"A sobrevivência muitas vezes exige coragem."
(Filme A Viagem)
Quando coloca os pés para fora de casa em uma sexta à noite com o
objetivo de tomar um ônibus, você talvez espere ver muitas coisas pelo caminho.
Entretanto, tenho certeza de que nunca imagina que vai se deparar com um
Apocalipse Zumbi. E sei que cogita menos ainda, sequer sonha com a
possibilidade de ver um garotinho indefeso de três anos de idade ser
impiedosamente triturado por mortos reanimados.
Fui obrigado a assistir todo o horror de uma criança passando pelo que
parecia uma espécie de moedor de carne. Essa imagem está gravada em minha
retina. Armazenada em minha mente. Caso ocorra o milagre de eu escapar com vida
— o que sinceramente duvido muito agora — a lembrança do menininho devorado por
mortos-vivos é um fardo que vou carregar pelo resto de meus precários dias,
durante os quais terei de lutar contra tudo e todos. Matar ou ser morto: agora
esse é o único modo de assegurar meu direito inato de continuar existindo.
E a luta, a verdadeira e selvagem luta pela vida, está apenas começando.
Os zumbis estão vindo. Escalam o corredor com a determinação de
alpinistas desejosos de reconhecimento. Se eu for reagir, se eu ainda quiser
viver, esse é o momento de tentar fazer alguma coisa.
Procuro ganhar tempo. Olho ao redor e vejo pesadas malas espalhadas. Imediatamente
atiro-as pelo corredor, fazendo-as deslizar ladeira abaixo. Surpreendo e
desestabilizo meus inimigos. Malas e mortos descem rolando, distanciando-se de
mim. Rio como um lunático ao ver meus estúpidos predadores sendo lançados
corredor abaixo pelas bagagens, como pinos de boliche tombados por um arremesso
certeiro.
Funciona por enquanto, mas necessito de um plano B.
Olho para baixo e percebo que os mortos são genuinamente brasileiros:
eles não desistem nunca! Já recomeçaram a escalada. Se eu derrubá-los cem
vezes, eles ainda virão atrás de mim. Conseguirei, no máximo, atrasá-los. Tenho
mesmo é que dar o fora daqui o quanto antes.
Fito a janela ao meu lado, onde se situa a saída de emergência mais
próxima. Os vidros estão parcialmente quebrados. Meu corpo passa por ali, mas,
se eu tentar atravessar o vidro despedaçado, vou chegar do outro lado parecendo
um frango desfiado. Qual a vantagem de escapar dos zumbis, se eu me cortar todo
nos cacos da janela durante a fuga? Posso perder muito sangue e acabar
desmaiando bem antes de obter ajuda. Posso contrair tétano. Quem sabe o quanto
ainda terei de andar agora, até poder contar com algum tipo de assistência ou
recursos médicos, se tais ainda existirem?
Além do mais, aquelas coisas podem farejar minha possível hemorragia,
pois já notei que seu olfato é tão aguçado quanto sua audição.
Não. Para sair do ônibus, devo ativar a saída de emergência.
Para isso, seguro e puxo a alavanca. Ela não se move um milímetro
sequer. Está emperrada. Não posso permitir que esse ônibus se torne minha
tumba. Forço a alavanca de emergência uma, duas vezes. Nenhum resultado. Acabou
meu tempo. Os mortos estão perto novamente, preciso cuidar deles antes de medir
forças com a janela emperrada outra vez.
Todo aquele esforço para segurar a criança simplesmente me exauriu. As
circunstâncias mostraram depois que meu esforço foi em vão, porque, no fim,
serviu apenas para drenar minhas energias, já que o menino caiu de um modo ou
de outro. Estou fraco justamente quando mais precisava ser forte.
Olho à minha volta com urgência. A morte se acha tão próxima que quase
posso sentir seu hálito fétido. Veja então uma bolsa alheia, feita de lona,
enganchada na base dos assentos mais próximos. Felizmente ela está ao meu
alcance. Estico-me e pego a mala com avidez. Faço o zíper correr e ansiosamente
me ponto a vasculhar seu interior.
Vou descartando sumariamente os itens que encontro à medida que constato
a sua inutilidade em relação ao meu momento extremo de sobrevivência: loção
pós-barba, uma revista, um DVD de uma das milhares de duplas sertanejas que
fazem sucesso na atualidade, um saco de fumo, uma agenda, uma muda de roupas,
incluindo um par de cuecas (eca!). A bolsa está ficando vazia. Meu desespero é
crescente.
