"Renegado, renegado
Cometeu o pior dos pecados
Renegado, renegado
Desta vez o gatuno irá vencer"
(Renegade - Hammerfall)
Sean temeu perder de vez sua sanidade. Embrenhou-se no deserto imenso e ficou perdido, vagando, tentando inutilmente fugir de seu próprio desespero. Lágrimas ardentes queimavam seus olhos cinzentos, que já se encontravam vermelhos e irritados. O coração mal pulsava e a alma destroçada gritava de agonia em seu interior. Todo o seu mundo, arduamente construído com muito suor e dedicação, viera abaixo em pouquíssimo tempo, transformando-o em um ser corroído pela angústia mortal, assim como as velas que queimam nos altares das igrejas são consumidas pela chama.
O sol abrasador do deserto não se compadeceu de sua dor e o puniu com seus raios mortais, tostando de maneira inclemente sua pele branca. De tanto chorar e suar, Sean começou a se desidratar rapidamente. Seus lábios se ressecaram e sua língua, áspera e seca como uma lixa, colava-se dolorosamente ao céu da boca. Depois de três dias no deserto, enfrentando o calor infernal e o frio insuportável noturno, sofrendo privação de água e comida, seu cavalo, que já estava demasiadamente exausto e ferido, acabou morrendo na imensidão de areia vermelha, deixando Sean sozinho e perdido.
Já que negaram a ele qualquer chance de felicidade, ele perdeu toda e qualquer vontade de viver. Simplesmente desistiu. Agachou-se junto de seu cavalo morto e retirou dele a corda que servia como rédea. Depois se ergueu e olhou para uma imensa árvore desfolhada a alguns metros dele. A árvore estava seca, mas seu tronco era grosso e seus galhos, que pareciam fantasmagóricos braços retorcidos apontados para o céu, eram fortes o suficiente para suportar o peso de seu corpo.
Vertendo o que ainda restava de lágrimas em seus olhos, aproximou-se silenciosamente da fatídica árvore. Escalou-a até que ficasse a uma altura boa do chão. Depois sentou-se sobre um galho e, com firmeza e habilidade, amarrou uma ponta da corda ao galho mais grosso que encontrou. A seguir, com as mãos tremendo um pouco, começou a tecer o laço que ia envolver seu pescoço. Entretido nessa funesta tarefa, não percebeu que a temperatura variava consideravelmente. Um inexplicável vento frio afugentou o calor opressivo por instantes e, para aumento da aflição de Sean, uma súbita revoada de corvos aninhou-se na mesma árvore onde ele se achava pronto para dar cabo da própria existência.
Sean Ridell, tentando ignorar o bando de gralhas barulhentas que viera incomodá-lo em seus últimos momentos de vida, passou o laço pela cabeça e o ajustou firmemente ao redor do pescoço. Respirou fundo e olhou para baixo, tentando não pensar em nada. Decidira que não queria mais viver nesse mundo sem sua mulher e filho. Era apenas um rapaz da Costa Leste, experiente somente na vida nas cidades grandes, tarimbado nos assuntos relativos às comunidades ditas civilizadas. Apesar do infinito desejo de vingança, jamais soubera disparar sequer um tiro, seria uma presa fácil nas mãos daqueles homens que ganhavam a vida com armas em punho. O incêndio destruíra sua casa e o pouco dinheiro que tinha no banco não era o bastante para recomeçar a vida, tampouco servia para contratar um pistoleiro que desse fim aos malditos assassinos de seu empregado e sua família. Então, sentindo-se inútil, quis morrer. Desistir de tudo no meio do deserto árido como sua alma, tendo apenas o sol e os corvos como testemunhas. As gralhas, pousadas nos galhos, agitavam suas asas negras e grasnavam abrindo bastante o bico, como se empolgados pela iminência de uma morte.
Quando estava prestes a soltar o peso do corpo e balançar-se pendurado pelo pescoço até quebrá-lo, Sean ouviu uma voz que o fez estremecer:
- Essa não é uma boa idéia, garoto.
