"28 de Setembro. Dia. Os monstros tomaram a cidade. De alguma forma, ainda estou viva."
(Jill Valentine - Resident Evil 3)
Minhas mãos atingem a rodovia. Sinto o contato áspero do asfalto sob
meus dedos crispados. Não sem sacrifício consigo içar meu corpo e fico um
instante deitado de barriga para cima no acostamento da estrada deserta.
Procuro respirar fundo, recobrar o fôlego.
Então, lentamente me ponho de pé.
Lanço um olhar confiante para a ladeira que acabei de vencer. O vento
frio oeste traz até mim os grunhidos e resmungos dos mortos-vivos que se
remexem lá embaixo, dentro do ônibus tombado. Certamente estão saindo também
pelo vão da janela, tal como fiz. No entanto, isso não me preocupa.
A ladeira é realmente íngreme. Os monstros não conseguirão rastejar por
ela como fizeram no corredor do lotação, porque o caminho está repleto de
cascalhos soltos e escorregadios. Embora os mortos estejam em grande número,
falta-lhes raciocínio.
Essa é minha grande vantagem.
Eles terão de dar a volta para encontrar um lugar menos inclinado, por
onde finalmente poderão subir até a estrada. Quando isso acontecer, já estarei
bem longe.
Acho que estou fora de perigo, pelo menos por enquanto.
Sinto-me repentinamente um pouco zonzo. O latejar na cabeça diminuiu
bastante, embora a concussão ainda doa um pouco. Se transformou em uma espécie
de cutucão ocasional no meu cérebro. Involuntariamente minha mente produz uma
retrospectiva dos acontecimentos mais marcantes da noite até então.
Tudo se desenrola diante de meus olhos, como um filme. Revejo o soco que
o motorista deu no Pavarotti. Revejo
também a mulher mordendo o pescoço do motorista, a pele e a carne presas entre
os dentes da criatura, sendo repuxadas como queijo derretido que se estica do
sanduíche até nossa boca, quando damos aquela mordida mais generosa. Com
arrepiante clareza vejo o olhar inesquecível da criança um momento antes dela
cair no meio da horda assassina alvoroçada.
Um líquido grosso e chocantemente vermelho respingando para todos os
lados, parecido com molho de tomate.
Só que não era molho de tomate, obviamente.
Maldição! Por que tenho que pensar nessas coisas justo agora?
A náusea volta com força total. Um bolo se forma em meu estômago e passa
a subir por minha garganta. Não dá mais para segurar.
Me curvo imediatamente para frente, abro bem a boca e ruidosamente
coloco para fora tudo o que comi, tomando muito cuidado para não sujar meu
tênis.
Contudo, o que é exatamente tudo o que comi? Não muita coisa.
Não me alimentei tanto hoje. Saí de casa sem jantar, porque minha
namorada e a família dela me esperavam para comer com eles.
O vômito me vem em espasmos, por meio de ondas violentas. Acho que tudo
que comi hoje se resume basicamente ao Doritos.
Pronto! Já me sinto um pouco melhor. Limpo a boca na manga da jaqueta. A
tonteira passou. Devo me por a caminho sem demora.
Agora, outro fator me desorienta: Não saber para qual lado devo seguir.
Hesitante, perscruto os dois sentidos da estrada escura e vazia.
O que fazer? Droga!!!
Desanimado, levanto meus olhos para o céu noturno parcamente estrelado.
Eu deveria ter me interessado mais por Astronomia, porque desse modo
poderia agora me orientar pela posição dos astros e encontrar meu caminho,
igual fazem as caravanas de beduínos ao cruzar os desertos e os marinheiros ao
singrar os mares.
Estou perdido. O céu negro que exibe escassas constelações é um mistério
absoluto para mim. Ele não vai me apontar o rumo certo.
Então, dando de ombros, escolho aleatoriamente uma direção e passo a
caminhar por ela, torcendo fervorosamente para que seja a correta.
Em pouco tempo deixo para trás a área do acidente, onde perdi tudo.
Avanço obstinadamente levando comigo apenas a roupa do corpo e a faca de
pescador na cintura.
