quinta-feira, 29 de março de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte IV

"Ele espreita em terras das sombras, Silencioso, com a arma na mão
Atacando como um réptil, tão feroz
Não há como escapar, Não há tempo para uma última oração
Quando o gatuno se aproxima por trás"

(Renegade - Hammerfall)



Era essa a dolorosa história que diariamente desfilava diante dos olhos cinzentos de Sean Ridell. Uma história pior do que qualquer pesadelo, a qual o acompanharia durante seu período de suplício neste mundo. E depois de ter vivido tanto sofrimento, ter presenciado tanta dor e morte, ter passado por tantos dias sangrentos, quem poderia julgá-lo? Era um homem espiritualmente em frangalhos, que perdera tudo, até sua alma imortal. Um emissário do inferno, um Renegado pertencente às profundezas eternais.

Galopava agora através do deserto aparentemente infinito, rodeado por cactos, animais selvagens e um mar interminável de terra e areia. À leste e ao sul, imensas montanhas vermelhas e rochosas se erguiam contra o céu noturno do deserto, formando um descomunal cinturão de montanhas, passos e canyons que abarcava boa parte do horizonte longínquo. A temperatura gélida e o vento impetuoso estariam congelando qualquer pessoa normal, que com toda certeza morreria de hipotermia. Mas desde o encontro com Abigor, Sean Ridell não era mais um ser humano comum.

A despeito da obscuridade aterradora, seus olhos estavam diferentes, mais potentes; ele conseguia enxergar com inacreditável nitidez o deserto em seus mínimos detalhes. Não precisava da lua ou das estrelas, seus olhos eram capazes de ver na escuridão com a mesma precisão que durante o dia. Não sentia mais tanta fome ou sede, podia permanecer muito tempo sem comer ou beber nada. O frio não o afetava como antes, bem como o calor. E, conforme Abigor explicara, a Morte não tinha permissão para tocá-lo. Fizera o teste: apanhara um escorpião de barriga amarela no deserto e o irritou, até que o mortífero aracnídeo o picou. Assim que o escorpião atingiu sua mão com seu ferrão venenoso, Sean sentou-se em uma pedra no meio deserto e esperou pacientemente, com o sol impiedoso sobre sua cabeça. Ainda podia sentir dor, e ela o angustiou durante horas. O local ferido inchou e a pele escureceu, necrosada. Fora isso, não aconteceu mais nada em seu organismo. Em dado momento, durante a tarde, os corvos levantaram vôo e seguiram em formação rumo a Conquest City. Como já sabemos, estavam indo anunciar a chegada do Renegado maldito que procurava vingança.

Quando começou a escurecer, percebendo que o veneno tinha sido neutralizado de forma preternatural por seu sombrio guardião, Sean Ridell se levantou e olhou a mão ferida. Espantado, notou que não havia mais nem sinal de machucado na mesma, ela estava tão sadia quanto antes. Constrangido, ouviu a risada sarcástica de Abigor em seus ouvidos, a gargalhada fúnebre e grave parecia vir de todos os lados, embora o anjo caído não estivesse visível. Então, com um suspiro conformado, Sean sacou um dos revólveres que Abigor lhe havia dado, e o apontou para o alto. Sem olhar para cima, apertou o gatilho uma única vez. A arma amaldiçoada trovejou pelo deserto, como o brado colérico de mil demônios em ataque. Então, Sean esperou.

Instantes após o disparo do revólver diabólico, alguma coisa caiu do alto e ficou estatelada aos seus pés. Os olhos cinzentos de Sean vislumbraram o abutre sangrando esticado no solo arenoso, morto pelo balaço, as asas tragicamente abertas. O Renegado apanhou então a ave morta e se aproximou de seu cavalo maldito. Com sua proximidade, o enfeitiçado garanhão negro sentiu o cheiro de sangue e ergueu as orelhas, animado. Simplesmente arrepiante a cena que veio a seguir: Sean espremeu a ferida da ave e deixou que as gotas vermelhas e ainda quentes caíssem na boca de sua montaria bestial, que as sorveu com avidez.

Depois de alimentar o cavalo, Sean Ridell montou-o e retomou seu caminho. Não tinha pressa nenhuma, sabia que seus alvos não poderiam escapar dele, não importava o quão longe fossem. O único modo do bando Chamas do Inferno sobreviver à ira de Sean Ridell era se refugiando em uma igreja, ou sendo gloriosamente arrebatado às alturas, em carne e osso, por algum anjo complacente invocado por eles. Ambas as alternativas pareciam improváveis, dada a conduta daquele sexteto maldito. Havia ainda o fato de que os assassinos certamente não pensavam em fugir ou se esconder, pois não temiam nada nem ninguém, e não faziam a menor idéia de quem, ou melhor, do que estava perseguindo seus passos. Pior para eles. Melhor para o Renegado infernal.

