terça-feira, 3 de junho de 2014

Sobreviver - Parte Final


 


"28 de Setembro. Dia. Os monstros tomaram a cidade. De alguma forma, ainda estou viva."

(Jill Valentine - Resident Evil 3)






Minhas mãos atingem a rodovia. Sinto o contato áspero do asfalto sob meus dedos crispados. Não sem sacrifício consigo içar meu corpo e fico um instante deitado de barriga para cima no acostamento da estrada deserta.
Procuro respirar fundo, recobrar o fôlego.
Então, lentamente me ponho de pé.
Lanço um olhar confiante para a ladeira que acabei de vencer. O vento frio oeste traz até mim os grunhidos e resmungos dos mortos-vivos que se remexem lá embaixo, dentro do ônibus tombado. Certamente estão saindo também pelo vão da janela, tal como fiz. No entanto, isso não me preocupa.
A ladeira é realmente íngreme. Os monstros não conseguirão rastejar por ela como fizeram no corredor do lotação, porque o caminho está repleto de cascalhos soltos e escorregadios. Embora os mortos estejam em grande número, falta-lhes raciocínio.
Essa é minha grande vantagem.
Eles terão de dar a volta para encontrar um lugar menos inclinado, por onde finalmente poderão subir até a estrada. Quando isso acontecer, já estarei bem longe.
Acho que estou fora de perigo, pelo menos por enquanto.
Sinto-me repentinamente um pouco zonzo. O latejar na cabeça diminuiu bastante, embora a concussão ainda doa um pouco. Se transformou em uma espécie de cutucão ocasional no meu cérebro. Involuntariamente minha mente produz uma retrospectiva dos acontecimentos mais marcantes da noite até então.
Tudo se desenrola diante de meus olhos, como um filme. Revejo o soco que o motorista deu no Pavarotti. Revejo também a mulher mordendo o pescoço do motorista, a pele e a carne presas entre os dentes da criatura, sendo repuxadas como queijo derretido que se estica do sanduíche até nossa boca, quando damos aquela mordida mais generosa. Com arrepiante clareza vejo o olhar inesquecível da criança um momento antes dela cair no meio da horda assassina alvoroçada.
Um líquido grosso e chocantemente vermelho respingando para todos os lados, parecido com molho de tomate.
Só que não era molho de tomate, obviamente.
Maldição! Por que tenho que pensar nessas coisas justo agora?
A náusea volta com força total. Um bolo se forma em meu estômago e passa a subir por minha garganta. Não dá mais para segurar.
Me curvo imediatamente para frente, abro bem a boca e ruidosamente coloco para fora tudo o que comi, tomando muito cuidado para não sujar meu tênis.
Contudo, o que é exatamente tudo o que comi? Não muita coisa.
Não me alimentei tanto hoje. Saí de casa sem jantar, porque minha namorada e a família dela me esperavam para comer com eles.
O vômito me vem em espasmos, por meio de ondas violentas. Acho que tudo que comi hoje se resume basicamente ao Doritos.
Pronto! Já me sinto um pouco melhor. Limpo a boca na manga da jaqueta. A tonteira passou. Devo me por a caminho sem demora.
Agora, outro fator me desorienta: Não saber para qual lado devo seguir. Hesitante, perscruto os dois sentidos da estrada escura e vazia.
O que fazer? Droga!!!
Desanimado, levanto meus olhos para o céu noturno parcamente estrelado.
Eu deveria ter me interessado mais por Astronomia, porque desse modo poderia agora me orientar pela posição dos astros e encontrar meu caminho, igual fazem as caravanas de beduínos ao cruzar os desertos e os marinheiros ao singrar os mares.  
Estou perdido. O céu negro que exibe escassas constelações é um mistério absoluto para mim. Ele não vai me apontar o rumo certo.
Então, dando de ombros, escolho aleatoriamente uma direção e passo a caminhar por ela, torcendo fervorosamente para que seja a correta.
Em pouco tempo deixo para trás a área do acidente, onde perdi tudo. Avanço obstinadamente levando comigo apenas a roupa do corpo e a faca de pescador na cintura.
Felizmente descubro que me dirijo na direção esperada: uma placa no acostamento, meio oculta pela vegetação, confirmou isso. Nela, posso ler que dez quilômetros me separam da entrada que leva à comunidade onde se localiza o rancho da família da namorada. Dessa entrada na rodovia até a propriedade deles são, como expliquei antes, mais doze quilômetros, totalizando vinte e dois quilômetros de percurso a pé dentro da escuridão.
Tenho uma caminhada e tanto pela frente. Será uma noite longa.
