O tempo e as
circunstâncias o ensinaram a abominar a si próprio daquele modo, e o
transformaram naquilo que ele, mais do que nunca, era essa noite: um suicida em
potencial. Achava que fazia parte da escória do mundo, e julgava que devia
lidar com isso. Devia resolver o problema que ele mesmo representava aos que o
cercavam, precisava fazer isso para o bem de todos. Sem mais dúvidas ou
procrastinação. O fim tem seus fins.
Enquanto perambulava ao
acaso pelas ruas vazias de sua diminuta cidade imersa nas trevas da noite sem
lua, enfiando a mão nos bolsos frouxos das calças jeans puídas, Ricardo pôs-se
desanimadamente a pensar na vida, da qual estava prestes a dar cabo. Ricardo
Lemos tinha trinta e nove anos de idade, e há vinte era funcionário público
municipal; trabalhava em escritório, realizando um serviço burocrático
repetitivo, nada enriquecedor e, a seu ver, inútil. Recebia ofícios, organizava
os cartões de ponto dos colegas. Atendia ao telefone, cujo toque soava no
mínimo cinqüenta vezes, todos os dias durante o expediente. Transferia
ligações, anotava recados, reclamações e sugestões. Ouvia insultos e tinha de
aturar calado o mau humor alheio, sendo obrigado a servir de saco de pancadas
verbal para pessoas que nem se davam ao trabalho de lembrar de que ele, por
estar trabalhando, talvez merecesse um pouco de respeito. Apenas, talvez,
pensava.
Evidentemente sabia que
boa parte da culpa era sua, e por isso também se odiava; por ter parado no
tempo, estagnado. Devia ter estudado mais, investido em uma faculdade, prestado
um concurso para outra área, outra coisa. Quem sabe tentar trabalhar em algo
que realmente gostasse, e não somente porque precisava do salário, uma vez que
era casado e tinha criança em casa. Liane havia sido desde o início a sua luz
no fim do túnel. O que uma mulher como ela vira em um homem como ele? Boa
pergunta.
Todos esses pensamentos a
rondar sua mente sombria, tudo aquilo parecia ter acontecido com outra pessoa
e, mesmo assim, há muito, muito tempo. Sentia estar vivendo um passado alheio.
No presente, a única preocupação que o alcançava era saber de que forma iria
morrer. Pensou em várias coisas, mas nada lhe agradou. Talvez se atirar na
frente de um ônibus ou caminhão? Teve essa idéia quando passou em frente ao
mercado municipal e viu um ônibus solitário engolindo os raros passageiros que
se aventuravam a esperar o lotação àquela hora. Provavelmente aquele era o
último ônibus daquela linha naquela noite, o qual, terminando de despejar seus
passageiros, seguiria para a garagem. Ricardo logo descartou essa forma de
morrer esmagado sob um veículo tão pesado e grande: não queria ser recolhido numa pá pelos bombeiros.
Quando viu na esquina uma
drogaria que funcionava vinte e quatro horas, ele então analisou a hipótese de
overdose por remédios. Também não conseguiu se habituar ao pensamento de que
envenenaria a si próprio e teria de ficar esperando que isso surtisse efeito. Eliminou
mais essa opção da sua “lista” de possibilidades para suicídio. Caminhando mais
alguns quarteirões viu ao longe, elegantemente iluminada, a torre do prédio o
qual, antigamente, era a estação ferroviária da cidade, onde agora funcionava a
sede da prefeitura. Uma edificação imponente, graciosa, restaurada por ser
patrimônio e cartão postal da cidade, a qual agora se erguia majestosamente
espiando a noite do alto, sua cúpula cinza desafiando o céu escuro, banhada
pela luz poderosa de holofotes estrategicamente posicionados, instalados em sua base. A visão de tão
impressionante monumento lembrou a Ricardo de que morava em uma cidade erguida
sobre um histórico amplamente ferroviário. Muitas linhas de trem cortavam
vários bairros e, embora os vagões de passageiros estivessem extintos, os de
carga continuavam partindo repletos de soja, por exemplo, rodando sobre os
trilhos para inúmeros pontos do país. E contemplar a torre fez Ricardo se
lembrar de que havia na cidade uma altíssima ponte por onde a composição quase sempre passava rumo ao seu destino. De vez em quando se tinha notícia de que um ou
outro amargurado saltara de lá. Pelo menos não haveria erro. Pelo menos seria
uma morte rápida, embora dolorosa.
Antes que perdesse a
coragem, Ricardo Lemos decidiu-se. A tal ponte distava um bocado, chegar até
ela levaria no mínimo meia hora andando. Mas ele não tinha pressa. Com as mãos
nos bolsos, e um peso no coração, começou a solitariamente cumprir seu trajeto
mortal. Cada passo o aproximava da morte e a noite ainda não passava de uma
criança. Letal criança.
Continua...
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