sexta-feira, 2 de maio de 2014

Sobreviver - Parte II



"Quando o Inferno está cheio, os mortos andam na Terra. "

(Madrugada dos Mortos)




Alguém está tendo um acesso de tosse na parte do fundo do ônibus. Se você acha que é o bom e velho Pavarotti, acertou. Uma tosse seca e intermitente, ruidosa, mesmo com a tentativa dele de abafá-la sob o lenço manchado. Os passageiros se remexem e cochicham entre si, incomodados. Alguém reclama com veemência. Ouço um princípio de discussão. Um som estranho substitui a tosse. Parece o rosnado de um animal feroz.
— Meu Deus! — exclama uma voz feminina, carregada de dor, medo e surpresa — Ele me arranhou o pescoço! Estou sangrando!
Ouvindo o intenso burburinho, o motorista encosta o ônibus e vem saber o que está acontecendo. As pessoas se queixam do Pavarotti. O motorista vai então até a poltrona do alvo das reclamações e começa a dizer:
— É verdade que unhou uma mulher? O senhor precisa se acalmar imediatamente, ou terei de... Senhor? Está se sentindo bem? — preocupado, o condutor do lotação estende a mão e toca o ombro do almofadinha, cujo rosto estava arroxeado, como se ele estivesse sufocando.
Na mesma hora o Pavarotti reage. Arreganhando os dentes e rosnando como um cão raivoso, atira-se sobre o motorista o qual, a despeito da surpresa, para total espanto de todos, consegue se esquivar a tempo, tirando o corpo do caminho e fazendo o almofadinha passar direto. Cambaleando, o Pavarotti se volta. Ainda não desistiu de atacar o motorista. Eu, que levantei o pescoço e me virei para ver o que se passava, pouso meus olhos no rosto lívido do almofadinha, rosto esse parcialmente protegido pela meia-luz. Ao fitar aquela face, me arrependo na mesma hora de tê-lo feito. E estremeço.
O homem de terno passou por uma transformação inexplicável e agora está fora de si. Não fala mais em altíssimos decibéis. Na verdade, não fala mais nada. Apenas emite guinchos animalescos e arreganha os dentes de forma ameaçadora, como um bicho acuado. Seu corpo retesado assume uma postura assassina. Uma gosma verde escorre pelos cantos de sua boca contraída. Os braços pendem ao longo do corpo, e da ponta dos dedos da mão direita goteja o sangue da mulher que ele acabou de arranhar.
Mas o pior mesmo... Ah, Céus! O pior mesmo são os olhos.
Os olhos do Pavarotti são assustadores. Eles não têm mais movimento, nem luz. E nem expressam mais sentimentos. Deixaram de ser a janela da alma, porque a alma não mais parece habitar aquele corpo, que agora é horripilante. Olhos vidrados e líquidos. A esclera está amarelada e indica o princípio do que suspeito ser um processo de decomposição. Sim. É isso. Aqueles olhos estão mortos. Não sou mais capaz de encará-los.
O homem de terno perdeu toda a racionalidade. Parece agora agir apenas pela força dos instintos mais primitivos. Arranhando as cordas vocais naquele rosnado ferino, investe mais uma vez contra o motorista.
O homem atacado não demonstra medo. Na verdade, está profundamente irritado. Imagino que seu dia foi infernal e ele deve estar, de certo modo, grato por ter em quem descontar todo o seu estresse.
Dessa forma, se adianta prontamente pelo corredor e lança com toda força o punho direito para frente. Desfere um soco cruzado fenomenal. Aquele murro cinematográfico me faz enxergá-lo como um Maguila ou Popó Freitas da vida. A situação é surreal demais até para mim, que estou acostumado a ver e ouvir as coisas mais bizarras que se passam todos os dias nesse nosso mundo tenebroso.
Quando o motorista dispara o soco, a cena se desenrola em câmera lenta diante de meus olhos. Dentro de minha cabeça começa a tocar Eye of the Tiger, do Survivors, a música tema de Rocky IV, cujo papel principal é interpretado por Sylvester Stallone. Quase rio. Seria cômico se não fosse trágico. Cristo! Devo estar enlouquecendo. Fecho os olhos por um momento e torço para que tudo não passe do fenômeno do delírio coletivo o qual, por alguma razão desconhecida, tenha assolado os passageiros. Esse tipo de coisa, embora raro, não é incomum. Basta que você pesquise na Internet para conhecer alguns casos e então perceber que o que falo não é totalmente ilógico, sobretudo em dadas circunstâncias.