Minha tênue esperança repousa na possibilidade de minha garota e seus pais estarem ainda me aguardando no carro, no acostamento, parados na estrada que leva ao rancho.
Se estão mesmo ainda lá, a essa hora devem estar preocupados, esperando eu descer de um ônibus que nunca vai chegar. Gostaria de poder avisá-los do ocorrido, mas lamentavelmente perdi meu celular durante o acidente. Ou talvez tenha sido durante a fuga. Enfim, não posso saber ao certo. O que sei é que, ao menos por ora, estou incomunicável.
Preciso continuar avançando a qualquer custo. Estou longe demais de casa para cogitar em voltar. O jeito é seguir em frente. Dedico um instante para pensar em minha família. Espero que todos estejam bem.
Olho para minha mão direita, em cujo dedo anular ostento a aliança de compromisso, prateada e com uma raja dourada no meio. Envolvo minha garota em meus pensamentos, e meu coração se aperta. Temo nunca mais ver as pessoas que amo: namorada e sua família, meus pais, irmãos, amigos...
Receio que o pior aconteça.
O quê? Se estou com medo?
Claro que sim!
Você também não estaria?
Abano resolutamente a cabeça, afastando da mente os pensamentos sombrios e colocando meus temores em seu devido lugar.
Na última vez que tentei ser otimista não deu muito certo. Ainda assim, estou disposto a tentar outra vez.
Nunca se deve perder a fé, certo?
Mais confiante após ter avistado a placa, recomeço a andar.
Tomo os devidos cuidados e prossigo. Há algo que quero compartilhar.
Uma coisa que aprendi nessa vida é: se você tiver que caminhar por uma estrada e, principalmente, se for fazer isso à noite, siga pelo acostamento, ladeando o sentido contrário dos veículos. Jamais caminhe no mesmo sentido do fluxo do trânsito, porque se o fizer, você estará de costas para o perigo. Pode não ser visto (a) pelos motoristas e acabar atropelado (a) em cheio por um veículo transitando a uma velocidade muito provavelmente superior a 100 Km/h.
Não quero que você termine como uma das muitas cruzes que ornam tragicamente a beira de tantas de nossas rodovias.
Dadas as atuais circunstâncias, ainda que eu considere impossível passar um grande número de veículos apressado por aqui nessa noite, visto que essa rodovia já era pouco movimentada antes mesmo dos mortos andarem, prefiro me precaver e me desloco pelo esquerdo da rodovia, caminhando ao longo do acostamento, de onde tenho uma visão frontal do trânsito. Se houver qualquer problema, tenho tempo de perceber o perigo e saltar para fora da estrada. Nunca se sabe. Cresci ouvindo que “o seguro morreu de velho.” Não me custa ser cauteloso.
Aliás, acredito que “cautela” será uma palavra de ordem nessa nova e caótica fase a qual a humanidade está atravessando.
Acelero o passo. Sigo caminhando apressado pela margem da estrada escura, silenciosa e deserta. Meus ouvidos estão perfeitamente atentos aos menores ruídos produzidos nas entranhas da noite. A traiçoeira escuridão agora é minha inimiga. Ela pode acobertar a aproximação dos monstros. Todo cuidado é pouco.
Perco a noção de quanto tempo caminho sobressaltado. Calculo que avancei cerca de um quilômetro, ou um quilômetro e meio. Vejo uma curva acentuada surgir à frente.
Depois da curva, subitamente diviso uma pequena luz laranja-amarelada piscando freneticamente em meio ao negrume noturno. Minhas emoções são conflitantes. Sinto medo e esperança simultaneamente. Alívio e tensão.
A luz que pisca intermitentemente logo adiante pode representar a solução dos meus problemas, ou apenas o começo deles.
Mais ou menos uns cinqüenta metros após a curva, parado de frente para mim, no mesmo acostamento pelo qual sigo, há um carro parado. Sei disso, porque a luz amarelo-alaranjada nada mais é do que um pisca-alerta ligado, informando efetivamente sua posição a quem passar, para evitar colisões.
De onde estou não é possível saber se o carro está ocupado.
Ando mais devagar, rumando para o veículo.
Desço a mão até a cintura e me tranquilizo ao verificar que a bainha de couro continua ali. A presença da faca transmite para mim a mesma confiança que sente uma criança ao ter sua pequenina mão firmemente segura pela do pai.
Agora vejo bem o carro. É um Celta vermelho. E está vazio.
Relaxo os músculos. Minha mão se afasta da faca.
