— Já bebeu demais por
hoje, camarada. – declarou secamente o barman, recusando-se a atender ao pedido
do freguês, o qual solicitara mais uma garrafa. Naquela noite, seria a oitava a
tomar, caso o atendente não intervisse.
Segurando o copo vazio com
a mão direita, o homem pousou seus olhos turvos no barman enquanto, com os
dedos da mão livre, tamborilava com impaciência sobre o tampo ensebado do
balcão.
— E você, quem é? Minha mãe? – grunhiu com
insolência — Quero outra cerveja agora. E bem gelada.
— Vá para casa, Ricardo.
É tarde, sua esposa deve estar preocupada. Se não fizer isso por você, faça ao
menos por Liane. Ela é uma boa mulher.
O freguês, o qual o
barman chamou de Ricardo, deu uma risada metálica que mais parecia um latido, antes de replicar desdenhosamente:
— Ora, vamos, Roger! Te
conheço bem, sei que você não é tão altruísta assim. Não é por causa de Liane
que você quer que eu vá embora. Diga de uma vez o que quer dizer, e poupe a nós
dois desse falso discurso moralista.
O rosto de Roger
apresentou uma expressão dura diante dessas palavras, e ele cruzou os braços
diante do peito, do mesmo modo que o faria um majestoso chefe índio desses
filmes americanos de faroeste.
— Como preferir. Você
extrapolou hoje. Sua cota mensal alcançou um valor absurdo. Nesse
estabelecimento você não bebe mais nenhuma gota; pelo menos não até que eu veja
a cor do dinheiro. Acerte o que me deve, e depois pode tomar quantas cervejas
quiser e morrer de uma maldita cirrose. – fazendo uma pausa, Roger deu de ombros
— Dane-se! Tanto faz.
Ricardo riu de novo ao
dizer:
— Agora sim, estamos
sendo sinceros. Roger, meu caro, me faça um grande favor, e vá para o diabo que
o carregue, sim? – sua voz estava um pouco engrolada, mas seus reflexos
pareciam intactos.
Irritadamente ele se
levantou e saiu do bar quase vazio. O vento frio e úmido da noite o atingiu
quando ele chegou à rua. Passavam quinze minutos da meia-noite. O céu escuro
estava avermelhado, prenunciando chuva durante a madrugada.
Embora naquele momento Ricardo detestasse o
barman, em um ponto tinha que concordar com ele; sua esposa Liane era uma boa
pessoa. Ultimamente era ela quem vinha segurando as pontas. Lembrou-se do olhar
horrorizado dela quando, dois dias antes, Ricardo lhe dissera que estava
desgostoso da vida e desejava morrer.
— Não diga uma coisa
dessas nem de brincadeira. – censurou-o a mulher, arregalando os olhos — Os
anjos podem ouvir seu pedido e dizer amém!
Ele ria do medo
supersticioso da mulher. Que idéia! Em todo caso, Liane era sim, de fato uma
boa esposa. Fazia o que podia ao lidar com um marido alcoólatra inveterado, o
qual tomava remédios fortíssimos contra a depressão. Além disso, ela cuidava
sozinha da filha pequena do casal, bem como se desdobrava no emprego de meio
período como secretária, para depois ainda pelejar com as tarefas do lar.
Ricardo sabia que não teria o direito de odiá-la caso descobrisse que ela, uma
hora ou outra, tinha arranjado um amante. Tinha consciência de que era um
esposo ausente e, mesmo àquela hora, vagando pelas ruas ermas da cidade
adormecida, banhado pela amarelada e mortiça luz proveniente dos postes, não
foi capaz de evitar o mórbido pensamento sobre quem seria o homem a ocupar seu
lugar quando ele partisse.
Liane era uma década mais
jovem que ele, e uma mulher bonita. Certamente que alguém surgiria para
consolá-la. Provavelmente o melhor amigo de Ricardo. Afinal, os maiores
canalhas geralmente não são aqueles que estão mais perto? Todavia, o fim estava
próximo.
Naquela noite nublada, Ricardo Lemos, um
fracasso em forma de gente, deixaria de existir. O idiota do Roger,
proprietário e barman daquele boteco que ele freqüentava levaria um calote dos
grandes, porque os mortos não pagam suas dívidas. Por outro lado, Liane estaria
livre de um fardo. Sim, era assim que Ricardo se via: como lixo, como peso
morto. Tanto fazia se os anjos dissessem ou não amém: ele iria morrer naquela noite. Já se decidira.
Continua...
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