Abro os olhos, temporariamente esperançoso. O punho cerrado do condutor acaba de atingir o alvo. Todos no ônibus ouvem o queixo do almofadinha estalar sinistramente com o violento impacto. Desequilibrado, ele cai pesadamente para trás. Ato contínuo, o motorista o agarra pela nuca e o obriga a levantar, praticamente arrastando-o até a porta. Esbraveja:
— Seu maluco dos diabos! No meu ônibus você não fica nem mais um minuto!
Acionando um botão no painel, o motorista abre a porta dobrável, e por ela arremessa o ensandecido homem de terno. Fecha novamente a porta. O lenço manchado de rubro ficou caído no corredor.
Perante o olhar assustado dos passageiros, o condutor do veículo se desculpa pelo ocorrido, alegando que essa não é a primeira vez que precisa expulsar um encrenqueiro do ônibus. Diz acreditar que o rapaz estava sob a ação de alucinógenos.
Acalmando razoavelmente seus passageiros, o motorista reassume a direção e o ônibus finalmente segue viagem. Intimamente, eu discordo do que ele falou. O Pavarotti não estava drogado. A meu ver, é um sujeito muito doente. Ele claramente precisava de ajuda. O motorista estava aborrecido demais para notar que havia algo muito errado com o homem de terno. Pelo amor de Deus! Todo mundo perdeu a cabeça nesse ônibus, e só eu consigo pensar razoavelmente por aqui?
Cinco minutos transcorrem com a lentidão de um século. O ônibus se move roncando dentro da noite. Nunca uma viagem tão curta pareceu tão torturantemente longa. Ouço uma tosse seca novamente e me sobressalto. Meus sentidos entram em estado de alerta. Pelo canto dos olhos, com minha visão periférica percebo um movimento. Na quase escuridão do veículo uma mulher se desloca pelo corredor. Vem do fundo do veículo. Ela passa por mim. Num átimo, vislumbro as marcas de arranhão em seu pescoço e entendo tudo. Tenho um terrível pressentimento porque a vejo rumar avidamente para a cabine do motorista.
Ela caminha um tanto trôpega. Acho que os passageiros que a estão vendo cambalear acreditam ser o motivo de seu balanço e inconstância a velocidade na qual viajamos — a qual, pelos meus cálculos, deve beirar os 90 Km/h. Mas eu sei que não é isso.
Ela se move como o Pavarotti se movia durante o ataque ao motorista, e também tosse igual a ele. Deve ter contraído sua doença por meio dos arranhões. Tornou-se a nova ameaça a bordo.
Preciso intervir. Tenho de impedi-la. Não me entendam mal, por favor. Não acho que seja um anseio heroico aquilo que me impele. Acredito que seja mais uma questão de sobrevivência. Disponho-me a me levantar rapidamente. Sinto um agarrão na cintura, retendo-me no banco. Baixo os olhos e praguejo ao ver o cinto de segurança bem afivelado, engastalhando-me naquele instante crucial.

Luto para me desvencilhar. Porém, isso toma tempo. Segundos preciosos se vão. Percebo que é tarde demais, porque a mulher de alguma forma já invadiu a cabine do motorista. Então desisto de soltar o cinto de segurança. A partir de agora, ele será minha tábua de salvação durante a tragédia que está para acontecer.
Surpreendendo o motorista, a mulher salta-lhe em cima e crava os dentes em seu pescoço, arrancando dali um grande naco de carne e um impetuoso jorro quente de sangue. O homem gorgoleja mortalmente ferido. Num espasmo, gira o volante em um desastrado golpe de direção. O ônibus, desgovernado, passa direto em uma curva acentuada, sai da pista em alta velocidade e capota.
O impacto ecoa como um trovão em nossos ouvidos e joga os passageiros uns contra os outros, embolando-os. As malas alojadas nos compartimentos acima dos bancos, próximo ao teto, passam a cair pesadamente sobre nós. Gritos de dor e pânico. Um barulho ensurdecedor de vidros estilhaçando. Tudo gira, parecendo ruir apocalipticamente.
Algo atinge minha cabeça com força, causando um estalo contra meu crânio.
 Vácuo. Fria escuridão. E depois, somente o silêncio.


Continua...


Danilo Alex da Silva



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