Os monstros vão me alcançar a qualquer momento. Eu que nem sou muito de
rezar, faço uma prece silenciosa de última hora. Falta ainda um objeto para eu
verificar. É minha última chance. Esperem... O que é aquilo?
Aperto os olhos. Parece uma bainha de couro. Meu coração descompassado
vibra, atravessado por um feixe de esperança. Sim, é uma bainha! Seguro o cabo
ornado, feito de chifre bovino e dotado de uma bela empunhadura, então o puxo,
para ver surgir diante de meus olhos a grande lâmina de uma majestosa faca de
pescador. A folha de aço trabalhado tem o gume impressionante, e nas costas do
mesmo existe uma parte dentada, ligeiramente serrilhada. Muito mais do que uma
arma, eu tenho uma legítima relíquia em mãos. É o tipo de coisa que dura muito.
Examino a lâmina de perto, porque há algo inscrito nela: MADE IN USA.
Obrigado, meu Deus!
Empunho firmemente a faca com a mão direita e giro o corpo bem a tempo.
Reúno todas as forças restantes. A cabeça do primeiro zumbi já emerge na
semi-escuridão, bem junto ao meu tênis. Naquela cabeça odienta oscila um boné
verde escuro da John John. Me preparo
para desferir o golpe, e a visão daquele boné faz meus olhos castanhos
faiscarem.
Há uma coisa que me esqueci de contar a vocês.
No começo da viagem, tão logo subi no ônibus, procurei meu lugar. O
bilhete da passagem dizia que o meu assento era o de número dez. Mas, adivinhem
só?
Havia um otário no meu lugar. E no assento ao lado do otário, havia um
amigo do otário, tão otário quanto o primeiro. E não digo que são eram otários
somente porque ocupavam meu lugar. São otários por natureza mesmo. Aquele tipo
de gente que se autodenomina orgulhosamente como “malas”: boné para trás,
bermudas longas e largas, chinelos. Se acham os maiorais, pensam que podem
tudo. Não trabalham e não tem perspectiva de futuro. São uma vergonha para a
família e um peso para a sociedade. Consideram-se os tais, e gostam de
intimidar as pessoas de bem. Não falo pelas roupas, porque acho que cada um tem
direito de escolher seu próprio estilo. Falo é de seu comportamento mesmo.
O otário nº1, que vamos chamar
de John John devido o boné, estava
jogado no assento, as pernas erguidas e apoiadas no encosto de mão do banco de
maneira displicente. Lastimável.
Ele perguntou se aquele era meu lugar. Assenti. Ele me olhou com cinismo
e nem se mexeu. O otário nº2 soltou
uma risadinha de hiena e disse para eu procurar outro banco, porque havia
outros vagos. Mirei-os com raiva. Poderia ter criado um escarcéu se quisesse.
Poderia ter pedido ao motorista para tirá-los de lá. Poderia ter batido o pé e
insistido. Seria impagável ver o sorriso idiota desaparecendo da cara imbecil
deles. Porém, algo misteriosamente me dissuadiu, dizendo para eu deixar isso
para lá. E foi exatamente o que fiz.
Eu ia descer logo, não achei que valesse a pena criar confusão. Fechando
a cara, procurei outro lugar e encontrei um mais ao fundo do lotação. E agora
vejo que a dupla de otários tinha, mesmo sem saber, me feito um grande favor.
Ocupando meu lugar, foram os primeiros a se ferrar. Morreram logo, fosse pelo
acidente, fosse pela contaminação.
E agora, cá estamos. Tenho diante de mim a versão zumbi do John John. Repleto de deleite, entendo
que é hora da desforra.
— Quer um pedaço de carne, idiota? — rosno desafiadoramente — Vou te dar
o que merece!
Já joguei Resident Evil e
assisti The Walking Dead o suficiente
para saber que minha melhor aposta, se quero de fato parar um morto-vivo, é
neutralizando seu cérebro. Por isso, inspiro fundo e golpeio o John John brutalmente na têmpora. A faca
atravessa a carne e se choca desagradavelmente contra o crânio. O sangue
espirra. O otário nº1 pára
subitamente de se agitar freneticamente e volta a ser apenas um cadáver de
expressão bestificada. Mesmo assim, o esfaqueio de novo na cabeça. A força dos
golpes é tanta, que lhe arranca o boné da cabeça.