Rodeio o veículo, que é equipado com quatro portas. O dono sinalizou devidamente a traseira do Celta com o triângulo refletivo, e depois, medindo a distância por meio da contagem de seus próprios passos, colocou galhos de árvore na pista do acostamento. Tudo isso, somado ao constante pulsar do pisca–alerta, conferia ao carro uma boa visibilidade para os demais viajantes.
Corro a vista pelas proximidades e não enxergo sinal do motorista.
Estaria por perto, protegido pelas sombras da beirada da estrada, tirando a água do joelho? Teria passado mal? Estaria caído em algum lugar, morto? Ou, pior ainda, estaria por ali, se transformando, espreitando no escuro, desejando me apanhar desprevenido?
Não é impossível. Só pouco provável.
Se ele teve tempo de se preocupar em sinalizar a área onde estacionou o carro, é porque saiu calmamente daqui. Certamente ficou sem combustível. Quase posso ver um homem (ou uma mulher, quem sabe?) andando solitariamente pelo acostamento, empunhando um galão para gasolina, se encaminhando para o posto mais próximo. Mal sabe ele (a) que o posto mais próximo não está nada próximo.
A lataria do carro está impecável, seu vermelho sangue brilhando de tão meticulosamente encerado. Estendo a mão e experimento a porta.
Bingo! Está destrancada.
Prendo a respiração e espero ouvir o estridente alarme contra roubos varando a noite.
Nada acontece. Apenas os grilos continuam se pronunciando.
Seja lá quem for o proprietário deste Celta, a despeito de seu zelo quanto à limpeza do veículo, é alguém bastante confiante.
Escancaro a porta. Meu instinto me diz para fechá-la e seguir em frente sem olhar para trás, porque se uma viatura da Polícia Rodoviária passar por aqui, terei grandes problemas. Por outro lado, meu racional sabiamente ordena que eu continue tranquilamente a revistar o Celta, porque a Polícia não vai passar agora. Talvez não passe nunca mais. Todos os indícios levam a crer que o mundo mudou.
Entro no carro.
O cheiro do carpete novo e do banco de couro revelam que o carro saiu recentemente da loja. Me espremo para caber atrás do pequeno volante esportivo. Apesar de seu conforto, o Celta é um carro extremamente apertado para um sujeito alto como eu. Sempre que entro em um, tenho a desagradável impressão de estar me contorcendo para me acomodar em uma caixa de sapatos. Tudo bem, não pretendo mesmo ficar muito tempo por aqui.
Verifico o painel. Como imaginei, o mostrador indica que o tanque está vazio. As chaves não estão na ignição. Bom, o proprietário não é assim tão desleixado como pensei. Assim como eu, deve julgar que ninguém em sã consciência tentaria roubar um carro sem gasolina no meio de uma estrada deserta à noite.
 E eu disse “proprietário” porque agora tenho certeza de que esse Celta vermelho pertence a um homem. Apenas a imensurável paixão masculina por automóveis seria responsável por essa lataria rebrilhando, obsessivamente polida, como se encerada por uma pessoa com TOC. Características como volante esportivo e estofamento de couro também evidenciam a possível mão de um homem.
O carro é muito bonito e tal, mas eu ainda prefiro motos. A liberdade de se locomover sobre duas rodas é incomparável. O motociclista não apenas faz parte da paisagem, mas interage com ela. Se pudesse optar por um veículo para me ajudar em minha jornada, eu dispensaria esse Celta, mesmo se ele estivesse com o tanque cheio. Gostaria muito mais de poder montar em uma Falcon 400, ou uma CB 300. Dispararia pela estrada acelerando fundo, cobrindo grandes distâncias em pouco tempo, sentindo o vento da noite dançar contra meu corpo, deslizando por minha jaqueta. Sinto falta de minha Titan agora. Suas 150 cilindradas seriam uma mão na roda para percorrer tantos quilômetros nessa minha longa e imprevista caminhada. Não posso mudar isso, está no meu sangue.
Olho pela janela. Lá fora a noite estende seus tentáculos de escuridão, envolvendo o veículo em um abraço letal de sucuri. Grilos trilam no seio das sombras. A quietude é enervante. O silêncio espesso aqui dentro só é interrompido pelo tiquetaquear constante e monótono do pisca-alerta acionado.
Vasculho o porta-luvas.
Encontro um maço de cigarros mentolados quase cheio e um isqueiro. Como não fumo, descarto o primeiro item. Já o segundo é valiosíssimo, e então o guardo no bolso.
No banco do carona há uma bolsa, dessas que se usa para transportar roupas e equipamentos de academia. Revisto-a.
A bolsa contém: um par de luvas para puxar peso, uma felpuda toalha de rosto, uma camiseta regata branca estampada com os dizeres “NO PAIN NO GAIN” em grandes letras artísticas amarelas.