Sean olhou espantado na direção em que viera voz e só então se deu conta que havia um homem ali, a poucos passos dele, parado à sombra de um cacto. Era um sujeito muito alto, tenebrosamente magro, metido em roupas escuras e envolto em um longo negro sobretudo de couro, de estilo indígena. Usava botas pretas de cano longo, tinha um lenço vermelho cobrindo-lhe o queixo, a boca e o nariz, à maneira dos cowboys que queriam se proteger da poeira do deserto; de modo que apenas seus olhos, malévolos e brilhantes como diamantes, eram visíveis sob a aba caída de seu chapéu puído de couro preto. Luvas negras, próprias para cavalgar, ocultavam suas mãos. Também era possível ver que o homem tinha cabelos longos e escuros que saiam de seu chapéu, se derramando numa cascata encaracolada pela nuca. Havia um corvo empoleirado em seu largo ombro direito.
- Quem é você? O que está fazendo aqui? – indagou Sean, temeroso.
- Meu nome é Abigor, e eu habito essa região. – disse o estranho funestamente, sua voz profunda soando abafada pelo lenço no rosto, mas ainda assim capaz de fazer gelar os mais bravos e estremecer os mortos. Sua voz era grave, cavernosa, assustadora. Possuía um timbre definitivamente espectral. A aparição de Abigor causou arrepios no quase jovem suicida.
- Como é que você chegou sem que eu visse ou escutasse? – a Sean, aquilo não parecia certo. Sentia uma onda desagradável de medo crescer em seu âmago.
Abigor soltou uma gargalhada metálica e, com um gesto amplo com as mãos, mostrou o deserto antes de dizer:
- Esse é o quintal da minha casa, filho. Meu lar, meu habitat. Posso me mover por ele sem ser notado, se assim eu desejar.
- Vá embora, preciso fazer algo aqui e você está me atrapalhando. – rosnou Sean, tentando ser o mais hostil o possível.
- Você não quer realmente se matar, Sean. – Abigor falou com a naturalidade de quem conhece alguém há tempos. – Sabe que não.
O queixo de Sean caiu e ele apenas conseguiu balbuciar:
- Como? Como você sabe meu nome?
Agindo como se não tivesse ouvido a pergunta, Abigor prosseguiu com a mesma infalível tranqüilidade:
- Embora a corda seja confiável, o nó que você fez não é. Ele não resistiria quando você tentasse se enforcar, e você cairia, talvez frustrado, talvez aliviado. Estou mais inclinado a acreditar na segunda opção.
Esboçando uma careta de raiva, Sean apontou o dedo em riste para o sombrio recém-chegado, rugindo:
- Como pode dizer que meu nó foi ruim, se quando o trancei você não estava aqui? Tenho certeza que não estava, pois levantei a cabeça e olhei ao redor antes de atar as pontas da corda.
- O fato de você não me ver quando olhou, não significa que eu já não estivesse bem aqui, caro Sean. – rebateu Abigor com uma risadinha enigmática e irônica, que fez o sangue gelar nas veias do jovem Ridell. Antes que seu interlocutor pudesse digerir a informação, Abigor continuou, com sua voz cavernosa e perturbadora:
- Ambos sabemos que você poderia ter feito um nó bem melhor, porque seu pai foi um homem do mar, e, quando você tinha doze anos, ele te ensinou pelo menos quinze tipos diferentes de nós, os quais são praticamente impossíveis de desatar. Quando você amarrou as pontas, estava conscientemente determinado a tirar a própria vida, mas seu subconsciente não tinha a mesma certeza; por isso, sem perceber, você fez o laço de modo que houvesse uma chance de escapar dessa aventura com vida.
Os olhos brilhantes e malévolos de Abigor, semelhantes aos olhos do corvo em seu ombro, fixaram-se desdenhosamente por um instante no estupefato Sean. Em seguida, o estranho homem abriu a boca e continuou seu discurso com sua medonha voz trovejante:
- Você sabe que não quer morrer, Sean Ridell. Não agora. Não antes do que precisa ser feito. Seis homens devem morrer antes que chegue a sua vez, não é assim?
Agora a expressão de Sean não era mais de medo ou perplexidade, mas de sincera curiosidade:
- Você não é humano, é?
- Não, não sou humano. – disse Abigor, divertindo-se com a pergunta – E essa não é minha verdadeira forma. Se eu aparecesse a você em minha aparência original, você fugiria correndo como um coelho assustado.
- Você é um anjo?
- Digamos que já fui um, há muito tempo. – respondeu Abigor depois de refletir um pouco.
- Um anjo de Deus? – mal fez a pergunta, Sean se arrependeu.