 Conforme Abigor predissera, o animal de Sean não se cansava nunca. Já viajara a galope durante um dia inteiro, sem parar, e o garanhão negro não demonstrara o menor sinal de cansaço. As poucas vezes em que o bicho apenas reduziu notoriamente a velocidade indicaram a Sean que era hora de sua macabra refeição. Absorvida a dose diária de sangue, o cavalo recomeçava seu galope fantasmagórico sem que Sean ao menos precisasse tocar as rédeas. Montar aquele cavalo era como cavalgar o vento impetuoso. Durante as tardes, o pelo luzidio, de tão negro, adquiria um tom azulado sob o sol forte que irradiava calor ao deserto, ao mesmo tempo em que cauda e crina esvoaçavam ao vento cáustico. Durante a noite, ele praticamente se tornava invisível, com exceção do par de olhos vermelhos e vampíricos que brilhavam tetricamente em meio às trevas. As patas enormes e peludas atingiam o terreno acidentado com força, quase com raiva, erguendo uma densa nuvem de poeira, produzindo um castanholar lúgubre e irregular que se diferenciava de qualquer animal deste mundo.

Sean já reparara que as ferraduras deixavam marcas ferventes e enegrecidas no solo, como se algo sobrenaturalmente quente houvesse pisado ali. Além do que, também ficavam vestígios amarelados de enxofre nos sulcos deixados pelas ferraduras do sombrio animal.  E Sean Ridell viajava sem pensar em pausa para descanso. A noite não lhe era ameaçadora, muito pelo contrário. As sombras o protegiam e pareciam fortalecer seu dantesco garanhão. Alguns dias atrás era um pacato cidadão, esposo e pai dedicado. Agora era um cavaleiro desalmado imortal, sem nada a perder, movido apenas pelo desejo de vingança. Não podia nem mesmo morrer, já que estava unido a um demônio por um pacto de sangue que condenara sua alma, a única coisa de valor que ainda possuía. Mas não se arrependia. Não. Absolutamente. Se, como Abigor dissera, Deus o abandonara, ele não hesitara em devolver na mesma moeda, voltando-Lhe as costas.

Ainda naquela noite, corrompendo qualquer resquício de humanidade que houvesse em si, Sean Ridell quebraria a Lei Sagrada e mataria o seu próximo. Repetiria o crime de Caim e, pior, se comprazeria com isso. Já recebera o seu castigo: as portas do Paraíso estavam cerradas para ele por todo o sempre desde o momento em que empunhou aquela pena de corvo para assinar o contrato diabólico com seu próprio sangue. Profanação! Heresia! Sacrilégio! Cometera o pior dos pecados, pois sangue era vida, e Sean ofertara a sua ao Diabo, recusando deliberadamente qualquer esperança de salvação e abraçando o tormento eterno, exatamente como Judas. Barganhara sua alma.

Embora a intenção assassina de Sean não fosse nem um pouco altruísta, ele acreditava que alguém se favoreceria, ainda que indiretamente, com sua vingança. Afinal, aqueles malditos precisavam ser detidos, e a justiça humana não era capaz disso. Muitos xerifes e delegados honestos, tentando desempenhar essa tarefa, haviam partido desse mundo, deixando suas famílias desamparadas e o dever por cumprir. Quem sabe a reciprocidade de Sean ao mal que lhe haviam feito fosse um favor a todos os cidadãos de bem. Quantas vidas seriam salvas quando ele varresse aquela escória desse mundo? Quantos roubos, estupros e homicídios seriam evitados? Quanto sangue inocente seria poupado? Talvez a condenação da alma de um homem servisse como oblação pelo bem de tantos outros. No fim das contas, podia ser que todo aquele mal trouxesse algum benefício.

Estava justamente no meio dessas divagações quando, do alto de seu cavalo, avistou ao longe uma caravana de viajantes, composta por quatro carroções. Os veículos estavam cercados pelo negrume da noite e um numeroso bando de malfeitores. Mesmo àquela distância, com seus poderes sobrenaturais Sean Ridell pode sentir a maldade no coração dos patifes e farejar suas almas. E elas fediam a podridão.

Os pensamentos daqueles homens eram os piores. Sean foi alvejado por um instante de dúvida e ponderou. Se não interferisse imediatamente, haveria mais banhos de sangue. Mulheres seriam violentadas diante de suas crianças e maridos, e depois elas seriam obrigadas a assistir enquanto aqueles miseráveis matavam seus entes queridos.

