sábado, 31 de março de 2012

O Renegado - O Caminho para a vingança - Parte V

"Através da noite ele cavalga, Em seu cavalo enfurecido feito de aço

Nada pode salvar você agora, Perante o renegado você se ajoelhará"
  (Renegade - Hammerfall)



        
 Noite adentro, na velocidade do raio, Sean e seu cavalo maldito cruzavam a imensidão mortal do deserto. Os animais, fossem eles selvagens ou não, devido sua percepção aguçada inata tem maior sensibilidade em relação ao sobrenatural. Por isso, quando Sean e sua montaria estavam por perto, os seres habitantes do deserto conseguiam captar com intensidade a eletricidade diabólica que flutuava no ar. A passagem do cavaleiro amaldiçoado e seu cavalo antinatural despertava o medo no coração dos animais das imediações, independentemente de seu tamanho ou nível de ferocidade. Sentindo o cheiro de enxofre e a atmosfera de vibrações malignas, e ouvindo o castanholar bestial do negro garanhão vampiresco, todos fugiam em debandada: chacais, leões da montanha, coiotes, abutres, serpentes, aranhas e escorpiões. A natureza demonstrava sua sabedoria milenar relativa à própria sobrevivência, visto que ninguém queria ficar no caminho fatal das crias das trevas. 

Sean vencia a distância com uma espécie de ansiedade lúgubre; faltava agora muito pouco e ele já podia antegozar sua vingança, pela qual trilhara todo aquele árduo caminho de escolhas difíceis e situações sangrentas. O vento trazia aos seus ouvidos as notas alegres de um piano e um banjo, o eco jubiloso de risadas e arrastar de cadeiras, o som áspero de copos espumantes deslizando sobre um balcão polido, assim como o rumorejar de cartas que aterrissavam com suavidade sobre o pano verde de mesas sobre as quais se jogava animadamente o pôquer. Resumidamente, embora faltassem ainda uns quatro quilômetros para chegar, o Renegado escutava claramente a movimentação do saloon Night Train, situado na rua principal de Conquest City, no estado do Kansas, encravado no centro-oeste americano, onde se refugiavam seus alvos. A fria noite de sua vingança era uma sexta-feira entre muitas, considerada comum pela maioria, mas escolhida a dedo por Abigor, já que a colheita de almas durante aquela lua, naquele exato mês, fortalecia imensamente o exército apocalíptico que aguardava nas profundezas espirituais o momento da batalha final contra as hostes celestes. 

Finalmente Sean batizara seu cavalo amaldiçoado. Chamava-o agora de Pandemônio. Por mais estranho que isso possa parecer, o Renegado se afeiçoara ao feérico garanhão de um modo que surpreendeu até ele mesmo. Talvez isso houvesse acontecido porque Pandemônio era sua única companhia durante aquela aventura fantástica, uma saga sombria que não poderia acabar bem; uma fábula em cujo desfecho ele viveria infeliz para sempre. E diante dessa inevitável perspectiva, Pandemônio era sua companhia inseparável, apesar de ter sido concebido não por uma égua, mas por obra do diabo. 

Finalmente alcançou a entrada de Conquest City. Quando o eco dos cascos de Pandemônio soou pela rua principal, o vento estagnou-se subitamente. O tempo pareceu congelado por um instante brevíssimo, e um silêncio sepulcral reinou durante milésimos de segundo, envolvendo aquela cidade que sediaria a vingança de um homem condenado pela crueldade alheia, forçado pelas circunstâncias a se tornar um hospedeiro do puro mal. Os olhos cinzentos e superdesenvolvidos de Sean Ridell descobriram sombras que se destacavam de seu garanhão e se alongavam. A seguir, como se possuíssem vida própria, as sombras espectrais percorriam metodicamente as casas e prédios rústicos de madeira que compunham a cidade adormecida, talvez como na noite em que, inúmeros séculos antes, sob a ordem de Deus, o anjo ceifador visitara no Egito a cidade do Faraó, vasculhando as casas em busca de seus alvos, os primogênitos. Tentáculos de escuridão rumaram para o saloon, prenunciando o fim. 