Felizmente descubro que me dirijo na direção esperada: uma placa no
acostamento, meio oculta pela vegetação, confirmou isso. Nela, posso ler que
dez quilômetros me separam da entrada que leva à comunidade onde se localiza o
rancho da família da namorada. Dessa entrada na rodovia até a propriedade deles
são, como expliquei antes, mais doze quilômetros, totalizando vinte e dois
quilômetros de percurso a pé dentro da escuridão.
Tenho uma caminhada e tanto pela frente. Será uma noite longa.
Minha tênue esperança repousa na possibilidade de minha garota e seus
pais estarem ainda me aguardando no carro, no acostamento, parados na estrada
que leva ao rancho.
Se estão mesmo ainda lá, a essa hora devem estar preocupados, esperando
eu descer de um ônibus que nunca vai chegar. Gostaria de poder avisá-los do
ocorrido, mas lamentavelmente perdi meu celular durante o acidente. Ou talvez
tenha sido durante a fuga. Enfim, não posso saber ao certo. O que sei é que, ao
menos por ora, estou incomunicável.
Preciso continuar avançando a qualquer custo. Estou longe demais de casa
para cogitar em voltar. O jeito é seguir em frente. Dedico um instante para
pensar em minha família. Espero que todos estejam bem.
Olho para minha mão direita, em cujo dedo anular ostento a aliança de
compromisso, prateada e com uma raja dourada no meio. Envolvo minha garota em
meus pensamentos, e meu coração se aperta. Temo nunca mais ver as pessoas que
amo: namorada e sua família, meus pais, irmãos, amigos...
Receio que o pior aconteça.
O quê? Se estou com medo?
Claro que sim!
Você também não estaria?
Abano resolutamente a cabeça, afastando da mente os pensamentos sombrios
e colocando meus temores em seu devido lugar.
Na última vez que tentei ser otimista não deu muito certo. Ainda assim,
estou disposto a tentar outra vez.
Nunca se deve perder a fé, certo?
Mais confiante após ter avistado a placa, recomeço a andar.
Tomo os devidos cuidados e prossigo. Há algo que quero compartilhar.
Uma coisa que aprendi nessa vida é: se você tiver que caminhar por uma
estrada e, principalmente, se for fazer isso à noite, siga pelo acostamento,
ladeando o sentido contrário dos veículos. Jamais caminhe no mesmo sentido do
fluxo do trânsito, porque se o fizer, você estará de costas para o perigo. Pode
não ser visto (a) pelos motoristas e acabar atropelado (a) em cheio por um
veículo transitando a uma velocidade muito provavelmente superior a 100 Km/h.
Não quero que você termine como uma das muitas cruzes que ornam tragicamente
a beira de tantas de nossas rodovias.
Dadas as atuais circunstâncias, ainda que eu considere impossível passar
um grande número de veículos apressado por aqui nessa noite, visto que essa
rodovia já era pouco movimentada antes mesmo dos mortos andarem, prefiro me
precaver e me desloco pelo esquerdo da rodovia, caminhando ao longo do
acostamento, de onde tenho uma visão frontal do trânsito. Se houver qualquer
problema, tenho tempo de perceber o perigo e saltar para fora da estrada. Nunca
se sabe. Cresci ouvindo que “o seguro morreu de velho.” Não me custa ser
cauteloso.
Aliás, acredito que “cautela”
será uma palavra de ordem nessa nova e caótica fase a qual a humanidade está
atravessando.
Acelero o passo. Sigo caminhando apressado pela margem da estrada
escura, silenciosa e deserta. Meus ouvidos estão perfeitamente atentos aos
menores ruídos produzidos nas entranhas da noite. A traiçoeira escuridão agora
é minha inimiga. Ela pode acobertar a aproximação dos monstros. Todo cuidado é
pouco.
Perco a noção de quanto tempo caminho sobressaltado. Calculo que avancei
cerca de um quilômetro, ou um quilômetro e meio. Vejo uma curva acentuada
surgir à frente.
Depois da curva, subitamente diviso uma pequena luz laranja-amarelada
piscando freneticamente em meio ao negrume noturno. Minhas emoções são
conflitantes. Sinto medo e esperança simultaneamente. Alívio e tensão.
