22 de Abril de 2012 - 21:38 h
Caro caderno, eis-me aqui de
novo, para desabafar em suas páginas. Não chamarei você de diário, porque isso
é coisa de menina; a menos , é claro, que eu considerasse você uma espécie de
diário de bordo. Sim, isso daria mais certo. Me sinto como um capitão de navio,
enfrentando uma tempestade terrível, da qual nem o homem do mar mais experiente
pode dizer se escapará com vida. Enfim, onde paramos mesmo? Ah, sim! Falávamos
da minha compra na loja do senhor Ramón.
O objeto em que estive
tão empenhado em comprar, e que assustou tanto meu camarada Carlos, era aquilo
conhecido como tabuleiro de ouija.
Talvez você já tenha ouvido falar. Desde a antiguidade é utilizado por bruxos,
adivinhos, necromantes e ocultistas para comunicação com espíritos bons e maus,
e às vezes até com demônios. Uma tábua de madeira com vários símbolos como lua
e sol, pentagramas, caveiras e estrelas, além do básico: os dizeres “sim” e “não” dispostos em extremidades diferentes do tabuleiro, bem como “olá” e “adeus”. Também há as letras do alfabeto e os números de 0 a 9.
O que comprei era uma tábua plana envernizada,
toda trabalhada artisticamente, tinha as bordas e a parte de baixo marrons, e a
face onde ficavam as letras era mais clara, da cor da madeira, para facilitar a
visibilidade. O tabuleiro era acompanhado de uma palheta triangular vermelho-escura
com uma abertura circular no centro, através da qual eram lidas as letras ou
palavras que a entidade invocada quisesse mostrar.
Saí da loja esfregando
as mãos de contentamento, enquanto Carlos segurava a sacola com o tabuleiro,
esboçando uma careta que mesclava contrariedade e receio.
- Agora, vamos
aproveitar que as férias estão chegando, para marcar algumas “sessões” com o
tabuleiro em nossas casas. Isso vai ser só um pretexto para Julia e as amigas
se encontrem conosco fora da escola, já que essa geringonça – falei batendo com
o nó dos dedos na sacola contendo o jogo – com certeza não atrai nada além de
pessoas ingênuas.
- Não sei não, cara.
Não sei não... – repetia Carlos inquieto, entre um muxoxo e outro de desagrado,
tanto por minhas maquinações, quanto por estar segurando um tabuleiro que lhe
causava emoções tão ruins.
Com um meio sorriso,
dei-lhe um tapinha amigável nas costas e continuamos andando, falando sobre
amenidades para não perturbá-lo mais.
No dia seguinte, quando
contamos a novidade na escola, imediatamente nos tornamos o centro das atenções
da turma. Nos intervalos dos horários ou no recreio, Carlos e eu éramos
rodeados e crivados de perguntas a respeito do macabro jogo. Queriam saber se
já tínhamos usado o tabuleiro, se algum espírito se manifestara, se eles também
poderiam jogar conosco. Similarmente aos participantes de reality shows, de uma
hora para outra ficamos famosos por uma razão esdrúxula.
Mas o melhor de tudo
era que Julia quase sempre estava entre os curiosos. Carlos respondia as
perguntas de modo reticente e com ar de enfado, mas eu estava adorando aquela
inesperada notoriedade. Quando percebia Julia na súbita platéia, eu falava com
bastante empolgação, explicava como era o tabuleiro, gesticulava, comentava
como planejava jogar, o que perguntaria. E nossa popularidade subia meteoricamente, já que nossos
colegas estavam cansados de improvisar com canetas e copos, e queriam mesmo era
sentir a emoção de contatar um espírito por meio de um tabuleiro próprio para
essa comunicação sobrenatural.
