segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Vingança dos Lobos




Vai se arrepender amargamente por isso, amigão. – sentenciou Estevão com um sorriso estranho.
Cercado por seus inimigos, o motociclista não demonstrava o menor medo diante da morte iminente. A lua cheia banhava com sua luz prateada a cena do crime que estava prestes a acontecer.
A figura obesa e repleta de adereços do presidente do Moto Clube rival lhe apontava uma devastadora escopeta calibre doze de cano duplo serrado, coisa de filme de faroeste. Bigorna – esse era o apelido pelo qual os colegas motociclistas o tratavam – fez um muxoxo de desdém antes de falar:
- Duvido muito, seu verme. Só me arrependo daquilo que não faço.
E apertou o gatilho.
Depois que o tiro estraçalhou o tórax de Estevão, Bigorna se aproximou da motocicleta do morto: uma lustrosa Shadow 750, preta como a noite que os cercava, e em cujos detalhes cromados o luar era refletido com magnitude.
- Como dizem: ao vencedor, os espólios. – grunhiu com sarcasmo.
Seus amigos riram enquanto ele dava partida no motor possante, que roncou, poderoso.
Bigorna era presidente do Moto Clube Fênix, que cultivava uma rixa eterna com o pessoal do Moto Clube Lobos, do qual o falecido Estevão era membro. Não raro as contendas entre ambos os grupos terminavam em baixas para ambos os lados.
Montando suas potentes motos estilo Custom, os Fênix seguiram seu presidente rodovia adentro. Rumavam para o Ozônio, um movimentado bar à beira da estrada, frequentado especialmente por motociclistas. Ali iriam se embebedar para comemorar a morte de mais um adversário.
Entretanto, não chegaram a rodar sequer um par de quilômetros.
Logo à frente havia trinta motocicletas customizadas: Shadows. Drag Stars. Boulevards. Harleys. Mirages. Vulcans.
 Seus tanques negros e robustos, caprichosamente encerados, rebrilhando ao luar. Todas as motos imponentemente estacionadas, atravessadas na pista, barrando o caminho. Os Lobos estavam por toda parte. Cabelos compridos. Barbas por fazer. Piercings. Brincos. Tatuagens. Coletes. Roupas de couro repletas de correntes e medalhas. Grossas botas, apropriadas para pilotagem.
Silenciosos e imóveis, fitando os adversários com fúria contida. A figura alta e musculosa de Fenrir, o presidente dos Lobos, se destacava à frente do bando. Era mais que um presidente de Moto Clube: era o líder de uma alcateia.
- Dá pra resolver isso de um jeito sensato. – negociou Bigorna – Podem pegar a Shadow do seu amigo.
Fenrir meneou a cabeça antes de dizer com sua voz poderosa e rouca:
- A devolução da moto é pouco. Há um preço a ser pago.
- E o que é que vocês querem?
- Carne fresca. – replicou Fenrir.
Os membros do Fênix se entreolharam, espantados.
Entre os Lobos, uma figura sombriamente masculina se distinguiu.
Não podia ser!
Bigorna gemeu.
Estevão estava de pé, vivo. A jaqueta ainda ensanguentada na altura do peito, esfacelado pelo tiro que deveria ter sido fatal.
Lançando ao transtornado Bigorna um olhar selvagem, bradou:
- Eu avisei que você iria se arrepender.
E arremeteu velozmente contra o inimigo paralisado de pavor.
No meio do caminho, converteu-se em uma grande e medonha criatura, um misto de homem e lobo: um ser de olhos amarelos, corpo musculoso recoberto de pelos, unhas longas e afiadas em forma de garras, dentes enormes e agudos, uma mandíbula capaz de despedaçar ao meio uma chapa de aço. Um espesso fio de saliva prateada a escorrer de sua bocarra colossal. Estevão já não corria: agora trotava como bicho que se tornara, ganhando velocidade em direção ao adversário.
O grito de terror que Bigorna soltou ficou estrangulado na garganta dilacerada.
Metamorfoseando-se também, os companheiros de Estevão atacaram os demais membros do Moto Clube Fênix, sem dar-lhes qualquer chance de fuga.
Depois do massacre, tendo se saciado com a carne e o sangue de seus inimigos, os Lobos retomaram sua aparência humana. Subiram em suas motos, partindo acelerando dentro da noite, correndo com a lua cheia.


