quarta-feira, 7 de maio de 2014

Sobreviver - Parte III



"Nós somos os mortos-vivos."

(Rick Grimes - The Walking Dead - HQ)



Abro os olhos lentamente. Não posso precisar quanto tempo se passou. Meu cérebro lateja dolorosamente. Algo quente e viscoso escorre do lado direito da minha testa. Sinto uma ligeira náusea. Acho que sofri uma pequena concussão.
Devagar, movo minhas mãos, tateando apreensivamente meu próprio corpo para saber se estou inteiro. Fico feliz em saber que, com exceção da pancada na cabeça, não sofri nada mais sério. Menos mal. Como dizem por aí, vão-se os anéis, mas ficam os dedos. Quase posso respirar aliviado.
Quanta ingenuidade a minha! Em poucos instantes constato que estou longe de poder respirar aliviado. Ainda tenho um longo caminho a percorrer. Preciso lutar muito se quiser de fato sobreviver. Um grunhido animalesco vindo de um ponto abaixo de mim deixa isso bem claro.
 Cuidadosamente mexo a cabeça e corro os olhos pelo panorama de destruição. Vidros quebrados. Malas espalhadas, algumas abertas, exibindo seu conteúdo. Bancos rasgados. Muitos corpos inertes e ensanguentados. O ônibus se converteu em um grande caixão metálico. Um ou outro gemido de dor se faz ouvir aqui e ali. Mas o pior são os grunhidos animalescos. Estão se multiplicando.
Acho que a infestação esteve se alastrando durante meu período de inconsciência, o que me leva a crer que passei tempo demais desacordado. Receio que isso possa ter reduzido radicalmente minhas chances de escapar com vida desta enrascada.
Quando o ônibus deixou a pista em alta velocidade e capotou, mesmo tombado de lado ele deslizou por um barranco e só parou porque bateu em uma árvore centenária, ali permanecendo estático, bem no meio da ladeira. Então, nesse exato instante o grande veículo — ou o que restou dele — está inclinado, sua frente sanfonada, violentamente prensada contra o grosso tronco da árvore. Imagino que muita gente foi lançada para fora. As pessoas que ocupavam os assentos da parte traseira do ônibus foram projetadas para a parte dianteira no momento da colisão. As que não morreram no impacto ficaram gravemente feridas e, sem poder se locomover, tiveram um destino horrendo: foram devoradas por aquelas coisas que urram e rastejam lá embaixo, na parte posterior do que sobrou do lotação. Coisas que já foram gente, e que agora comem gente. Mal posso crer em meus olhos.
Horrorizado, sou obrigado a assistir ao banquete macabro, transformado a contragosto em testemunha ocular da fome infinita que tais seres diabólicos sentem. Estremeço e ranjo os dentes diante do apetite insaciável deles por sangue e carne humana. Eles estão lá embaixo, e eu estou aqui em cima, a salvo deles por enquanto. Não posso deixar que me notem. A inclinação do ônibus e a gravidade não me ajudarão para sempre.
Mais uma vez dou graças por ter afivelado o cinto de segurança no princípio da viagem. Foi ele que, conforme eu previra, me manteve seguro quando desmaiei após o choque do veículo, e fiquei inerte, perigosamente suspenso um pouco acima da horda de mortos-vivos canibais que se deleitam agora com os passageiros feridos. Os gritos de angústia daqueles que estão sendo devorados vivos é terrível, e dilacera meu cérebro, dificultando o fluxo do meu raciocínio. Não fosse o cinto, eu seria nesse momento mais um dos despedaçados por aqueles chacais. Minha mente embotada trabalha o mais rápido possível. Mas há uma coisa que não entendo.
Não vi o motorista no meio da bagunça. E nem a mulher que foi atacada pelo Pavarotti. Devem ter sido arremessados para fora na hora da batida, ou talvez foram esmagados quando a frente do veículo se amassou contra o sólido tronco da árvore, uma vez que ocupavam ambos a cabine do condutor quando aconteceu o abalroamento. Tecnicamente, além do Pavarotti, os dois seriam os únicos capazes de disseminar a doença. Ainda assim, vejo pelo menos uma dezena de mortos-vivos asquerosos se remexendo juntos, como um monte inquieto de larvas.
Será que agora, além de mordidas e arranhões, essa porcaria também se propaga por outros meios, tais como o ar, ou contato com fluídos contaminados? Teria o vírus — ou o que quer que transmita essa enfermidade dos diabos — evoluído? Será que de algum modo eu fui infectado? Vou me tornar uma daquelas coisas? Espero sinceramente que não.