Como eu não poderia
levar o jogo para a escola, porque era contra as normas, os poucos corajosos
que estavam determinados a seguir até as últimas conseqüências naquela brincadeira maluca teriam de ir até minha casa. Assim que expus a idéia e vi o pessoal
concordando, principalmente as garotas, incluindo uma entusiasmada Julia, olhei
para Carlos e pisquei disfarçadamente, como quem diz que tudo está saindo
melhor que encomenda. Mas ele abanou a cabeça com indiferença. Definitivamente
meu melhor amigo não gostara da minha compra. No fundo, ele sabia que havia
algo muito errado.
Mas, como disse antes, até então essas
apreensões de Carlos para mim eram mera ignorância; raízes de uma cultura que
nos ensina a ser supersticiosos. Para mim, crer em presságios, espíritos ou
comunicação com os mortos era algo muito mais apropriado a um camponês romeno
que habitasse ao redor dos Montes Cárpatos. Tais crenças e medos não poderiam residir no
coração do homem moderno. Carlos era um garoto esclarecido, conhecedor das
coisas, entendia como o universo funcionava e sabia que havia de milhares de
explicações lógicas e científicas para cada situação menos usual que os
fanáticos religiosos saíssem apregoando absurdamente aos quatro ventos como
milagres. Carlos era meu amigo desde criança. Conversávamos sobre ciência,
tecnologia, filosofia, literatura. Como ele, tão culto, poderia temer um pedaço
de madeira pintada?
Procurei descobrir um
dia propício para o pessoal vir até minha casa, para usarmos o tabuleiro ouija.
Logo soube que no sábado meus pais precisariam ir até a cidade vizinha, visitar
um tio meu que andava com problemas de saúde. Foi tranqüilo convencê-los de que
eu precisava ficar em casa para estudar, que era semana de prova e que meus
amigos viriam fazer trabalho de escola. Como sou filho único, eles se mostraram
um pouco preocupados, mas eu expliquei que ficaria bem e que, havendo qualquer
problema, eu ligaria imediatamente para eles. Na sexta à tarde então, faltando
pouco para o anoitecer, eles entraram no carro e partiram, não sem antes eu
ouvir milhares de recomendações de minha mãe e receber no mínimo dez abraços de
urso do meu pai. Ser filho único é bacana na maior parte do tempo; entretanto,
algumas vezes é um saco. Eles me tratam como criança, detesto isso.
Depois que o Siena
prata da minha família partiu suavemente e dobrou a esquina, levando consigo
meus pais, que só voltariam no dia seguinte pela tarde, eu entrei radiante e
esperei pela chegada dos amigos da escola. Apareceram quinze pessoas, sendo
oito meninos e sete meninas. Se Julia veio? Claro que sim! Eu sabia que ela não
perderia aquilo por nada nesse mundo.
Eu tinha preparado a
sala de estar para jogarmos. Acendi umas velas dispostas em círculo pela sala e
diminuí um pouco a intensidade das luzes, gerando uma semi-escuridão, para
criar um clima. Antes do jogo, conduzi meus convidados até a cozinha. Ali, ao
som de World of Glass, do Tristania,
degustamos uma taça de vinho tinto espanhol que Julia trouxera.
- Esse é o melhor que
há. – ela dissera suspirando após um gole, erguendo a taça contra a luz para
fitar inebriada o líquido escuro e carmesim.
Acho que o vinho que
ingeríamos era uma alusão ao sangue. Góticos, adeptos de cultos vampirescos e cristãos
parecem ter isso em comum. Bem, de qualquer forma, percebi que Julia entendia a
degustação do vinho como uma das partes do rito de preparação para o contato
com o sobrenatural. Puxa vida, ela era mais maluquinha do que eu supunha.
Quando comecei a montar
o tabuleiro sobre a mesa circular da sala de estar, coberta por uma toalha de
mesa branca, senti falta do meu amigo Carlos. Ele não estava presente, teve de
comparecer a um aniversário de família.