Só então os corvos alojados nos telhados começaram conjuntamente a emitir seu crocitar macabro, um coro aterrador e agourento. O vento, que parecia ausente, repentinamente soprou com força e o sino da igreja começou a repicar na torre, melancólico, uniforme, sinistro. Ao fundo, num volume bem menos intenso, era possível ouvir o som proveniente do saloon. Vagarosamente, num trote tranqüilo, Sean subiu a rua principal e poeirenta de Conquest City. A precária iluminação pública da época impedia anemicamente que as ruas ficassem totalmente imersas na penumbra. A luz tímida lutava bravamente contra as trevas da noite, lançando reflexos bruxuleantes nas portas e janelas cerradas. Era perto de meia-noite e, fora o pessoal no saloon, a população dormia. Impelido pelo vento, um emaranhado de tumbletweed vinha rolando silenciosamente pelo solo poeirento; passou ao lado de Sean e sumiu na escuridão, subindo a rua com a brisa noturna. Páginas de um jornal velho apodrecido giravam no centro de um redemoinho que dobrava a esquina. Um gato preto cruzou a rua em disparada, indo encarapitar-se agilmente no muro de uma casa, e um cachorro vadio ganiu ao longe, assustado. 

Sempre em seu trote lento, Sean Ridell passou pelo armazém de Conquest City, depois pela funerária, o hotel, a redação do jornal, a loja de armas, a oficina do ferreiro e a pequenina escola. Em seguida vinha o escritório do xerife, a barbearia e finalmente o saloon, localizado bem em frente à sede do telégrafo. Conquest City era uma cidade média, composta por poucas vias. Na rua adjacente, ligada à principal por uma praça arborizada, em cujo centro havia um poço público, estavam situados o Banco de John Baldard, a prefeitura, uma loja de roupas e a casa do médico, que também servia como seu consultório. E na rua seguinte havia a modesta mas bela igreja, o estábulo municipal, a estação de trem, o galpão onde eram armazenados os grãos comprados dos fazendeiros na época da colheita, e a sede da agência de mineração. Se você seguisse por essa rua, ao fim dela ia sair da cidade e, se subisse a colina que existia logo em frente, chegaria ao cemitério, situado no topo da mesma. Nas ruas restantes, havia as casas dos moradores e muitos lotes vagos. Tudo mergulhado na semi-escuridão, embalado pelo som do saloon, o grasnar incessante dos corvos e o triste ecoar do sino eclesial. 

Voltemos agora à rua principal, onde o Renegado finalmente alcançara o saloon Night Train. Amarrados diante do mesmo, havia seis cavalos belos e robustos conquanto sujos, cobertos de lama e aparentemente exaustos. Pressentindo a natureza anormal do cavaleiro e sua montaria que se aproximavam, os seis cavalos bufaram e relincharam nervosamente, raspando asperamente suas patas no chão poeirento, e torcendo violentamente os esguios pescoços, na tentativa de ser libertarem das cordas que os impediam de fugir desesperadamente, conforme lhes ordenavam seus instintos. Com um meio sorriso, Sean apeou de seu próprio animal e afagou-o, dando um tapinha amistoso no pescoço largo, depois alisando a crina sedosa, longa e negra. Não pensou em atar Pandemônio, pois sabia que seu garanhão negro fantasma não iria a lugar algum; aguardaria seu dono, para que, depois de cumprida a missão naquela cidade, galopassem juntos por toda a aflitiva eternidade. Os olhos cinzentos de Sean contemplaram pensativamente a fachada do saloon, decorada com letras douradas e um crânio de boi pendurado logo acima da porta para, segundo a crença popular, afastar a má sorte e os maus espíritos. A música, que em qualquer outra situação seria convidativa e bem vinda, chegava com clareza aos seus ouvidos preternaturais. A claridade procedente do interior do estabelecimento escapava travessamente sob as duplas portinholas vaivém, e desenhava um quadrado de luz amarela na rua obscurecida. Determinadamente Sean Ridell subiu os poucos degraus de madeira na varanda e entrou na casa de entretenimento. 

A princípio, poucas pessoas repararam nele. Aos olhos de muitos, era apenas mais um viajante em busca de um trago para refrescar-se, música para distrair-se, e talvez uma boa companhia feminina com quem pudesse passar a noite. Entretanto, quando ele se dirigiu ao balcão repleto de clientes, algo diferente aconteceu. Um vento sibilante empurrou as duplas portinholas, que protestaram com um rangido doloroso de suas dobradiças. A temperatura do local esfriou repentinamente, trazendo aquela sensação malévola e inexplicável de que algo está muito errado. Velas e lampiões tremeluziram, quase derrotadas pelo sopro do vento intruso e sinistro. O medo subiu pela espinha dos presentes como uma aranha gelada e abominável, assim como se eriçaram os cabelos da nuca dos mais destemidos. A música cessou por um instante e todos os olhares se voltaram automaticamente para a porta. Só então repararam melhor no recém-chegado: um homem de boa aparência, alto e forte, rosto marcante e impassível, de traços firmes como granito; olhos tristes e enigmáticos, cinzentos como um dia nublado. O rosto era parcialmente sombreado pela aba larga e caída de seu chapéu preto amarfanhado. Um lenço preto envolvia seu pescoço taurino e luvas negras, suas mãos grandes. Usava botas de couro marrom de cano longo e esporas escarlates, assim com um sobretudo de couro vermelho-escuro que lhe ia até os pés, fechado até a altura da garganta por botões de cobre. Ao chegar, ele desabotoara o mesmo, deixando à mostra as roupas escuras que usava sob o sobretudo, e um cinturão ajustado ao redor do quadril, de onde pendiam dois coldres com armas de cabos negros ricamente ornados, um de cada lado de sua cintura. 