Digam o que quiserem, mas eu tive minha revanche. Sou assolado por um
sentimento mórbido de satisfação. Experimento a euforia do estudante que vê seu
nome na lista de aprovados do vestibular, e o êxtase do jogador que marca o gol
decisivo ao cobrar o pênalti em final de campeonato.
Vejo a lâmina escura de sangue. Chuto a boca do monstro com a sola do
tênis, e ele desaparece rolando pelo corredor. Minha sorte é que, apesar de
magrelão, o John John é bastante
alto, e o peso de seu corpo morto arrasta consigo seus companheiros,
interrompendo sua escalada e jogando todos lá embaixo.
Agora é a minha deixa!
Guardo a faca na bainha, e a bainha na cintura.
Seguro a alavanca com as duas mãos e apoio o corpo com os pés na parede.
Aplico toda a minha força. Meu coração parece querer sair pela boca. Os pulmões
ardem. Meus músculos se distendem sofridamente. Meu corpo reclama de dor e
cansaço, está à beira da exaustão. O suor encharca minha testa, meu rosto e
minhas mãos, e empapa minha camiseta na altura das axilas. A posição
incomodamente vertical dificulta minha tarefa ao extremo.
Ouço os mortos rastejando novamente corredor acima.
Por um momento angustiante chego a acreditar que não vou conseguir.
Minha sina aparentemente é morrer tentando.
Finalmente a janela cede. Com um rangido enferrujado de protesto,
vencida, a alavanca se move e a janela se desencaixa. Uso os dois pés para
empurrá-la para fora, liberando definitivamente a saída. Reprimo a custo um
grande berro de vitória.
Tenho que sair. Não posso perder mais tempo.
Os grunhidos dos zumbis estão soando cada vez mais alto. Acho que já
distingo vagamente seus vultos na semi-escuridão.
Quando estou prestes a sair, diviso a cara feia e cadavérica do otário nº2. Ele é quem lidera a fila dos
meus perseguidores. Hesito um instante. Se o zumbi fosse qualquer outro
passageiro do ônibus, eu teria partido no mesmo instante. No entanto, como é
aquele babaca, resolvo permanecer mais alguns momentos.
Meu tênis é próprio para alpinistas; tem cano médio e grosso solado com
pequeninas travas de borracha. Pesado. Dura muito. Paguei os olhos da cara por
ele e não me arrependo. Sei que valeu cada centavo. Agora, mais do que nunca
estou feliz em tê-lo adquirido.
Quando escoiceio violentamente a cabeça do otário nº2, ele estremece como se tivesse levado uma tijolada bem
no meio da cara. Desaparece na mesma hora, sempre caindo e levando consigo o
resto da horda durante sua desastrada descida.
Sorrio, satisfeito. Agora sim, posso ir.
Passo pelo vão da janela e respiro fundo o ar fresco da noite. Grilos
cantam na escuridão e o cerrado, vegetação predominante em minha região, se
estende agressivamente ao meu redor, amortalhado pelas trevas e ocultando
perigos indizíveis, como serpentes venenosíssimas.
Preciso seguir com muito cuidado. O terreno é íngreme, e por isso avanço
cautelosamente, quase me arrastando, bendizendo mais uma vez meu tênis o qual,
além de não escorregar, me ajuda sobremaneira na escalada.
Enquanto gradativamente meus pés encontram pontos de apoio, minhas mãos
procuram pedras e raízes, nas quais se agarram para me sustentar em minha árdua
subida. Deslocadas por meu peso enquanto escalo, constantemente porções de
cascalho rolam pela ladeira e são imediatamente engolidas pela noite escura
lembrando que, se eu não for cuidadoso, terei um fim semelhante.
Entretanto, não serei tão tolo assim. Já tive meu batismo de fogo hoje.
Não lutei tanto para acabar morto desse jeito, quebrando o pescoço em uma
queda idiota.
Pouco a pouco eu avanço. Passo a passo. Centímetro por centímetro.
Já posso ver a estrada. Sigo colado ao chão como uma cobra.
Agora nada vai me deter.
Continua...
Danilo Alex da Silva
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