- Não será melhor
esquecer essa idéia, Pablo? – ele me perguntara pela manhã, quando fui convidá-lo
para ir até minha casa naquela noite – Estive lendo que ocultistas não
recomendam o uso do tabuleiro a qualquer pessoa. Eles alertam que esse objeto é
perigoso. Não devíamos brincar com essas coisas que não conhecemos bem.
- Bobagem! – falei com
uma risada desdenhosa – Só conhecemos bem aquilo que podemos provar. Eu nunca
vi nada de incomum, Carlos. A garota que eu gosto curte essas coisas. Preciso
usar isso a meu favor.
Dando de ombros, ele me
explicou que tinha um aniversário para ir e desejou-me sorte.
E agora, ali estávamos
nós. Das quinze pessoas presentes, apenas seis decidiram sentar-se ao redor da
mesa. Julia, para minha alegria, sentou-se de frente para mim. Olhava para mim
de um modo indecifrável, mas eu sentia que o calor do vinho tinto nos tinha
aproximado um pouco. Cada um de nós colocou o dedo indicador da mão direita
sobre a palheta triangular, a qual repousava no centro do tabuleiro.
- Alguém quer fazer a
primeira pergunta? – perguntei, olhando dentro dos olhos negros de Julia. Era
bom ser dono do jogo, assim como é bom ser o dono da bola quando se é criança. Se
Julia não fizesse a primeira pergunta, ninguém mais ali teria o direito de
fazê-la.
O silêncio pesado era
apenas cortado pelo som ofegante das respirações dos presentes e o martelar
acelerado dos corações ansiosos. Então, a voz melodiosa de Julia atravessou o
ar e a quase penumbra da sala. Ela perguntou se havia alguém ali conosco,
espiritualmente falando. Automaticamente nossos olhares se voltaram para a
palheta sobre o tabuleiro. A onda silenciosa de expectativa fez brotar o suor
nas têmporas e nas axilas. Engraçado, se eu não acreditava em nada daquilo, por
que minha boca estava seca?Com certeza era devido a proximidade de Julia, e não
havia nada de sobrenatural nisso.
Mas, contrariando todas
as esperanças, a palheta não se moveu naquela noite. Nenhuma vez sequer. Outras
pessoas repetiram a pergunta de Julia e mesmo assim, não aconteceu nada de
diferente. Nada de luzes tremeluzindo, velas se apagando, portas batendo ou
correntes sendo arrastadas. Se Carlos estivesse ali, eu iria olhar para ele e
esboçar aquele sorriso cínico que só eu tenho, como quem diz: “Viu?Não te falei
que essas coisas não existiam?”
Depois de meia-hora de tentativas frustradas,
o pessoal desanimou e começou a partir. Julia foi a última a ir embora. Como
ela é bem mais baixa que eu, quando ouvimos seu pai buzinar lá fora, ela ficou
na pontinha dos pés e me beijou o rosto. Que fantasmas que nada! Isso foi o
melhor da noite. Assim que todos partiram tranquei as portas e janelas, apaguei
as velas e as luzes e subi para meu quarto, para assistir seriados antes de
dormir.
Essa não, justo hoje
que precisava continuar escrevendo para exorcizar meus medos e angústias, minha
mãe já está gritando para eu ir dormir. E é isso que me mata nos domingos à
noite: ter de deitar mais cedo, porque no dia seguinte tenho aula. O que me
consola é saber que faltam menos de doze horas pra eu rever Julia. Bem, vou me
despedindo então. O jeito é arrumar a cama e ir deitar, com a luz na cabeceira
ligada, é claro. Não confio mais na escuridão; nela há olhos que me vigiam. Pesadelos
são minha atual companhia durante as noites. Droga! Por que não dei ouvidos aos
incontáveis avisos de Carlos? Preciso ir, amigo caderno, meu diário de bordo.
Logo estarei de volta para narrar mais sobre esse mar bravio que venho
enfrentando sozinho.
Até breve!
Danilo Alex
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