miolos espalhados pelo cômodo, a pistola na mão, denunciando sua atitude covarde. Hope estremeceu.
Envergonhado pelo que pensara em fazer, o capitão sentiu asco do contato da arma e a afastou rapidamente, devolvendo-a a seu devido lugar, prendendo-a na faixa de seda que ele trazia na cintura.
Então, Hope notou que o camarote estava imergindo na penumbra. A noite se avizinhava silenciosamente. Angústia trazida principalmente pela situação. Solidão profunda. Com um grunhido, Jason Hope esfregou os olhos, colocando um ponto final em seus devaneios de agora há pouco. Era hora de calar o coração e por a mente em funcionamento. Que seus instintos perversos aflorassem, precisava deles para sobreviver. Subitamente algo estilhaçou o silêncio mortal, fazendo Hope virar a cabeça bruscamente. Uma voz de homem. Sotaque espanhol. Entoava uma canção de sua terra natal. Música cigana lhe chegava aos ouvidos, procedente do convés. Não se tratava apenas de alguém cantarolando. Aquilo era um indício de presença sobrenatural. Um chamado. Um convite ao combate.
 Diante disso, sem mais delongas, Jason Hope se colocou de pé e cambaleou para fora de seu camarote, alcançando o corredor para em seguida, com passos trôpegos, deixar o castelo de popa e encarar seu destino. A maresia embriagou Hope, devolvendo-lhe um pouco de lucidez. A lua cheia mais uma vez boiava no céu, e sua luz prateada banhava inteiramente a figura fúnebre do Pandora. Quando o inglês surgiu no convés, o luar o atingiu em cheio, como se ele fosse alvo de um holofote.
Hope ouvia a voz proferindo as notas da melodia e, com o olhar, procurou sua origem. Havia a sombra de um homem parado junto da base do mastro principal, voltado para a proa, de costas para o pirata. Lentamente Hope desceu as escadas, buscando apoio onde era possível, já que o mundo girava vertiginosamente devido o álcool que circulava em suas veias, misturado ao sangue. Ouvindo seus passos, o outro homem se voltou vagarosamente, como se cumprisse um ritual. Olhando diretamente para o inglês, o intruso ainda cantava alegremente. Possuía uma voz de barítono e era bastante afinado. Pousando os olhos em Hope, parou de cantar de repente e sorriu cinicamente antes de dizer:
- Buenas noches! Usted deve ser el gran capitán Jason Hope, el pirata inglés. Ouvi hablar mucho a seu respeito. Gostaria de dizer que é un placer conhecê-lo, mas não seria verdad. 

  Continua...



Danilo Alex da Silva


“A maldição prosseguia nos seus olhares
O marinheiro desejou ter morrido
Juntamente com as criaturas do mar
Mas elas vivem, e ele também.”

(Rime of the Ancient Mariner – Iron Maiden)


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