Se Sean decidisse simplesmente virar a face e seguir seu caminho, viajantes inocentes, pessoas honestas e decentes teriam suas vidas estraçalhadas nas mãos daqueles tipos que já deviam ter ido para o inferno há muito tempo. Mas aquilo realmente competia a ele? Pensou durante mais alguns segundos e o espocar de tiros o arrancou de sua reflexão. Não pudera salvar sua família, mas tinha a chance de salvar mais de uma ali. Os viajantes poderiam morrer na linha de fogo. Sean, não. Era isso, lutaria. Usaria fogo contra fogo, reverteria o inferno em suas veias contra aqueles diabos de carne e osso. Partiu num galope velocíssimo em socorro daquelas pobres almas que não resistiriam mais muito tempo ao cerco dos bandoleiros; a passagem de seu cavalo produziu chispas.

Mesmo na escuridão, pode contar quinze bandidos disparando contra a caravana, enquanto os viajantes se encolhiam dentro dos carroções e alguns respondiam aos tiros da melhor forma que podiam, expondo-se o mínimo possível. Os facínoras entraram em pânico quando um garanhão negro como  o carvão surgiu das sombras subitamente e atropelou meia dúzia deles, esmagando ossos e cauterizando peles com suas ferraduras escaldantes. Tentaram disparar contra ele, mas o bicho desapareceu como fumaça, bem diante de seus olhos. E então, um vulto apocalíptico aproximou-se deles.

- Essa é a noite do Juízo Final para vocês, abutres. – rosnou uma voz amedrontadora no seio da escuridão.

- Mal... maldição! – gaguejou um dos pistoleiros – É o Demônio! Sabia que uma hora ele vinha nos buscar.

 Os pistoleiros são homens extremamente supersticiosos e, embora não soubessem que naquela noite havia realmente motivos para temer, o horror começou a se alastrar entre os que sobreviveram à investida daquele cavalo demoníaco.

- Demônio ou não – bradou o que parecia ser o líder, tentando apaziguar os ânimos – Vamos dar a ele as nossas boas vindas, rapazes!

Quando inúmeros revólveres começaram a disparar em sua direção, nem mesmo Sean Ridell se reconheceu. Guiado por mãos invisíveis, esquivou-se das balas como se elas fossem mosquitos e viessem com a lentidão de uma lesma. Nenhum projétil sequer roçou sua carne. Sean sentiu cheiro de enxofre e um vento frio gelou seus ossos. A presença malévola de Abigor se manifestou em sua invisibilidade, assumindo as rédeas da alma de seu protegido.

- Vamos, Renegado, agora mostre a eles do que somos capazes. – sussurrou o mensageiro do inferno junto ao ouvido direito de Sean.

Atendendo a ordem do sombrio mestre, como se tivessem vida própria, as mãos de Sean Ridell sacaram as armas com uma velocidade alucinante. Empunhou os revólveres com determinação: era um par de Colts calibre 45 pretos e foscos. Os opacos canos mortíferos estavam marcados com inscrições infernais e os cabos eram feitos de chifre negro, provavelmente de algum animal caprino. Os dedos de Sean acionaram os gatilhos com a velocidade da luz e a precisão do ataque do falcão. O rugido das armas era pavoroso, parecia uma sinfonia da morte; uma mistura de uivos das almas condenadas com a risada maligna de mil anjos caídos torturando essas mesmas almas infelizes. Um turbilhão de fogo e chumbo emergiu daquelas bocas letais, e Sean perdeu a conta de quantas vezes ele disparou. A única coisa que soube é que tudo se passou em muito pouco tempo, e que quando parou de pressionar os gatilhos, não havia nenhum daqueles bandidos de pé mais.

 Enquanto o vento assobiava espectralmente, arranhando o silêncio mortal que se seguiu à batalha, Sean se pôs atentamente à escuta. Não ouviu mais a respiração abominável dos patifes e nem o pulsar de seus corações imundos. Tampouco foi capaz de captar a presença de suas almas malévolas; provavelmente Abigor já as levara consigo. Uma poça de sangue quente lavava o deserto e o garanhão negro imediatamente se adiantou para lambê-la.

Sean aproximou o cano das armas fumegantes de seu nariz e aspirou: elas tinham cheiro de morte, de metal fundido no inferno. Ao contrário do que pensava, não achou o odor repugnante. Tinha que ter cuidado, pois aquilo parecia viciante, exatamente como o aroma do ópio. Devolveu as armas aos coldres que trazia na cintura, apoiou o pé no estribo e voou para o alto de seu cavalo medonho. Então, sob o olhar atônito dos viajantes que espiavam emudecidos pelas frestas das lonas e do alto dos carroções, Sean Ridell sorriu, levou dois dedos à aba do chapéu à guisa de cumprimento e, galopando, desapareceu na escuridão. Deixando para trás uma pilha de corpos que serviriam de alimento para coiotes, chacais e abutres, levou consigo o inferno que trouxera aos malfeitores, o mesmo inferno que agora o seguia por toda parte. 


Danilo Alex

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