O velho Larry Parker, ocupado atrás do balcão, estremeceu ao contemplar a figura calamitosa que acabara de adentrar seu recinto. 

- Malditos corvos... – repetiu para si, dessa vez bem baixinho, num sussurro amedrontado. 

Onde estava aquele patife do xerife quando mais se precisava dele? - era o que pensava Larry, prevendo bagunça e prejuízo em seu estabelecimento. Josh Wilkins, o xerife de Conquest City, àquela altura já devia estar ciente da presença dos seis assassinos do Chamas do Inferno na cidade. E se de fato soubesse, o representante da lei jamais seria idiota o bastante para botar o nariz para fora de casa; carregava a estrela de latão no peito, mas não queria morrer, pois, como qualquer cidadão comum, ele tinha uma família que dependia dele. Seria suicídio para Josh pisar no Night Train aquela noite, porque homens da lei muito mais habilidosos do que ele tinham morrido nas mãos daqueles bandidos. 

Tão solenemente quanto se participasse de um velório, Sean Ridell caminhou em direção ao bar, o qual não ficava distante da porta; suas esporas retiniram em contraste com os sinos que ainda tocavam lá fora. Pasmos, os homens que se amontoavam ao redor do balcão deram um jeito de abrir espaço para o forasteiro. 

- Um uísque duplo, por favor. – pediu Sean olhando nos olhos de Larry. 

Parker o serviu de imediato e o fitou com uma mistura de curiosidade e temor. Céus! Que diabo de cheiro era aquele que vinha do estranho? Não era possível! A mente do velho dono do saloon estaria lhe pregando uma peça doentia, ou aquele estrangeiro trazia consigo odor de enxofre? 

O Renegado sorveu avidamente, de um único gole sua bebida e, com um profundo suspiro de satisfação, depositou o copo no balcão. 

- Mais uma dose dupla. – pediu, sedento. 

Larry reencheu o copo, e mais uma vez o conteúdo foi entornado em questão de segundos. Desde que selara o pacto, quase nada nesse mundo afetava Sean. Não podia se embriagar, porque seu corpo, sempre quente como se assolado por uma febre de quarenta e dois graus, não mais sucumbia ao efeito do álcool, não importasse quanto ele bebesse. Fazia parte de sua sina estar sempre sóbrio para se lembrar de cada mínimo detalhe doloroso de sua trajetória. Sua sede implacável também não podia nunca ser saciada, no máximo era minimizada por algum tempo. Abigor era um torturador nato, e tinha um péssimo, sádico senso de humor, pensava Sean. Depois de uma queda de braço com o seu demônio particular, ingerindo três doses de uísque duplo, quatro cervejas, dois chopes e uma garrafa inteira de vinho, Sean finalmente desistiu e pagou a conta. Abigor não permitiria mesmo que ele se aliviasse pelo menor instante que fosse, se afundando na bebida. Continuava sóbrio, sedento e febril. 

Ao colocar o copo no balcão, Sean causou um murmúrio de espanto entre Larry e os demais clientes do bar. Apenas as pessoas que estavam junto ao balcão perceberam o estranho fato: o vidro do copo estava todo chamuscado, com marcas enegrecidas de dedos que pareciam muito mais pertencer a um espírito de fogo do que um ser humano. 

Indiferente à expressão chocada dos homens que fitavam o copo que ele usara, Sean Ridell percorreu o ambiente infecto com seus olhos cinzentos, perscrutadores e sem vida. Aos poucos os presentes iam quase todos se esquecendo dele, o movimento já tinha praticamente voltado ao normal ali, de modo que a música, as risadas e as conversas enchiam o ar novamente. Por isso, quando o Renegado falou, precisou elevar bastante o tom de voz para que fosse ouvido acima de todo aquele barulho: 

- Estou à procura de seis bandidos cujos nomes desconheço, e não faço a menor questão de saber. Tudo o que sei é que são patifes covardes e assassinos, que integram um asqueroso bando chamado de Chamas do Inferno. 