A transformação em Abigor foi horripilante. Ao ouvir o Nome Sagrado, ele rugiu como um tigre enraivecido e agitou as mãos de modo pavoroso, os punhos macabramente cerrados. Dando dois passos em direção a Sean, que ainda se achava sentado no galho da árvore, foi a vez de Abigor apontar o dedo em riste e rosnar:
- Nunca mais repita esse nome em minha presença! E saiba que Deus não tem nada a ver com isso. Ele não se importa com sua dor, nem com a de qualquer outro humano.
De onde estava, Sean olhava para baixo e fitava Abigor sem piscar, quase hipnoticamente. O sol a pino produzia sombras infindas em qualquer coisa que estivesse de pé naquele deserto escaldante. Enquanto Abigor estava parado perto do cacto, sua sombra mesclava-se à da planta. Entretanto, quando ele caminhou em direção a Sean, sua sombra destacou-se da do cacto e acompanhou-o, revelando a verdadeira natureza de seu dono. A silhueta negra projetada no chão árido, que era idêntica a Abigor, mostrava uma figura alta, magra e alada, embora suas duas asas estivessem quebradas e inclinadas para baixo.
Fascinado, esquecendo-se da corda e de seu intento suicida, o rapaz desceu da árvore e postou-se diante da criatura quase humana parada diante de si. Imediatamente sentiu o cheiro ardente de enxofre e percebeu as emanações malignas que vinham do ser, bem como o ar gélido antinatural, sobretudo naquele lugar cujo calor era infernal.
Fingindo não notar o interesse quase infantil de Sean, Abigor prosseguiu:
- Trabalho para outro chefe, um que verdadeiramente se importa e se compadece da humanidade. Um injustiçado, assim como você. Desde sempre temos observado você, Sean Ridell. Sabemos que é um sujeito decente. E vimos o que aconteceu com sua família recentemente. Saiba que seu Deus não estava lá. Mas nós estávamos. Nós vimos o medo nos olhos de Kate e de James. Testemunhamos a bravura e a morte de Berthan, que enfrentou sozinho seis assassinos profissionais para tentar defender sua família. Mortos. Todos eles. Partiram desse mundo precocemente, em meio a um grande sofrimento. Vimos suas almas tomadas por confusão, tentando achar seu caminho depois de deixar os corpos. E você ficou aqui, para carregar o fardo da culpa pelo resto de sua vida. Essa é a recompensa que você merece por ter sido bom todos esses anos?
Vendo Sean ranger os dentes e cerrar os punhos com uma brasa de ódio começando a surgir no fundo de seus olhos cinzentos, Abigor sorriu, satisfeito. E deu continuidade ao seu diabólico discurso:
- Aqueles seis homens devem pagar pela dor que te causaram, Sean. E meu chefe quer que sua família seja vingada. Sua justiça, se assim concordar, pode vir dos abismos ardentes. Posso ajudar você a ter o que deseja, sua sede de vingança parece justa para mim.
- Me ajudar? Como? – o mensageiro infernal fazia jus à fama de que a oratória do diabo é impecável, irresistível às almas desesperadas.
- Muito simples, caro Sean. Você, sendo um rapaz bem educado, habituado a ambientes civilizados, não está acostumado à selvageria do Oeste. E não conseguiria enfrentar os seis assassinos de revólver em punho, já que nunca lidou com armas. Posso tornar você invencível. Vai ter o prazer de enviá-los pessoalmente ao meu senhor.
- Por que você me ajudaria? Eu não tenho dinheiro para o pagamento. – disse Sean, desconfiado.
- Mas tem algo muito mais valioso, Sean Ridell – falou Abigor sombriamente, com um brilho satânico nos olhos negros e inumanos – Você pode oferecer sua alma.
- Minha alma? – repetiu Sean, estremecendo.
- Sim, sua alma. Só precisa assinar um pacto comigo, e providenciarei um cavalo incansável para você, bem como armas que nunca precisarão ser recarregadas. Sem mencionar que, quando você disparar, jamais errará o alvo, e nenhum homem na Terra poderá se mover ou atirar tão rápido quanto você. Parece bom?
- Não sei, nunca antes pensei em negociar minha alma...
