sexta-feira, 12 de abril de 2013

Anátema - Parte II




O tempo e as circunstâncias o ensinaram a abominar a si próprio daquele modo, e o transformaram naquilo que ele, mais do que nunca, era essa noite: um suicida em potencial. Achava que fazia parte da escória do mundo, e julgava que devia lidar com isso. Devia resolver o problema que ele mesmo representava aos que o cercavam, precisava fazer isso para o bem de todos. Sem mais dúvidas ou procrastinação. O fim tem seus fins.
Enquanto perambulava ao acaso pelas ruas vazias de sua diminuta cidade imersa nas trevas da noite sem lua, enfiando a mão nos bolsos frouxos das calças jeans puídas, Ricardo pôs-se desanimadamente a pensar na vida, da qual estava prestes a dar cabo. Ricardo Lemos tinha trinta e nove anos de idade, e há vinte era funcionário público municipal; trabalhava em escritório, realizando um serviço burocrático repetitivo, nada enriquecedor e, a seu ver, inútil. Recebia ofícios, organizava os cartões de ponto dos colegas. Atendia ao telefone, cujo toque soava no mínimo cinqüenta vezes, todos os dias durante o expediente. Transferia ligações, anotava recados, reclamações e sugestões. Ouvia insultos e tinha de aturar calado o mau humor alheio, sendo obrigado a servir de saco de pancadas verbal para pessoas que nem se davam ao trabalho de lembrar de que ele, por estar trabalhando, talvez merecesse um pouco de respeito. Apenas, talvez, pensava.
Evidentemente sabia que boa parte da culpa era sua, e por isso também se odiava; por ter parado no tempo, estagnado. Devia ter estudado mais, investido em uma faculdade, prestado um concurso para outra área, outra coisa. Quem sabe tentar trabalhar em algo que realmente gostasse, e não somente porque precisava do salário, uma vez que era casado e tinha criança em casa. Liane havia sido desde o início a sua luz no fim do túnel. O que uma mulher como ela vira em um homem como ele? Boa pergunta.
Todos esses pensamentos a rondar sua mente sombria, tudo aquilo parecia ter acontecido com outra pessoa e, mesmo assim, há muito, muito tempo. Sentia estar vivendo um passado alheio. No presente, a única preocupação que o alcançava era saber de que forma iria morrer. Pensou em várias coisas, mas nada lhe agradou. Talvez se atirar na frente de um ônibus ou caminhão? Teve essa idéia quando passou em frente ao mercado municipal e viu um ônibus solitário engolindo os raros passageiros que se aventuravam a esperar o lotação àquela hora. Provavelmente aquele era o último ônibus daquela linha naquela noite, o qual, terminando de despejar seus passageiros, seguiria para a garagem. Ricardo logo descartou essa forma de morrer esmagado sob um veículo tão pesado e grande: não queria ser recolhido numa pá pelos bombeiros.
Quando viu na esquina uma drogaria que funcionava vinte e quatro horas, ele então analisou a hipótese de overdose por remédios. Também não conseguiu se habituar ao pensamento de que envenenaria a si próprio e teria de ficar esperando que isso surtisse efeito. Eliminou mais essa opção da sua “lista” de possibilidades para suicídio. Caminhando mais alguns quarteirões viu ao longe, elegantemente iluminada, a torre do prédio o qual, antigamente, era a estação ferroviária da cidade, onde agora funcionava a sede da prefeitura. Uma edificação imponente, graciosa, restaurada por ser patrimônio e cartão postal da cidade, a qual agora se erguia majestosamente espiando a noite do alto, sua cúpula cinza desafiando o céu escuro, banhada pela luz poderosa de holofotes estrategicamente posicionados, instalados em sua base. A visão de tão impressionante monumento lembrou a Ricardo de que morava em uma cidade erguida sobre um histórico amplamente ferroviário. Muitas linhas de trem cortavam vários bairros e, embora os vagões de passageiros estivessem extintos, os de carga continuavam partindo repletos de soja, por exemplo, rodando sobre os trilhos para inúmeros pontos do país. E contemplar a torre fez Ricardo se lembrar de que havia na cidade uma altíssima ponte por onde a composição quase sempre passava rumo ao seu destino. De vez em quando se tinha notícia de que um ou outro amargurado saltara de lá. Pelo menos não haveria erro. Pelo menos seria uma morte rápida, embora dolorosa.
Antes que perdesse a coragem, Ricardo Lemos decidiu-se. A tal ponte distava um bocado, chegar até ela levaria no mínimo meia hora andando. Mas ele não tinha pressa. Com as mãos nos bolsos, e um peso no coração, começou a solitariamente cumprir seu trajeto mortal. Cada passo o aproximava da morte e a noite ainda não passava de uma criança. Letal criança.

Continua...



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