domingo, 4 de março de 2012

Defenestração - Luís Fernando Veríssimo

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
- Os hermeneutas estão chegando!
- Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
- Alô…
- O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser um barulho que o corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
- Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
- Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. Defenestração vem do francês defenestration. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância, mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimindo o tempo.

- Les defenestrations. Devem ser proibidas.

- Sim, monsieur le ministre.

- São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.

- Sim, monsieur le ministre.


- Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime.
Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: É proibido defenestrar. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.


Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestradores. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.
- Querida…
- Mmmm?
- Há uma coisa que preciso lhe dizer…
- Fala, amor
- Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
Estou pronta para experimentar tudo com você! TUDO!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada.
Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
- Fui defenestrado…
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela?
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.

Luis Fernando Veríssimo



Criar um texto tão incrível com uma palavra tão pouco usual! 
Através do seu peculiar humor, de uma forma singular e inteligente, o cara nos faz refletir sobre a necessidade de ler mais, ampliar nosso vocabulário, aprimorar nossa linguagem verbal.
Veríssimo é um gênio, ou não é, minha gente?

Desejo a todos um ótimo domingo
e uma semana maravilhosa.

Forte abraço

5 comentários:

  1. Sempre que leio essa crônica eu penso que lemos pouco e pouco conhecemos de nosso vocábulo. Eu amodoro palavras assim em desuso, tanto que batizei meu livro de Contos de ABANTESMA!
    Um mondbjus defenestrados pela telinha do meu pc.
    Nívea Sabino

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  2. Verdade, viu, Nívea!

    Ainda bem que temos essa consciência, né? Pena que nem todo mundo a tem.

    É deveras triste ver as pessoas ao nosso redor defenestrando a chance de adquirir conhecimento e se comunicar melhor.

    Mil abreijus defenestrados!!!

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  3. Maravilhoso!A minha "leitura" sobre as palavras nunca mais será a mesma.

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  4. Janaína, seja bem vinda!

    Sim sim, Veríssimo é genial, né?

    Em breve postarei mais textos dele.

    Obrigado pela visita e pelo comentário. Volte sempre!

    Abraço

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  5. ADOREI O TEXTO TEM PALAVRAS MUITO DIFERENTES E É BOM A GENTE CONHECER ... CONHECI O TEXTO COM O MEU PROFESSOR . EU ADOREII E ADORO ESSE TIPO DE TEXTO .

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