- E para que você vai querer uma alma torturada como essa? Manchada de culpa, de sangue inocente da sua família, embebida no líquido inflamável que é o anseio por vingança? Ela será mais útil para mim do que para ti. Não seja ridículo, Sean. Ainda preso a velhos conceitos cristãos? Ainda fiel ao Deus que esqueceu você?
- Minha alma... – balbuciou ele, verdadeiramente em dúvida.
- Sim. Sua vingança garantida com sua alma angustiada como paga. Isso, ou pode seguir em frente com seu enforcamento, depois que refizer o nó e torná-lo decente. Vamos lá, quero assistir a morte de mais um covarde. Preciso avisá-lo que no inferno os suicidas não tem nenhuma utilidade; são arremessados em um abismo sem fim, onde permanecem em queda por toda a eternidade. Realmente triste ser alguém em quem nem o próprio Diabo tem interesse, não concorda?
- Está certo, vamos fazer isso. – decidiu Sean Ridell friamente.
Com uma abjeta risada vitoriosa, imediatamente Abigor abriu o sobretudo e, de dentro dele, retirou um velho papiro amarelado, todo escrito em vermelho, com símbolos e caracteres estranhos. Desenrolou o papiro sem pressa. Depois, do corvo pousado em seu ombro, extraiu uma pena negra como ébano. Guardando a pluma no bolso por um instante, sacou um punhal cuja lâmina curva era cheia de inscrições místicas, e o cabo vermelho era adornado com figuras horripilantes.
- Estenda a mão. – ordenou a Sean.
Quando o rapaz obedeceu, fez um corte rápido na palma e o sangue vermelho escorreu, mas, antes que pingasse no chão, Abigor fez com que as gotas caíssem no documento diabólico. Assim que uma quantidade satisfatória manchou o papel amarelado, o anjo caído guardou o punhal e estendeu a pena do corvo para Sean:
- Assine no fim da folha usando seu sangue como tinta.
Quando Sean Ridell assinou o documento maldito, o vento quente do deserto gemeu em agonia, como se a própria natureza lamentasse a perda de mais uma alma humana.
- Está feito. – disse Abigor, agora sem esconder sua satisfação – Ali, atrás daquele rochedo encontrará um cavalo negro já selado e as armas das quais lhe falei. Não tente me ludibriar, Sean; este pacto é inquebrável enquanto eu tiver posse desse contrato. Para o seu próprio bem, fique longe de igrejas e locais consagrados; evitará muita dor se seguir este conselho. Tudo o que tem a fazer é montar seu cavalo e cavalgar. O animal sabe onde estão os assassinos de sua família, e o levará até eles. A ração do seu cavalo é um pouco, digamos, diferente: alimente-o com sangue uma vez por dia. Pode ser o seu, ou o de algum animal que encontrar durante a viagem. A partir de agora, você é meu servo, Ridell. Permanecerá na Terra enquanto eu precisar de você; eu determinarei seu tempo de vida. Quando chegar a hora, mandarei buscá-lo. Agora vai.
Sean foi buscar o cavalo: era negro como a pena do corvo com que assinara o acordo; seus olhos eram vermelhos e injetados, malignos e inquietos. Tratava-se de um animal grande e forte, de musculosa compleição, patas grandes e peludas, e crinas e cauda longas, esvoaçantes. Do alto de seu cavalo, o homem olhou uma vez mais para a figura apocalíptica de Abigor a fitá-lo.
- Vai, meu Renegado, e espalha o terror sobre a face da Terra. - bradou o anjo caído de modo ensandecido - Segue o caminho da tua vingança e, em meu nome, regue a terra com sangue maculado. Ceife almas para o meu mestre, que agora também é vosso! Vai!
O cavalo amaldiçoado de Sean empinou-se sobre as patas traseiras e relinchou de modo demoníaco. Em seguida, o rapaz girou o animal, que automaticamente escolheu uma direção e se pôs a galopar furiosamente, veloz como vento. Enquanto se afastava do local maldito, Sean percebeu que a revoada de corvos abandonara a árvore onde ele quase se enforcara. Uma nuvem de asas negras e ruidosas agora o acompanhava do alto. Envolto pela atmosfera de poeira que o galope erguia, e suando sob o sol inclemente da tarde desértica, durante muito tempo Sean Ridell ainda ouviu as risadas metálicas e arrepiantes de Abigor, até que elas se perdessem na distância.
Danilo Alex
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