A luz que pisca intermitentemente logo adiante pode representar a
solução dos meus problemas, ou apenas o começo deles.
Mais ou menos uns cinqüenta metros após a curva, parado de frente para
mim, no mesmo acostamento pelo qual sigo, há um carro parado. Sei disso, porque
a luz amarelo-alaranjada nada mais é do que um pisca-alerta ligado, informando
efetivamente sua posição a quem passar, para evitar colisões.
De onde estou não é possível saber se o carro está ocupado.
Ando mais devagar, rumando para o veículo.
Desço a mão até a
cintura e me tranquilizo ao verificar que a bainha de couro continua
ali. A presença da faca transmite para mim a mesma confiança que sente uma
criança ao ter sua pequenina mão firmemente segura pela do pai.
Agora vejo bem o carro. É um Celta
vermelho. E está vazio.
Relaxo os músculos. Minha mão se afasta da faca.
Rodeio o veículo, que é equipado com quatro portas. O dono sinalizou
devidamente a traseira do Celta com o triângulo refletivo, e depois, medindo a
distância por meio da contagem de seus próprios passos, colocou galhos de
árvore na pista do acostamento. Tudo isso, somado ao constante pulsar do pisca–alerta,
conferia ao carro uma boa visibilidade para os demais viajantes.
Corro a vista pelas proximidades e não enxergo sinal do motorista.
Estaria por perto, protegido pelas sombras da beirada da estrada,
tirando a água do joelho? Teria passado mal? Estaria caído em algum lugar,
morto? Ou, pior ainda, estaria por ali, se transformando, espreitando no
escuro, desejando me apanhar desprevenido?
Não é impossível. Só pouco provável.
Se ele teve tempo de se preocupar em sinalizar a área onde estacionou o
carro, é porque saiu calmamente daqui. Certamente ficou sem combustível. Quase
posso ver um homem (ou uma mulher, quem sabe?) andando solitariamente pelo
acostamento, empunhando um galão para gasolina, se encaminhando para o posto
mais próximo. Mal sabe ele (a) que o posto mais próximo não está nada próximo.
A lataria do carro está impecável, seu vermelho sangue brilhando de tão
meticulosamente encerado. Estendo a mão e experimento a porta.
Bingo! Está destrancada.
Prendo a respiração e espero ouvir o estridente alarme contra roubos
varando a noite.
Nada acontece. Apenas os grilos continuam se pronunciando.
Seja lá quem for o proprietário deste Celta, a despeito de seu zelo
quanto à limpeza do veículo, é alguém bastante confiante.
Escancaro a porta. Meu instinto me diz para fechá-la e seguir em frente
sem olhar para trás, porque se uma viatura da Polícia Rodoviária passar por
aqui, terei grandes problemas. Por outro lado, meu racional sabiamente ordena
que eu continue tranquilamente a revistar o Celta, porque a Polícia não vai
passar agora. Talvez não passe nunca mais. Todos os indícios levam a crer que o
mundo mudou.
Entro no carro.
O cheiro do carpete novo e do banco de couro revelam que o carro saiu
recentemente da loja. Me espremo para caber atrás do pequeno volante esportivo.
Apesar de seu conforto, o Celta é um carro extremamente apertado para um
sujeito alto como eu. Sempre que entro em um, tenho a desagradável impressão de
estar me contorcendo para me acomodar em uma caixa de sapatos. Tudo bem, não
pretendo mesmo ficar muito tempo por aqui.
Verifico o painel. Como imaginei, o mostrador indica que o tanque está
vazio. As chaves não estão na ignição. Bom, o proprietário não é assim tão
desleixado como pensei. Assim como eu, deve julgar que ninguém em sã
consciência tentaria roubar um carro sem gasolina no meio de uma estrada
deserta à noite.
E eu disse “proprietário” porque
agora tenho certeza de que esse Celta vermelho pertence a um homem. Apenas a
imensurável paixão masculina por automóveis seria responsável por essa lataria
rebrilhando, obsessivamente polida, como se encerada por uma pessoa com TOC. Características
como volante esportivo e estofamento de couro também evidenciam a possível mão
de um homem.
