quinta-feira, 11 de abril de 2013

Anátema




— Já bebeu demais por hoje, camarada. – declarou secamente o barman, recusando-se a atender ao pedido do freguês, o qual solicitara mais uma garrafa. Naquela noite, seria a oitava a tomar, caso o atendente não intervisse.
Segurando o copo vazio com a mão direita, o homem pousou seus olhos turvos no barman enquanto, com os dedos da mão livre, tamborilava com impaciência sobre o tampo ensebado do balcão.
 — E você, quem é? Minha mãe? – grunhiu com insolência — Quero outra cerveja agora. E bem gelada.
— Vá para casa, Ricardo. É tarde, sua esposa deve estar preocupada. Se não fizer isso por você, faça ao menos por Liane. Ela é uma boa mulher.
O freguês, o qual o barman chamou de Ricardo, deu uma risada metálica que mais parecia um latido, antes de replicar desdenhosamente:
— Ora, vamos, Roger! Te conheço bem, sei que você não é tão altruísta assim. Não é por causa de Liane que você quer que eu vá embora. Diga de uma vez o que quer dizer, e poupe a nós dois desse falso discurso moralista.
O rosto de Roger apresentou uma expressão dura diante dessas palavras, e ele cruzou os braços diante do peito, do mesmo modo que o faria um majestoso chefe índio desses filmes americanos de faroeste.
— Como preferir. Você extrapolou hoje. Sua cota mensal alcançou um valor absurdo. Nesse estabelecimento você não bebe mais nenhuma gota; pelo menos não até que eu veja a cor do dinheiro. Acerte o que me deve, e depois pode tomar quantas cervejas quiser e morrer de uma maldita cirrose. – fazendo uma pausa, Roger deu de ombros — Dane-se! Tanto faz.
Ricardo riu de novo ao dizer:
— Agora sim, estamos sendo sinceros. Roger, meu caro, me faça um grande favor, e vá para o diabo que o carregue, sim? – sua voz estava um pouco engrolada, mas seus reflexos pareciam intactos.
Irritadamente ele se levantou e saiu do bar quase vazio. O vento frio e úmido da noite o atingiu quando ele chegou à rua. Passavam quinze minutos da meia-noite. O céu escuro estava avermelhado, prenunciando chuva durante a madrugada.
 Embora naquele momento Ricardo detestasse o barman, em um ponto tinha que concordar com ele; sua esposa Liane era uma boa pessoa. Ultimamente era ela quem vinha segurando as pontas. Lembrou-se do olhar horrorizado dela quando, dois dias antes, Ricardo lhe dissera que estava desgostoso da vida e desejava morrer.
— Não diga uma coisa dessas nem de brincadeira. – censurou-o a mulher, arregalando os olhos — Os anjos podem ouvir seu pedido e dizer amém!
Ele ria do medo supersticioso da mulher. Que idéia! Em todo caso, Liane era sim, de fato uma boa esposa. Fazia o que podia ao lidar com um marido alcoólatra inveterado, o qual tomava remédios fortíssimos contra a depressão. Além disso, ela cuidava sozinha da filha pequena do casal, bem como se desdobrava no emprego de meio período como secretária, para depois ainda pelejar com as tarefas do lar. Ricardo sabia que não teria o direito de odiá-la caso descobrisse que ela, uma hora ou outra, tinha arranjado um amante. Tinha consciência de que era um esposo ausente e, mesmo àquela hora, vagando pelas ruas ermas da cidade adormecida, banhado pela amarelada e mortiça luz proveniente dos postes, não foi capaz de evitar o mórbido pensamento sobre quem seria o homem a ocupar seu lugar quando ele partisse.
Liane era uma década mais jovem que ele, e uma mulher bonita. Certamente que alguém surgiria para consolá-la. Provavelmente o melhor amigo de Ricardo. Afinal, os maiores canalhas geralmente não são aqueles que estão mais perto? Todavia, o fim estava próximo.
 Naquela noite nublada, Ricardo Lemos, um fracasso em forma de gente, deixaria de existir. O idiota do Roger, proprietário e barman daquele boteco que ele freqüentava levaria um calote dos grandes, porque os mortos não pagam suas dívidas. Por outro lado, Liane estaria livre de um fardo. Sim, era assim que Ricardo se via: como lixo, como peso morto. Tanto fazia se os anjos dissessem ou não amém: ele iria morrer naquela noite. Já se decidira.

Continua... 




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