Para minha felicidade, também encontro uma garrafa de água mineral pela metade, uma barra de cereal e um sanduíche natural plastificado e intacto. Já não era sem tempo! Meu estômago tinha começado a roncar.
Primeiro, destampo a garrafa e dou um pequeno gole, com o qual faço um breve bochecho e cuspo fora, para tirar o gosto azedo de vômito da boca. Depois, tomo um gole considerável, fecho e volto a guardar a garrafa na bolsa.
Rasgo o plástico que envolve o sanduíche feito com pão integral, alface, tomate, catupiry e peito de peru grelhado. O dono do carro que me desculpe, porém, após tudo que passei para chegar até aqui, eu com certeza preciso comer. No momento, sou mais merecedor deste lanche do que ele.
Devoro o sanduíche em meia dúzia de grandes mordidas e solto um suspiro de satisfação. Delicioso!
Ainda mastigando, prossigo com a revista e encontro um estojo de Primeiros Socorros debaixo do banco do motorista. Guardo-o na bolsa também.
Acabo de engolir e me recosto um instante no banco. O couro macio do estofado é convidativo. O cansaço é maciço, quase palpável. Meu corpo suplica por um merecido repouso. Meus olhos, que agora parecem pesar como concreto, quase se fecham sozinhos.
Resisto. Preciso seguir meu caminho. Mais tarde haverá tempo para descanso. Balanço a cabeça e esfrego os olhos. Luto bravamente contra o sono avassalador.
Reúno todos os itens que me interessam e coloco na bolsa, a qual fecho decididamente e carregarei pendurada em meu ombro direito durante o restante do trajeto. Ela é um tipo de bolsa-sacola masculina da Nike, daquelas cuja boca a gente fecha puxando e amarrando um cordão. Lembra um pouco a mochila do Bourne.
Antes de sair do Celta, sinto uma súbita curiosidade e ligo o rádio. Chiadeira e estática. Tentando superar a decepção, continuo mudando as estações, na esperança de achar alguma que ainda funcione. A maioria das emissoras está fora do ar e, isso por si só já é um mau sinal.
Finalmente encontro uma ou outra que ainda funciona. Nelas, ninguém mais canta sertanejo universitário ou anuncia um produto miraculoso. Das raras estações que ainda perseveram, fluem notícias. E essas notícias não são exatamente o que se poderia classificar como agradáveis.
De Norte a Sul do país a epidemia se espalhou. O caos foi instaurado. A situação é simplesmente catastrófica. O presidente decretou Estado de Sítio em todo o território nacional. O Corpo de Bombeiros e as várias Polícias estão nas ruas trabalhando com afinco e recebendo ajuda das Forças Armadas, principalmente o inestimável apoio aéreo.
Os mortos canibais se multiplicam assustadoramente nas ruas da nação, as quais se tornaram verdadeiras praças de guerra. Milhares de corpos obstruem as vias. Os militares precisam usar artilharia pesada e gastar munição quase indiscriminadamente para tentar ao máximo conter essa onda de ataques apocalípticos, que vem de inimigos sobre os quais jamais se cogitou lutar, sobretudo assim como estão, reunidos em massa.
Os civis receberam ordens expressas de permanecer em suas casas, trancando bem as portas e janelas. Qualquer coisa que se mova nas ruas é tida como inimiga e instantaneamente alvejada pelos soldados. Uma grande operação de resgate está sendo elaborada, e os cidadãos devem aguardar novas instruções, pois serão escoltados por tropas fortemente armadas até o ponto de extração mais próximo. Esses locais designados pelas autoridades para evacuação de civis, em sua maioria, foram estabelecidos em estádios de futebol, por disporem de espaço para chegada de caminhões e veículos blindados, e ampla área de pouso para as centenas de helicópteros que cruzam ininterruptamente o céu da noite, helicópteros esses pertencentes à Polícia (Militar, Civil e Federal), aos Bombeiros, ao Exército, Marinha, Aeronáutica e Cruz Vermelha. Muitos pilotos particulares puseram seus serviços em comum da comunidade, bem com suas aeronaves, sejam elas aviões monomotores, bimotores ou helicópteros. A Defesa Civil também trabalha arduamente em cada município brasileiro, ajudando à sua maneira a socorrer as vítimas da mortandade e estabelecer algum resquício de ordem nesse pandemônio.  
Estão definindo seis grandes campos de refugiados em pontos principais do território nacional, para onde os sobreviventes serão levados, passarão por severa triagem médica e receberão comida, roupas, remédios e abrigo. Há uma grande prisão de segurança máxima construída em uma ilha a cerca de cem quilômetros da costa brasileira, a qual está sendo cogitada como um possível sétimo grande campo de refugiados.