Assim que ele terminou de falar, um silêncio pesado e mortal invadiu novamente o recinto, mas agora a apreensão era palpável, beirava o pânico e a loucura. Três homens de aspecto sombrio e repugnante sentados a uma mesa do canto se ergueram vagarosamente, como zumbis se levantando das tumbas. Os presentes, aterrorizados, agora fugiam em debandada, empurrando mesas e cadeiras. Buscavam refúgio nos cantos do saloon, tentando estar fora da linha de fogo do tiroteio que se iniciaria em poucos instantes. Homens e mulheres gritavam e corriam em todas as direções, esbarrando-se como baratas tontas. Assemelhavam-se a um bando de ratos assustados em fuga no porão de um navio indo a naufrágio. 

Olhando para Sean como se ele fosse um louco, os clientes no bar afastaram-se rapidamente, procurando proteção. De olhos arregalados, Larry Parker fitava Sean Ridell com o coração cheio de pena. Arrependera-se de servir tantas bebidas ao forasteiro, porque ele estava bêbado e agora ia morrer. Parker precisava admitir que parte dele admirava aquele excêntrico rapaz, o qual, depois de desafiar um grupo de assassinos temidos em todo o Oeste, permanecia de pé com toda a calma do mundo, como se soubesse exatamente o que estava fazendo. 

- Pobre tolo... – murmurou Larry, pesaroso. E se abaixou rapidamente atrás do balcão, para escapar dos tiros. 

Sean Ridell, o Renegado infernal, continuava de pé próximo ao balcão, altivo e imóvel como um totem indígena. Seus olhos cinzentos giravam atentamente de um lado para outro do saloon, sempre vigiando o trio de bandidos que agora o encarava friamente. Onde estariam os outros três bandoleiros? Usou seus sentidos diabolicamente amplificados a fim de vasculhar o ambiente, à caça dos demais integrantes do bando. 

- Espero que tenha apreciado seus tragos essa noite, amigo – vociferou um dos assassinos subitamente, sua voz rasgando tenebrosamente o silêncio pesado – Pois acredito que no inferno os drinques servidos sejam diferentes. 

Antes que Sean pudesse localizar os outros miseráveis, algo inesperado aconteceu. Embora nenhum dos três impiedosos tipos tivesse se movido, o cano de uma arma surgiu de trás deles, e foi apoiada no ombro do pistoleiro do meio. O quarto bandido estava escondido atrás dos companheiros o tempo todo, e agora apontava sua arma para o Renegado. Seu movimento ligeiro foi tão surpreendente, que apanhou desprevenido o próprio Sean. A arma que o bandido empunhava não era uma peça qualquer: tratava-se de um poderoso rifle Winchester 73, de longo alcance e poder de fogo devastador, capaz de acertar o alvo a 150 metros de distância sem que o projétil fosse desviado pelo vento. Naquela curta distância que separava os bandidos de seu aparentemente insano desafiante, a bala poderia atravessar o corpo de um homem sem muito esforço. 

Mirando por cima do ombro de seus comparsas, o bandido do Chamas do Inferno não hesitou em apertar o gatilho de sua ferramenta de trabalho. Ao mesmo tempo em que sua ponta flamejava, o Winchester trovejou, lançando sua chuva de chumbo e morte com um zumbido assustador. 

A bala fervente alcançou o tórax de Sean Ridell numa velocidade incalculável, com um impacto capaz de estraçalhar um búfalo. Assistindo seu peito explodir numa nuvem vermelha de sangue e fragmentos de ossos, e com a impressão de que até seu espírito fora trespassado, Ridell arregalou os olhos e emitiu um grunhido de dor. Sentiu como se tivesse sido atropelado pelo estouro de uma boiada. Brutalmente foi projetado de costas contra o balcão, onde ricocheteou. A seguir, ainda ferozmente desequilibrado pelo balaço, com passos rápidos e trôpegos viu-se arremessado contra a porta por um segundo tiro que dilacerou suas costas. A dupla portinhola vaivém cedeu sob o peso de seu corpanzil e se abriu com um rangido; o Renegado, experimentando uma dor inimaginável, sob murmúrios penalizados dos clientes e risadas humilhantes dos inimigos, foi cair na varanda. Desceu rolando pesadamente os degraus de madeira, que ficaram manchados com seu sangue profuso, e estacou no meio da rua. Permaneceu ali, de bruços e imóvel, bem ao lado de seu cavalo.

Danilo Alex

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