O carro é muito bonito e tal, mas eu ainda prefiro motos. A liberdade de
se locomover sobre duas rodas é incomparável. O motociclista não apenas faz
parte da paisagem, mas interage com ela. Se pudesse optar por um veículo para
me ajudar em minha jornada, eu dispensaria esse Celta, mesmo se ele estivesse
com o tanque cheio. Gostaria muito mais de poder montar em uma Falcon 400, ou uma CB 300. Dispararia pela estrada acelerando fundo, cobrindo grandes
distâncias em pouco tempo, sentindo o vento da noite dançar contra meu corpo,
deslizando por minha jaqueta. Sinto falta de minha Titan agora. Suas 150 cilindradas seriam uma mão na roda para
percorrer tantos quilômetros nessa minha longa e imprevista caminhada. Não
posso mudar isso, está no meu sangue.
Olho pela janela. Lá fora a noite estende seus tentáculos de escuridão,
envolvendo o veículo em um abraço letal de sucuri. Grilos trilam no seio das
sombras. A quietude é enervante. O silêncio espesso aqui dentro só é
interrompido pelo tiquetaquear constante e monótono do pisca-alerta acionado.
Vasculho o porta-luvas.
Encontro um maço de cigarros mentolados quase cheio e um isqueiro. Como
não fumo, descarto o primeiro item. Já o segundo é valiosíssimo, e então o
guardo no bolso.
No banco do carona há uma bolsa, dessas que se usa para transportar
roupas e equipamentos de academia. Revisto-a.
A bolsa contém: um par de luvas para puxar peso, uma felpuda toalha de
rosto, uma camiseta regata branca estampada com os dizeres “NO PAIN NO GAIN” em
grandes letras artísticas amarelas.
Para minha felicidade, também encontro uma garrafa de água mineral pela
metade, uma barra de cereal e um sanduíche natural plastificado e intacto. Já
não era sem tempo! Meu estômago tinha começado a roncar.
Primeiro, destampo a garrafa e dou um pequeno gole, com o qual faço um
breve bochecho e cuspo fora, para tirar o gosto azedo de vômito da boca.
Depois, tomo um gole considerável, fecho e volto a guardar a garrafa na bolsa.
Rasgo o plástico que envolve o sanduíche feito com pão integral, alface,
tomate, catupiry e peito de peru grelhado. O dono do carro que me desculpe,
porém, após tudo que passei para chegar até aqui, eu com certeza preciso comer.
No momento, sou mais merecedor deste lanche do que ele.
Devoro o sanduíche em meia dúzia de grandes mordidas e solto um suspiro
de satisfação. Delicioso!
Ainda mastigando, prossigo com a revista e encontro um estojo de
Primeiros Socorros debaixo do banco do motorista. Guardo-o na bolsa também.
Acabo de engolir e me recosto um instante no banco. O couro macio do
estofado é convidativo. O cansaço é maciço, quase palpável. Meu corpo suplica
por um merecido repouso. Meus olhos, que agora parecem pesar como concreto,
quase se fecham sozinhos.
Resisto. Preciso seguir meu caminho. Mais tarde haverá tempo para
descanso. Balanço a cabeça e esfrego os olhos. Luto bravamente contra o sono
avassalador.
Reúno todos os itens que me interessam e coloco na bolsa, a qual fecho
decididamente e carregarei pendurada em meu ombro direito durante o restante do
trajeto. Ela é um tipo de bolsa-sacola masculina da Nike, daquelas cuja boca a gente fecha puxando e amarrando um
cordão. Lembra um pouco a mochila do Bourne.
Antes de sair do Celta, sinto uma súbita curiosidade e ligo o rádio.
Chiadeira e estática. Tentando superar a decepção, continuo mudando as
estações, na esperança de achar alguma que ainda funcione. A maioria das
emissoras está fora do ar e, isso por si só já é um mau sinal.
Finalmente encontro uma ou outra que ainda funciona. Nelas, ninguém mais
canta sertanejo universitário ou anuncia um produto miraculoso. Das raras
estações que ainda perseveram, fluem notícias. E essas notícias não são
exatamente o que se poderia classificar como agradáveis.
