sábado, 24 de maio de 2014

Sobreviver - Parte IV




"A sobrevivência muitas vezes exige coragem."

(Filme A Viagem)




Quando coloca os pés para fora de casa em uma sexta à noite com o objetivo de tomar um ônibus, você talvez espere ver muitas coisas pelo caminho. Entretanto, tenho certeza de que nunca imagina que vai se deparar com um Apocalipse Zumbi. E sei que cogita menos ainda, sequer sonha com a possibilidade de ver um garotinho indefeso de três anos de idade ser impiedosamente triturado por mortos reanimados.
Fui obrigado a assistir todo o horror de uma criança passando pelo que parecia uma espécie de moedor de carne. Essa imagem está gravada em minha retina. Armazenada em minha mente. Caso ocorra o milagre de eu escapar com vida — o que sinceramente duvido muito agora — a lembrança do menininho devorado por mortos-vivos é um fardo que vou carregar pelo resto de meus precários dias, durante os quais terei de lutar contra tudo e todos. Matar ou ser morto: agora esse é o único modo de assegurar meu direito inato de continuar existindo.
E a luta, a verdadeira e selvagem luta pela vida, está apenas começando.
Os zumbis estão vindo. Escalam o corredor com a determinação de alpinistas desejosos de reconhecimento. Se eu for reagir, se eu ainda quiser viver, esse é o momento de tentar fazer alguma coisa.
Procuro ganhar tempo. Olho ao redor e vejo pesadas malas espalhadas. Imediatamente atiro-as pelo corredor, fazendo-as deslizar ladeira abaixo. Surpreendo e desestabilizo meus inimigos. Malas e mortos descem rolando, distanciando-se de mim. Rio como um lunático ao ver meus estúpidos predadores sendo lançados corredor abaixo pelas bagagens, como pinos de boliche tombados por um arremesso certeiro.
Funciona por enquanto, mas necessito de um plano B.
Olho para baixo e percebo que os mortos são genuinamente brasileiros: eles não desistem nunca! Já recomeçaram a escalada. Se eu derrubá-los cem vezes, eles ainda virão atrás de mim. Conseguirei, no máximo, atrasá-los. Tenho mesmo é que dar o fora daqui o quanto antes.
Fito a janela ao meu lado, onde se situa a saída de emergência mais próxima. Os vidros estão parcialmente quebrados. Meu corpo passa por ali, mas, se eu tentar atravessar o vidro despedaçado, vou chegar do outro lado parecendo um frango desfiado. Qual a vantagem de escapar dos zumbis, se eu me cortar todo nos cacos da janela durante a fuga? Posso perder muito sangue e acabar desmaiando bem antes de obter ajuda. Posso contrair tétano. Quem sabe o quanto ainda terei de andar agora, até poder contar com algum tipo de assistência ou recursos médicos, se tais ainda existirem?
Além do mais, aquelas coisas podem farejar minha possível hemorragia, pois já notei que seu olfato é tão aguçado quanto sua audição.
Não. Para sair do ônibus, devo ativar a saída de emergência.
Para isso, seguro e puxo a alavanca. Ela não se move um milímetro sequer. Está emperrada. Não posso permitir que esse ônibus se torne minha tumba. Forço a alavanca de emergência uma, duas vezes. Nenhum resultado. Acabou meu tempo. Os mortos estão perto novamente, preciso cuidar deles antes de medir forças com a janela emperrada outra vez.
Todo aquele esforço para segurar a criança simplesmente me exauriu. As circunstâncias mostraram depois que meu esforço foi em vão, porque, no fim, serviu apenas para drenar minhas energias, já que o menino caiu de um modo ou de outro. Estou fraco justamente quando mais precisava ser forte.
Olho à minha volta com urgência. A morte se acha tão próxima que quase posso sentir seu hálito fétido. Veja então uma bolsa alheia, feita de lona, enganchada na base dos assentos mais próximos. Felizmente ela está ao meu alcance. Estico-me e pego a mala com avidez. Faço o zíper correr e ansiosamente me ponto a vasculhar seu interior.