Caças militares decolam freqüentemente de navios porta-aviões. Ao que parece, após o gigantesco processo de evacuação, algumas cidades brasileiras precisarão ser esterilizadas, ou seja: um míssil, e elas desaparecem do mapa.
 Não quero nem pensar no destino dos civis sobreviventes que, por algum infeliz acaso, fiquem para trás durante a evacuação.
Todas as estradas principais estão impedidas. Portos e aeroportos estão fechados, e são usados estritamente por militares. Rodoviárias, estações de trem e metrô foram desativadas por medida de segurança. As fronteiras estão bloqueadas. Ninguém entra e ninguém sai. Os militares têm permissão de abrir fogo contra quem tentar desobedecer a essa determinação. Devido a isso, uma cena dramática se desenrola no aeroporto de Guarulhos.
Um Boeing 747 ainda há pouco pousado ali foi isolado, e as centenas de passageiros se encontram agora confinadas no avião, em quarentena por tempo indeterminado. Um atirador de elite da Polícia colocou uma bala na cabeça de um passageiro mais exaltado que desceu da aeronave e tentou transpor as barreiras estabelecidas pelos militares. O homem abatido tinha sessenta e dois anos de idade.
De uma forma que nunca aconteceu antes, o Brasil está entrando em colapso.
Desligo o rádio. O pisca-alerta continua tiquetaqueando. Fora isso, a ausência de sons é exasperantemente tumular.
Apanho minha nova bolsa e desço do carro, batendo a porta em seguida.
Volto a caminhar perseverantemente pelo acostamento. Ainda tenho pela frente um percurso de pelo menos vinte quilômetros para cobrir.
Minhas energias estão voltando. Sinto-me como um maratonista que acabou de passar pela barraca de atendimento da equipe de apoio. Meu corpo, mesmo cansado, está forte.
Minha mente é que parece anestesiada. Tenho a impressão de estar andando embaixo d’água. Achei que a situação fosse ruim, mas nunca poderia imaginar que chegasse a tanto.
O mundo, tal como o conhecíamos, deixa de existir essa noite.
Em pleno Armagedom, vago sozinho, a pé, por uma estrada imersa nas sombras noturnas. Levo comigo a faca na cintura, a bolsa no ombro, e no coração a esperança de reencontrar os meus. Desejo ardentemente que a praga não tenha alcançado ainda de forma tão devastadora as comunidades rurais. Acho que a velha espingarda que meu sogro usa para caçar nas férias vai servir para manter sua família a salvo, até que nos reagrupemos e bolemos juntos uma estratégia de sobrevivência. Depois de achá-los, quero voltar e encontrar minha família. Com certeza estão precisando de mim.
A partir de hoje, não existem mais nem ricos nem pobres. Quem escapar dessa matança terá que se unir a outros sobreviventes quer queira, quer não. O homem moderno, cercado de tecnologia e acomodado como está, vai sofrer para se adaptar a essa nova, cruel realidade.
Apesar de todos os esforços das autoridades para limitar todo esse terror ao território brasileiro, de alguma forma misteriosa essa peste vai vazar. Pode parecer uma certeza sombria, mas seria ingenuidade pensar o contrário. Alguém infectado, talvez sem saber que é portador de tão grande mal, conseguirá deixar o país, se é que ainda não conseguiu. O caos enigmaticamente sempre encontra seus meios. E então, o mundo inteiro será tomado.
Está chegando a hora de separar o joio do trigo. Estamos todos condenados. Vemos nascer nesta data um nada admirável mundo novo.
Depois de hoje, ninguém mais vai querer carro do ano ou diploma de universidade conceituada. Não haverá mais festas, nem feriados, nem reality shows para entreter e manipular as massas.
Não haverá quem cobre ou pague impostos, embora sempre vá existir aquele que explora, e aquele a ser explorado.
Não haverá viagens românticas para Veneza, e nem uma gigantesca nação se mobilizando para assistir a Copa do Mundo.
Não haverá mais urnas eletrônicas para fraudarem nas eleições. Não haverá mais farra com o dinheiro subtraído dos cofres públicos por governantes que envergonham e atrasam nossa nação.
Não haverá Facebook. Nem Greenpeace. E nem passagens aéreas a baixo custo.
Morte é quase tudo o que haverá. O cheiro metálico e nojento de ferrugem que o sangue derramado impregna no ar, tornando-o quase irrespirável.