De Norte a Sul do país a epidemia se espalhou. O caos foi instaurado. A
situação é simplesmente catastrófica. O presidente decretou Estado de Sítio em
todo o território nacional. O Corpo de Bombeiros e as várias Polícias estão nas
ruas trabalhando com afinco e recebendo ajuda das Forças Armadas,
principalmente o inestimável apoio aéreo.
Os mortos canibais se multiplicam assustadoramente nas ruas da nação, as
quais se tornaram verdadeiras praças de guerra. Milhares de corpos obstruem as
vias. Os militares precisam usar artilharia pesada e gastar munição quase
indiscriminadamente para tentar ao máximo conter essa onda de ataques
apocalípticos, que vem de inimigos sobre os quais jamais se cogitou lutar,
sobretudo assim como estão, reunidos em massa.
Os civis receberam ordens expressas de permanecer em suas casas,
trancando bem as portas e janelas. Qualquer coisa que se mova nas ruas é tida
como inimiga e instantaneamente alvejada pelos soldados. Uma grande operação de
resgate está sendo elaborada, e os cidadãos devem aguardar novas instruções,
pois serão escoltados por tropas fortemente armadas até o ponto de extração
mais próximo. Esses locais designados pelas autoridades para evacuação de
civis, em sua maioria, foram estabelecidos em estádios de futebol, por disporem
de espaço para chegada de caminhões e veículos blindados, e ampla área de pouso
para as centenas de helicópteros que cruzam ininterruptamente o céu da noite,
helicópteros esses pertencentes à Polícia (Militar, Civil e Federal), aos
Bombeiros, ao Exército, Marinha, Aeronáutica e Cruz Vermelha. Muitos pilotos
particulares puseram seus serviços em comum da comunidade, bem com suas
aeronaves, sejam elas aviões monomotores, bimotores ou helicópteros. A Defesa
Civil também trabalha arduamente em cada município brasileiro, ajudando à sua
maneira a socorrer as vítimas da mortandade e estabelecer algum resquício de
ordem nesse pandemônio.
Estão definindo seis grandes campos de refugiados em pontos principais
do território nacional, para onde os sobreviventes serão levados, passarão por
severa triagem médica e receberão comida, roupas, remédios e abrigo. Há uma
grande prisão de segurança máxima construída em uma ilha a cerca de cem
quilômetros da costa brasileira, a qual está sendo cogitada como um possível
sétimo grande campo de refugiados.
Caças militares decolam freqüentemente de navios porta-aviões. Ao que
parece, após o gigantesco processo de evacuação, algumas cidades brasileiras
precisarão ser esterilizadas, ou
seja: um míssil, e elas desaparecem do mapa.
Não quero nem pensar no destino
dos civis sobreviventes que, por algum infeliz acaso, fiquem para trás durante
a evacuação.
Todas as estradas principais estão impedidas. Portos e aeroportos estão
fechados, e são usados estritamente por militares. Rodoviárias, estações de
trem e metrô foram desativadas por medida de segurança. As fronteiras estão
bloqueadas. Ninguém entra e ninguém sai. Os militares têm permissão de abrir
fogo contra quem tentar desobedecer a essa determinação. Devido a isso, uma
cena dramática se desenrola no aeroporto de Guarulhos.
Um Boeing 747 ainda há pouco pousado ali foi isolado, e as centenas de
passageiros se encontram agora confinadas no avião, em quarentena por tempo
indeterminado. Um atirador de elite da Polícia colocou uma bala na cabeça de um
passageiro mais exaltado que desceu da aeronave e tentou transpor as barreiras
estabelecidas pelos militares. O homem abatido tinha sessenta e dois anos de
idade.
De uma forma que nunca aconteceu antes, o Brasil está entrando em
colapso.
Desligo o rádio. O pisca-alerta continua tiquetaqueando. Fora isso, a
ausência de sons é exasperantemente tumular.
Apanho minha nova bolsa e desço do carro, batendo a porta em seguida.
Volto a caminhar perseverantemente pelo acostamento. Ainda tenho pela
frente um percurso de pelo menos vinte quilômetros para cobrir.