Então, era esse o grande plano dos Reformadores? Bioterrorismo? Zumbis? Sério mesmo? Não consigo ver qual a genialidade em espalhar uma praga mortal no meio da população com o fim único de forçar o presidente a uma desistência política. Ao pensar sobre isso, lembro de uma notícia de semanas atrás, a respeito da carga de um caminhão do Exército que foi roubada. Conteúdo Ultra Secreto. Certamente resultado de experiências científicas. Agora as peças começam a se encaixar. Os Reformadores estão dando ao governo um osso de sua própria sopa. No entanto, acho que eles não previram tamanho caos. A situação com certeza fugiu do controle e eu sei que, nesse exato momento, assim como eu, os Reformadores também estão comendo o pão que o Diabo amassou.
Volto a mim. Chega de devaneios. Preciso me mover.
Eis que surge um novo problema. Lembram do garotinho com quem compartilhei meu Doritos? Pois é. Ele é o novo problema.
Do meu lugar vejo a criança recuperar os sentidos. Ele também desmaiou quando o ônibus capotou antes de bater na árvore. Está sentado do lado oposto ao meu, uma poltrona abaixo. A jovem mãe está ao seu lado, lívida e imóvel. Pela posição da cabeça da moça, ela quebrou o pescoço durante o acidente. Morte instantânea, com certeza. E o seu filhinho infelizmente vai descobrir isso em breve. Que tristeza!!!
Ele está sacudindo a mãe, tentando inutilmente despertá-la de seu trágico sono eterno. Vendo que ela não se mexe, ele faz o que qualquer outra criança em seu lugar teria feito: começa a chorar alto, desesperadamente. Nunca devia ter feito isso, porque acaba de se condenar. Seu choro pode denunciar sua localização.
Abaixo de nós, os monstros erguem as cabeças, movendo os rostos desfigurados. Suas faces estão cobertas de sangue e gosma esverdeada. Há pedaços de carne fresca humana presos em seus dentes. Os olhos mortos, preenchidos por uma esclera amarelada vasculham a parte de cima do ônibus, procurando ansiosamente a origem do pranto.
Aqueles filhos da mãe são atraídos por sons de qualquer espécie.
Gesticulo nervosamente, o mais silenciosamente possível, tentando me expor o suficiente apenas para ser visto pelo garoto. Dá certo. Ele me enxerga. Levo meu indicador da mão direita à frente dos meus lábios:
— Shhhhhhhhhhhhhhhh! — e mostro os zumbis com um gesto.
Ele dá mostras de ter entendido, pois procura engolir o choro. Por sinais, peço que ele venha silenciosamente ao meu encontro. É subida. Vai ser difícil para ele, eu sei. Mas é o único jeito de ele sobreviver. Além disso, me posiciono. Ficarei pendurado sem tentar fazer barulho. Esticarei o corpo e estenderei a mão para resgatar meu amiguinho. Somos as últimas duas pessoas normais nessa bagunça. Estamos presos como sardinhas enlatadas nessa armadilha infernal, infestada de cadáveres reanimados e famintos.
A despeito das circunstâncias, estou otimista. O garoto está bem perto agora. Isso mesmo, rapazinho. Continue vindo. Ele avança silenciosamente, tomando muito cuidado para não cair deslizando corredor abaixo, pois o mesmo se tornou uma espécie de tobogã sinistro o qual leva direito aos braços da morte. Ou, melhor dizendo, leva direito à garganta da morte.
Estico a mão direita. Vamos conseguir. Afinal, alguma coisa tem que dar certo no meio de toda essa loucura. Na semiobscuridade eu já posso ver a mãozinha rosada e gorducha. Estendo-me ao máximo em sua direção...
Engraçado como uma pequena coisa, um mínimo detalhe pode mudar totalmente uma situação, não é? Acho que às vezes há algo de muito sórdido na mudança de ventos, ou no fato da roleta da sorte resolver subitamente girar ao contrário. O destino apronta, nos prega suas peças mortais e depois simplesmente ri em nossa cara, sádico.
Nos últimos quarenta centímetros que nos separam, o garoto não controla a afobação e acaba esbarrando com o pé em um dos assentos. As molas dentro do estofado rangem com o chute inesperado. Sustenho a respiração. O ruído produzido pelo esbarrão, embora não tenha sido realmente alto, foi o bastante.
Os mortos se alvoroçam lá embaixo. Seus malditos olhos amarelos e apodrecidos estão levantados e focalizam avidamente o menininho apavorado. Tensão extrema no ar.
Como é que viemos parar bem no meio de um filme de George Romero? Acho que não fui um bom menino esse ano.
Os monstros se amontoam e iniciam sua escalada assassina. Estão formando um aglomerado, uma espécie de escada, ajudando uns aos outros a rastejar corredor acima. Mesmo na penumbra posso contar pelo menos onze deles. Seu cheiro rançoso e abjeto faz aumentar minhas náuseas, e meu esforço para não vomitar é hercúleo. Espartano, eu diria até. Como tudo já está ferrado mesmo, mando a discrição para o espaço e grito:
— Vamos, rapaz! Continue subindo! Eles estão vindo!
O garoto está paralisado. Possivelmente em estado de choque. E quem pode culpá-lo? Afinal, ele tem apenas três anos, acabou de ver a mãe morta e precisa confiar em um estranho se quiser sair vivo daqui.