Haverá coisas famintas com dentes e unhas podres, ansiosas para dilacerar inocentes. Haverá seres semelhantes a pessoas, mas sem raciocínio. Criaturas tristemente humanoides que animalescamente percorrerão as ruas ermas, à procura de vítimas. Haverá metrópoles inteiras se tornando cidades fantasmas, e grandes centros comerciais se convertendo em cemitérios.
Tudo está ruindo.
Entretanto, coexistindo com a morte, haverá o que sempre houve, e o que sempre haverá: a vida. Existência, ainda que fragilizada pelas circunstâncias.
Antigamente era fácil viver: finalmente tínhamos tudo a nosso alcance. Talvez por isso nunca demos o devido valor ao ar que respirávamos sem nos sentir tão amedrontados, livres de ameaças tão sérias quanto à atual.
Nessa noite perdemos nosso suado lugar no topo da cadeira alimentar. A vida agora será dos fortes. Terá que ser merecida. Conquistada.
Tivemos que perder tudo para perceber seu valor.
E agora que o Inferno ascendeu à Terra conforme predisseram os Reformadores, os dias que nos restarem servirão essencialmente para duas coisas: lamentar aquilo que tínhamos e não valorizamos até que nos foi tirado, e lutar desesperadamente por aquilo que única e verdadeiramente move os homens:
Sobrevivência.


Danilo Alex da Silva

sábado, 24 de maio de 2014

Sobreviver - Parte IV




"A sobrevivência muitas vezes exige coragem."

(Filme A Viagem)




Quando coloca os pés para fora de casa em uma sexta à noite com o objetivo de tomar um ônibus, você talvez espere ver muitas coisas pelo caminho. Entretanto, tenho certeza de que nunca imagina que vai se deparar com um Apocalipse Zumbi. E sei que cogita menos ainda, sequer sonha com a possibilidade de ver um garotinho indefeso de três anos de idade ser impiedosamente triturado por mortos reanimados.
Fui obrigado a assistir todo o horror de uma criança passando pelo que parecia uma espécie de moedor de carne. Essa imagem está gravada em minha retina. Armazenada em minha mente. Caso ocorra o milagre de eu escapar com vida — o que sinceramente duvido muito agora — a lembrança do menininho devorado por mortos-vivos é um fardo que vou carregar pelo resto de meus precários dias, durante os quais terei de lutar contra tudo e todos. Matar ou ser morto: agora esse é o único modo de assegurar meu direito inato de continuar existindo.
E a luta, a verdadeira e selvagem luta pela vida, está apenas começando.
Os zumbis estão vindo. Escalam o corredor com a determinação de alpinistas desejosos de reconhecimento. Se eu for reagir, se eu ainda quiser viver, esse é o momento de tentar fazer alguma coisa.
Procuro ganhar tempo. Olho ao redor e vejo pesadas malas espalhadas. Imediatamente atiro-as pelo corredor, fazendo-as deslizar ladeira abaixo. Surpreendo e desestabilizo meus inimigos. Malas e mortos descem rolando, distanciando-se de mim. Rio como um lunático ao ver meus estúpidos predadores sendo lançados corredor abaixo pelas bagagens, como pinos de boliche tombados por um arremesso certeiro.
Funciona por enquanto, mas necessito de um plano B.
Olho para baixo e percebo que os mortos são genuinamente brasileiros: eles não desistem nunca! Já recomeçaram a escalada. Se eu derrubá-los cem vezes, eles ainda virão atrás de mim. Conseguirei, no máximo, atrasá-los. Tenho mesmo é que dar o fora daqui o quanto antes.
Fito a janela ao meu lado, onde se situa a saída de emergência mais próxima. Os vidros estão parcialmente quebrados. Meu corpo passa por ali, mas, se eu tentar atravessar o vidro despedaçado, vou chegar do outro lado parecendo um frango desfiado. Qual a vantagem de escapar dos zumbis, se eu me cortar todo nos cacos da janela durante a fuga? Posso perder muito sangue e acabar desmaiando bem antes de obter ajuda. Posso contrair tétano. Quem sabe o quanto ainda terei de andar agora, até poder contar com algum tipo de assistência ou recursos médicos, se tais ainda existirem?
Além do mais, aquelas coisas podem farejar minha possível hemorragia, pois já notei que seu olfato é tão aguçado quanto sua audição.
Não. Para sair do ônibus, devo ativar a saída de emergência.
Para isso, seguro e puxo a alavanca. Ela não se move um milímetro sequer. Está emperrada. Não posso permitir que esse ônibus se torne minha tumba. Forço a alavanca de emergência uma, duas vezes. Nenhum resultado. Acabou meu tempo. Os mortos estão perto novamente, preciso cuidar deles antes de medir forças com a janela emperrada outra vez.