Vou descartando sumariamente os itens que encontro à medida que constato a sua inutilidade em relação ao meu momento extremo de sobrevivência: loção pós-barba, uma revista, um DVD de uma das milhares de duplas sertanejas que fazem sucesso na atualidade, um saco de fumo, uma agenda, uma muda de roupas, incluindo um par de cuecas (eca!). A bolsa está ficando vazia. Meu desespero é crescente.
Os monstros vão me alcançar a qualquer momento. Eu que nem sou muito de rezar, faço uma prece silenciosa de última hora. Falta ainda um objeto para eu verificar. É minha última chance. Esperem... O que é aquilo?
Aperto os olhos. Parece uma bainha de couro. Meu coração descompassado vibra, atravessado por um feixe de esperança. Sim, é uma bainha! Seguro o cabo ornado, feito de chifre bovino e dotado de uma bela empunhadura, então o puxo, para ver surgir diante de meus olhos a grande lâmina de uma majestosa faca de pescador. A folha de aço trabalhado tem o gume impressionante, e nas costas do mesmo existe uma parte dentada, ligeiramente serrilhada. Muito mais do que uma arma, eu tenho uma legítima relíquia em mãos. É o tipo de coisa que dura muito. Examino a lâmina de perto, porque há algo inscrito nela: MADE IN USA.
Obrigado, meu Deus!
Empunho firmemente a faca com a mão direita e giro o corpo bem a tempo. Reúno todas as forças restantes. A cabeça do primeiro zumbi já emerge na semi-escuridão, bem junto ao meu tênis. Naquela cabeça odienta oscila um boné verde escuro da John John. Me preparo para desferir o golpe, e a visão daquele boné faz meus olhos castanhos faiscarem.
Há uma coisa que me esqueci de contar a vocês.
No começo da viagem, tão logo subi no ônibus, procurei meu lugar. O bilhete da passagem dizia que o meu assento era o de número dez. Mas, adivinhem só?
Havia um otário no meu lugar. E no assento ao lado do otário, havia um amigo do otário, tão otário quanto o primeiro. E não digo que são eram otários somente porque ocupavam meu lugar. São otários por natureza mesmo. Aquele tipo de gente que se autodenomina orgulhosamente como “malas”: boné para trás, bermudas longas e largas, chinelos. Se acham os maiorais, pensam que podem tudo. Não trabalham e não tem perspectiva de futuro. São uma vergonha para a família e um peso para a sociedade. Consideram-se os tais, e gostam de intimidar as pessoas de bem. Não falo pelas roupas, porque acho que cada um tem direito de escolher seu próprio estilo. Falo é de seu comportamento mesmo.
O otário nº1, que vamos chamar de John John devido o boné, estava jogado no assento, as pernas erguidas e apoiadas no encosto de mão do banco de maneira displicente. Lastimável.
Ele perguntou se aquele era meu lugar. Assenti. Ele me olhou com cinismo e nem se mexeu. O otário nº2 soltou uma risadinha de hiena e disse para eu procurar outro banco, porque havia outros vagos. Mirei-os com raiva. Poderia ter criado um escarcéu se quisesse. Poderia ter pedido ao motorista para tirá-los de lá. Poderia ter batido o pé e insistido. Seria impagável ver o sorriso idiota desaparecendo da cara imbecil deles. Porém, algo misteriosamente me dissuadiu, dizendo para eu deixar isso para lá. E foi exatamente o que fiz.
Eu ia descer logo, não achei que valesse a pena criar confusão. Fechando a cara, procurei outro lugar e encontrei um mais ao fundo do lotação. E agora vejo que a dupla de otários tinha, mesmo sem saber, me feito um grande favor. Ocupando meu lugar, foram os primeiros a se ferrar. Morreram logo, fosse pelo acidente, fosse pela contaminação.
E agora, cá estamos. Tenho diante de mim a versão zumbi do John John. Repleto de deleite, entendo que é hora da desforra.
— Quer um pedaço de carne, idiota? — rosno desafiadoramente — Vou te dar o que merece!
Já joguei Resident Evil e assisti The Walking Dead o suficiente para saber que minha melhor aposta, se quero de fato parar um morto-vivo, é neutralizando seu cérebro. Por isso, inspiro fundo e golpeio o John John brutalmente na têmpora. A faca atravessa a carne e se choca desagradavelmente contra o crânio. O sangue espirra. O otário nº1 pára subitamente de se agitar freneticamente e volta a ser apenas um cadáver de expressão bestificada. Mesmo assim, o esfaqueio de novo na cabeça. A força dos golpes é tanta, que lhe arranca o boné da cabeça.