Minhas energias estão voltando. Sinto-me como um maratonista que acabou
de passar pela barraca de atendimento da equipe de apoio. Meu corpo, mesmo
cansado, está forte.
Minha mente é que parece anestesiada. Tenho a impressão de estar andando
embaixo d’água. Achei que a situação fosse ruim, mas nunca poderia imaginar que
chegasse a tanto.
O mundo, tal como o conhecíamos, deixa de existir essa noite.
Em pleno Armagedom, vago
sozinho, a pé, por uma estrada imersa nas sombras noturnas. Levo comigo a faca
na cintura, a bolsa no ombro, e no coração a esperança de reencontrar os meus.
Desejo ardentemente que a praga não tenha alcançado ainda de forma tão
devastadora as comunidades rurais. Acho que a velha espingarda que meu sogro
usa para caçar nas férias vai servir para manter sua família a salvo, até que
nos reagrupemos e bolemos juntos uma estratégia de sobrevivência. Depois de
achá-los, quero voltar e encontrar minha família. Com certeza estão precisando
de mim.
A partir de hoje, não existem mais nem ricos nem pobres. Quem escapar
dessa matança terá que se unir a outros sobreviventes quer queira, quer não. O
homem moderno, cercado de tecnologia e acomodado como está, vai sofrer para se
adaptar a essa nova, cruel realidade.
Apesar de todos os esforços das autoridades para limitar todo esse
terror ao território brasileiro, de alguma forma misteriosa essa peste vai
vazar. Pode parecer uma certeza sombria, mas seria ingenuidade pensar o
contrário. Alguém infectado, talvez sem saber que é portador de tão grande mal,
conseguirá deixar o país, se é que ainda não conseguiu. O caos enigmaticamente
sempre encontra seus meios. E então, o mundo inteiro será tomado.
Está chegando a hora de separar o joio do trigo. Estamos todos
condenados. Vemos nascer nesta data um nada admirável mundo novo.
Depois de hoje, ninguém mais vai querer carro do ano ou diploma de
universidade conceituada. Não haverá mais festas, nem feriados, nem reality shows para entreter e manipular
as massas.
Não haverá quem cobre ou pague impostos, embora sempre vá existir aquele
que explora, e aquele a ser explorado.
Não haverá viagens românticas para Veneza, e nem uma gigantesca nação se
mobilizando para assistir a Copa do Mundo.
Não haverá mais urnas eletrônicas para fraudarem nas eleições. Não
haverá mais farra com o dinheiro subtraído dos cofres públicos por governantes
que envergonham e atrasam nossa nação.
Não haverá Facebook. Nem Greenpeace.
E nem passagens aéreas a baixo custo.
Morte é quase tudo o que haverá. O cheiro metálico e nojento de ferrugem
que o sangue derramado impregna no ar, tornando-o quase irrespirável.
Haverá coisas famintas
com dentes e unhas podres, ansiosas para dilacerar inocentes. Haverá seres
semelhantes a pessoas, mas sem raciocínio. Criaturas
tristemente humanoides que animalescamente percorrerão as
ruas ermas, à procura de vítimas. Haverá metrópoles inteiras se tornando
cidades fantasmas, e grandes centros comerciais se convertendo em cemitérios.
Tudo está ruindo.
Entretanto, coexistindo com a morte, haverá o que sempre houve, e o que
sempre haverá: a vida. Existência, ainda que fragilizada pelas circunstâncias.
Antigamente era fácil viver: finalmente tínhamos tudo a nosso alcance.
Talvez por isso nunca demos o devido valor ao ar que respirávamos sem nos
sentir tão amedrontados, livres de ameaças tão sérias quanto à atual.
Nessa noite perdemos nosso suado lugar no topo da cadeira alimentar. A
vida agora será dos fortes. Terá que ser merecida. Conquistada.
Tivemos que perder tudo para perceber seu valor.
E agora que o Inferno ascendeu à Terra conforme predisseram os Reformadores, os dias que nos restarem
servirão essencialmente para duas coisas: lamentar aquilo que tínhamos e não
valorizamos até que nos foi tirado, e lutar desesperadamente por aquilo que
única e verdadeiramente move os homens:
Sobrevivência.
Danilo Alex da Silva