Todo aquele esforço para segurar a criança simplesmente me exauriu. As circunstâncias mostraram depois que meu esforço foi em vão, porque, no fim, serviu apenas para drenar minhas energias, já que o menino caiu de um modo ou de outro. Estou fraco justamente quando mais precisava ser forte.
Olho à minha volta com urgência. A morte se acha tão próxima que quase posso sentir seu hálito fétido. Veja então uma bolsa alheia, feita de lona, enganchada na base dos assentos mais próximos. Felizmente ela está ao meu alcance. Estico-me e pego a mala com avidez. Faço o zíper correr e ansiosamente me ponto a vasculhar seu interior.
Vou descartando sumariamente os itens que encontro à medida que constato a sua inutilidade em relação ao meu momento extremo de sobrevivência: loção pós-barba, uma revista, um DVD de uma das milhares de duplas sertanejas que fazem sucesso na atualidade, um saco de fumo, uma agenda, uma muda de roupas, incluindo um par de cuecas (eca!). A bolsa está ficando vazia. Meu desespero é crescente.
Os monstros vão me alcançar a qualquer momento. Eu que nem sou muito de rezar, faço uma prece silenciosa de última hora. Falta ainda um objeto para eu verificar. É minha última chance. Esperem... O que é aquilo?
Aperto os olhos. Parece uma bainha de couro. Meu coração descompassado vibra, atravessado por um feixe de esperança. Sim, é uma bainha! Seguro o cabo ornado, feito de chifre bovino e dotado de uma bela empunhadura, então o puxo, para ver surgir diante de meus olhos a grande lâmina de uma majestosa faca de pescador. A folha de aço trabalhado tem o gume impressionante, e nas costas do mesmo existe uma parte dentada, ligeiramente serrilhada. Muito mais do que uma arma, eu tenho uma legítima relíquia em mãos. É o tipo de coisa que dura muito. Examino a lâmina de perto, porque há algo inscrito nela: MADE IN USA.
Obrigado, meu Deus!
Empunho firmemente a faca com a mão direita e giro o corpo bem a tempo. Reúno todas as forças restantes. A cabeça do primeiro zumbi já emerge na semi-escuridão, bem junto ao meu tênis. Naquela cabeça odienta oscila um boné verde escuro da John John. Me preparo para desferir o golpe, e a visão daquele boné faz meus olhos castanhos faiscarem.
Há uma coisa que me esqueci de contar a vocês.
No começo da viagem, tão logo subi no ônibus, procurei meu lugar. O bilhete da passagem dizia que o meu assento era o de número dez. Mas, adivinhem só?
Havia um otário no meu lugar. E no assento ao lado do otário, havia um amigo do otário, tão otário quanto o primeiro. E não digo que são eram otários somente porque ocupavam meu lugar. São otários por natureza mesmo. Aquele tipo de gente que se autodenomina orgulhosamente como “malas”: boné para trás, bermudas longas e largas, chinelos. Se acham os maiorais, pensam que podem tudo. Não trabalham e não tem perspectiva de futuro. São uma vergonha para a família e um peso para a sociedade. Consideram-se os tais, e gostam de intimidar as pessoas de bem. Não falo pelas roupas, porque acho que cada um tem direito de escolher seu próprio estilo. Falo é de seu comportamento mesmo.
O otário nº1, que vamos chamar de John John devido o boné, estava jogado no assento, as pernas erguidas e apoiadas no encosto de mão do banco de maneira displicente. Lastimável.
Ele perguntou se aquele era meu lugar. Assenti. Ele me olhou com cinismo e nem se mexeu. O otário nº2 soltou uma risadinha de hiena e disse para eu procurar outro banco, porque havia outros vagos. Mirei-os com raiva. Poderia ter criado um escarcéu se quisesse. Poderia ter pedido ao motorista para tirá-los de lá. Poderia ter batido o pé e insistido. Seria impagável ver o sorriso idiota desaparecendo da cara imbecil deles. Porém, algo misteriosamente me dissuadiu, dizendo para eu deixar isso para lá. E foi exatamente o que fiz.
Eu ia descer logo, não achei que valesse a pena criar confusão. Fechando a cara, procurei outro lugar e encontrei um mais ao fundo do lotação. E agora vejo que a dupla de otários tinha, mesmo sem saber, me feito um grande favor. Ocupando meu lugar, foram os primeiros a se ferrar. Morreram logo, fosse pelo acidente, fosse pela contaminação.
E agora, cá estamos. Tenho diante de mim a versão zumbi do John John. Repleto de deleite, entendo que é hora da desforra.
— Quer um pedaço de carne, idiota? — rosno desafiadoramente — Vou te dar o que merece!