O menino hesita. Os zumbis, não. Estão chegando perto.
Grito até ficar rouco, empregando todas as forças dos pulmões. O tempo urge.
Finalmente a criança desperta de sua imobilidade traumática. Volta a subir. Agarro firme sua mão. Pouco abaixo dele posso ver a cara horrenda dos zumbis incansáveis. Preciso puxar o garoto até onde estou, distanciando-o das criaturas canibais. E essa ainda nem é a pior parte.  
Depois de resgatá-lo, ainda tenho que abrir a saída de emergência, puxando a alavanca para fazer a janela se soltar e nos dar passagem. É preciso rapidez, ou meu companheiro e eu ficaremos encurralados.
Estou puxando o menino apenas com a força do braço direito. O esquerdo serve de apoio. Os músculos reclamam e doem. Minha mão começa a suar.
Droga! Não, não e não! Ele está escorregando. Câimbras terríveis me acometem. Sinto-me inútil. Lágrimas de frustração brotam em meus olhos. Não foi bem esse o final que imaginei.
O destino está sendo inevitavelmente selado. Uma mão cadavérica alcança e agarra o tornozelo da criança chorosa. Mais peso é acrescentado ao fardo improvisado que tenho de segurar. Meu braço direito não vai suportar sozinho. Que se dane! Uso a mão esquerda também.
Com as pernas enrodilhadas ao cinto de segurança, estou de cabeça para baixo, como um trapezista pronto a segurar as mãos do companheiro que vem voando pelo ar. Minhas mãos continuam suando profusamente, então passo a segurar os antebraços do garoto. Sinto ferroadas no cérebro. Concentro-me em desdobrar o corpo ao meso tempo em que procuro içar o menino. Outra mão putrefata se prende em sua panturrilha. E depois outra. Tenho a impressão de que a criança pesa uma tonelada agora. O suor é abundante. O meu assento estala. Não vai suportar tamanha carga. Dentro de instantes, todos cairemos.
— Balance os pés, amigão! — grito para o pequeno de modo frenético, desesperado — Chute! Mexa as pernas com toda a sua força!
Ele obedece. Percebo que é em vão. Os monstros continuam lá, pendurados, obstinadamente aferrados. Mais mãos seguram as pernas rechonchudas e pueris. Mais peso. Estou no meu limite. Meus músculos tremem. Acho que meus nervos vão arrebentar como cordas de violão. Recuso-me a desistir. Em um momento de trágica lucidez, uma luz de inconveniente compreensão invade minha mente febril, mostrando que essa é uma batalha que não posso vencer. Os inimigos têm a força da gravidade a seu favor.
O suor faz a criança escorregar mais alguns centímetros, deixando-a um passo mais perto da horda de carniceiros, que agora grunhe e rosna em uníssono, como um bando de animais selvagens.
Me odeio por não conseguir ser mais forte. O suor continua surgindo, esse maldito.
Sinto as palpitações do coração do pequenino na mão diminuta entrelaçada à minha. Com o rosto banhado em lágrimas, miro o rosto infantil. Aqueles marcantes olhos, grandes e inocentes, me encaram de volta. Vejo muito medo neles. Mas também vejo amor. E perdão. No segundo derradeiro ele me perdoa. Sabe que fiz o que pude.
Sem que eu possa mais evitar ou adiar isso, nossas mãos se soltam e ele escorrega pelo corredor, cercado de mortos-vivos.
Quando chegam ao fim daquele escorregador mortal, na parte frontal do ônibus, dezenas de mãos, dentes e bocas ferozes dilaceram impiedosamente a carne tenra.
Cortam. Rasgam. Com sofreguidão demoníaca, eles estraçalham tecidos, terminações nervosas, e ossos que ainda estavam em formação.
Debato-me furiosamente, como se ainda pudesse fazer algo pelo menino. Um anjo cruelmente retalhado por demônios. Um cordeiro entre lobos.
Um único grito estridente e doloroso escapa da pobre criança enquanto seu corpinho rapidamente é feito em pedaços pelas feras. Uma onda vermelha e espessa, semelhante a extrato de tomate, emerge da confusão de braços e rostos ferinos que se agitam onde o menino caiu. Ouço o som abominável de ossos sendo partidos. A mastigação macabra, o ruído da trituração, ameaça o que me restou de sanidade.
Sinto algo implodir dentro de minha cabeça. Só então me dou conta de que estou gritando feito louco. Raiva. Dor. Frustração. Um misto de emoções é extravasado através do meu berro insano.
À medida que alguns poucos mortos ainda disputam entre si as vísceras do garotinho, os outros se ocupam em me olhar. Agrupam-se e reiniciam sua escalada funesta. Corredor acima, a morte vem rastejando em minha direção.
Paro repentinamente de gritar. Calo-me. Engulo em seco. Arregalo os olhos.
Tomara que essas não sejam minhas últimas palavras, porque só consigo pensar em uma coisa para dizer agora:
— Ah, merda!

Continua...

Danilo Alex da Silva

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