Digam o que quiserem, mas eu tive minha revanche. Sou assolado por um sentimento mórbido de satisfação. Experimento a euforia do estudante que vê seu nome na lista de aprovados do vestibular, e o êxtase do jogador que marca o gol decisivo ao cobrar o pênalti em final de campeonato.
Vejo a lâmina escura de sangue. Chuto a boca do monstro com a sola do tênis, e ele desaparece rolando pelo corredor. Minha sorte é que, apesar de magrelão, o John John é bastante alto, e o peso de seu corpo morto arrasta consigo seus companheiros, interrompendo sua escalada e jogando todos lá embaixo.
Agora é a minha deixa!
Guardo a faca na bainha, e a bainha na cintura.
Seguro a alavanca com as duas mãos e apoio o corpo com os pés na parede. Aplico toda a minha força. Meu coração parece querer sair pela boca. Os pulmões ardem. Meus músculos se distendem sofridamente. Meu corpo reclama de dor e cansaço, está à beira da exaustão. O suor encharca minha testa, meu rosto e minhas mãos, e empapa minha camiseta na altura das axilas. A posição incomodamente vertical dificulta minha tarefa ao extremo.
Ouço os mortos rastejando novamente corredor acima.
Por um momento angustiante chego a acreditar que não vou conseguir. Minha sina aparentemente é morrer tentando.
Finalmente a janela cede. Com um rangido enferrujado de protesto, vencida, a alavanca se move e a janela se desencaixa. Uso os dois pés para empurrá-la para fora, liberando definitivamente a saída. Reprimo a custo um grande berro de vitória.
Tenho que sair. Não posso perder mais tempo.
Os grunhidos dos zumbis estão soando cada vez mais alto. Acho que já distingo vagamente seus vultos na semi-escuridão.
Quando estou prestes a sair, diviso a cara feia e cadavérica do otário nº2. Ele é quem lidera a fila dos meus perseguidores. Hesito um instante. Se o zumbi fosse qualquer outro passageiro do ônibus, eu teria partido no mesmo instante. No entanto, como é aquele babaca, resolvo permanecer mais alguns momentos.
Meu tênis é próprio para alpinistas; tem cano médio e grosso solado com pequeninas travas de borracha. Pesado. Dura muito. Paguei os olhos da cara por ele e não me arrependo. Sei que valeu cada centavo. Agora, mais do que nunca estou feliz em tê-lo adquirido.
Quando escoiceio violentamente a cabeça do otário nº2, ele estremece como se tivesse levado uma tijolada bem no meio da cara. Desaparece na mesma hora, sempre caindo e levando consigo o resto da horda durante sua desastrada descida.
Sorrio, satisfeito. Agora sim, posso ir.
Passo pelo vão da janela e respiro fundo o ar fresco da noite. Grilos cantam na escuridão e o cerrado, vegetação predominante em minha região, se estende agressivamente ao meu redor, amortalhado pelas trevas e ocultando perigos indizíveis, como serpentes venenosíssimas.
Preciso seguir com muito cuidado. O terreno é íngreme, e por isso avanço cautelosamente, quase me arrastando, bendizendo mais uma vez meu tênis o qual, além de não escorregar, me ajuda sobremaneira na escalada.
Enquanto gradativamente meus pés encontram pontos de apoio, minhas mãos procuram pedras e raízes, nas quais se agarram para me sustentar em minha árdua subida. Deslocadas por meu peso enquanto escalo, constantemente porções de cascalho rolam pela ladeira e são imediatamente engolidas pela noite escura lembrando que, se eu não for cuidadoso, terei um fim semelhante.
Entretanto, não serei tão tolo assim. Já tive meu batismo de fogo hoje.
Não lutei tanto para acabar morto desse jeito, quebrando o pescoço em uma queda idiota.
Pouco a pouco eu avanço. Passo a passo. Centímetro por centímetro.
Já posso ver a estrada. Sigo colado ao chão como uma cobra.
Agora nada vai me deter.


Continua...



Danilo Alex da Silva



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