Já joguei Resident Evil e assisti The Walking Dead o suficiente para saber que minha melhor aposta, se quero de fato parar um morto-vivo, é neutralizando seu cérebro. Por isso, inspiro fundo e golpeio o John John brutalmente na têmpora. A faca atravessa a carne e se choca desagradavelmente contra o crânio. O sangue espirra. O otário nº1 pára subitamente de se agitar freneticamente e volta a ser apenas um cadáver de expressão bestificada. Mesmo assim, o esfaqueio de novo na cabeça. A força dos golpes é tanta, que lhe arranca o boné da cabeça.
Digam o que quiserem, mas eu tive minha revanche. Sou assolado por um sentimento mórbido de satisfação. Experimento a euforia do estudante que vê seu nome na lista de aprovados do vestibular, e o êxtase do jogador que marca o gol decisivo ao cobrar o pênalti em final de campeonato.
Vejo a lâmina escura de sangue. Chuto a boca do monstro com a sola do tênis, e ele desaparece rolando pelo corredor. Minha sorte é que, apesar de magrelão, o John John é bastante alto, e o peso de seu corpo morto arrasta consigo seus companheiros, interrompendo sua escalada e jogando todos lá embaixo.
Agora é a minha deixa!
Guardo a faca na bainha, e a bainha na cintura.
Seguro a alavanca com as duas mãos e apoio o corpo com os pés na parede. Aplico toda a minha força. Meu coração parece querer sair pela boca. Os pulmões ardem. Meus músculos se distendem sofridamente. Meu corpo reclama de dor e cansaço, está à beira da exaustão. O suor encharca minha testa, meu rosto e minhas mãos, e empapa minha camiseta na altura das axilas. A posição incomodamente vertical dificulta minha tarefa ao extremo.
Ouço os mortos rastejando novamente corredor acima.
Por um momento angustiante chego a acreditar que não vou conseguir. Minha sina aparentemente é morrer tentando.
Finalmente a janela cede. Com um rangido enferrujado de protesto, vencida, a alavanca se move e a janela se desencaixa. Uso os dois pés para empurrá-la para fora, liberando definitivamente a saída. Reprimo a custo um grande berro de vitória.
Tenho que sair. Não posso perder mais tempo.
Os grunhidos dos zumbis estão soando cada vez mais alto. Acho que já distingo vagamente seus vultos na semi-escuridão.
Quando estou prestes a sair, diviso a cara feia e cadavérica do otário nº2. Ele é quem lidera a fila dos meus perseguidores. Hesito um instante. Se o zumbi fosse qualquer outro passageiro do ônibus, eu teria partido no mesmo instante. No entanto, como é aquele babaca, resolvo permanecer mais alguns momentos.
Meu tênis é próprio para alpinistas; tem cano médio e grosso solado com pequeninas travas de borracha. Pesado. Dura muito. Paguei os olhos da cara por ele e não me arrependo. Sei que valeu cada centavo. Agora, mais do que nunca estou feliz em tê-lo adquirido.
Quando escoiceio violentamente a cabeça do otário nº2, ele estremece como se tivesse levado uma tijolada bem no meio da cara. Desaparece na mesma hora, sempre caindo e levando consigo o resto da horda durante sua desastrada descida.
Sorrio, satisfeito. Agora sim, posso ir.
Passo pelo vão da janela e respiro fundo o ar fresco da noite. Grilos cantam na escuridão e o cerrado, vegetação predominante em minha região, se estende agressivamente ao meu redor, amortalhado pelas trevas e ocultando perigos indizíveis, como serpentes venenosíssimas.
Preciso seguir com muito cuidado. O terreno é íngreme, e por isso avanço cautelosamente, quase me arrastando, bendizendo mais uma vez meu tênis o qual, além de não escorregar, me ajuda sobremaneira na escalada.
Enquanto gradativamente meus pés encontram pontos de apoio, minhas mãos procuram pedras e raízes, nas quais se agarram para me sustentar em minha árdua subida. Deslocadas por meu peso enquanto escalo, constantemente porções de cascalho rolam pela ladeira e são imediatamente engolidas pela noite escura lembrando que, se eu não for cuidadoso, terei um fim semelhante.
Entretanto, não serei tão tolo assim. Já tive meu batismo de fogo hoje.
Não lutei tanto para acabar morto desse jeito, quebrando o pescoço em uma queda idiota.
Pouco a pouco eu avanço. Passo a passo. Centímetro por centímetro.
Já posso ver a estrada. Sigo colado ao chão como uma cobra.
Agora nada vai me deter.


Continua...



Danilo Alex da Silva