Danilo Alex

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Amor Perdido






A mão do sacerdote tremia ao empunhar a marreta que atingiria a estaca apoiada contra o peito da morta, enterrando-a fundo no coração inativo.
O cadáver era o de uma moça muito bela, de feições plácidas, que parecia estar apenas dormindo em seu esquife, com ambas as mãos delicadas cruzadas sobre o peito.
Era morena clara, tinha rosto oval, cabelos longos, castanhos e anelados, sobrancelhas grossas e lábios carnudos. Estranhamente, a palidez da morte contrastava com seus traços harmoniosos e infantis, proporcionando-lhe um ar quase angelical.
Uma onda de emoções conflitantes assombrava o jovem padre, arrastando-o rumo ao desespero crescente. O dever sagrado o empurrava em direção a uma das decisões mais difíceis de sua vida.
Checara tudo antes: percebeu que os caninos estavam mais agudos e protuberantes. Não havia rigor mortis ou qualquer sinal de putrefação. A jovem estava mais fresca e exuberante do que nunca, vicejante como a relva depois da chuva. Não havia dúvidas de que a garota se alimentara de algum inocente naquela noite. Aquilo precisava ter um fim.
Se fosse uma desconhecida ou uma anônima, talvez sua tarefa se mostrasse menos árdua. Mas a jovem no caixão ele conhecia muito bem, desde os tempos de infância.
Aos seus olhos de padre, ela era agora apenas uma vampira. Uma Não Morta. Uma perfeita máquina de matar, criada pelo Diabo à sua semelhança para zombar de Deus. Mas para Mariano, o homem que vestia a batina, aquela era sua doce e adorada Eulália, a namorada da adolescência, seu primeiro amor. Um amor que ele precisou abandonar para ingressar no seminário tempos antes.
Uma passagem do livro bíblico de Apocalipse encontrada no capítulo 2 reverberava em sua mente, crivando seu coração com a dor de pregos enferrujados: “E sofreste, e tens paciência; e trabalhaste pelo meu nome, e não te cansaste. Tenho, porém, contra ti, que deixaste teu primeiro amor”.
Lembrou-se de Eulália no primeiro banco da igreja, perto do altar, inconsolável e aos prantos, participando da primeira missa que ele celebrou assim que foi ordenado sacerdote. O bispo o designara para ser vigário na paróquia onde ele crescera e amadurecera na fé, e onde também conhecera Eulália quando eram ainda crianças.
O jovem padre Mariano tivera de renunciar ao amor em nome de um bem maior: sua vocação. Precisou aprender a sufocar um sentimento que, apesar de tão bonito, tornara-se agora proibido.
Entretanto, preocupou-se sobremaneira na noite em que ela, voltando da faculdade de veterinária, fora atacada por um maluco. Felizmente nada de muito grave ocorrera, salvo que o agressor a mordera no pescoço. Quando o plantonista a medicou, determinando que a jovem permanecesse em observação até o dia seguinte, padre Mariano permaneceu durante todo o tempo ao seu lado, zelando  pela amada em seu leito.
Depois disso, Eulália não foi mais a mesma. Dormia mal, aparecia com olheiras, reclamava constantemente de cansaço e fraqueza extremos. Procurou Mariano na paróquia diversas vezes, alegando ter pesadelos recorrentes e pavorosos, onde um homem de terríveis olhos abrasadores a visitava em seu quarto quase todas as noites. Cada vez que tinha esse sonho, ela amanhecia pior. Padre Mariano rezava com ela e por ela, mas achava que tudo aquilo fosse sobrecarga de tensão emocional pelo ocorrido. Era um bom padre, mas, na época, faltava-lhe experiência sobre estes assuntos obscuros.
Eulália piorou e os médicos nunca descobriram a causa. Acreditavam ser um quadro grave e inédito de anemia, o qual não puderam reverter. E assim, ela partiu.
Baqueado pela morte da jovem, padre Mariano compareceu ao velório para ajudar o pároco, padre Ezequiel, que ia ministrar as exéquias, ou seja, os ritos e as orações próprias para recomendar o corpo a Deus. Reverendo Ezequiel era um velho e sábio sacerdote, o qual já vira muita coisa nesse mundo. Coisas de deixar qualquer um de cabelo em pé. Notara a marca de mordida no pescoço da menina e desconfiara a causa da morte. Esclareceu tudo a padre Mariano, mostrou-lhe livros antigos, explicou-lhe todo o procedimento. Afirmou que Mariano era quem devia fazer, porque ele amava a moça.
Agora ele estava ali pouco antes do amanhecer. Invadira o cemitério e arrombara o mausoléu. Fizera as orações apropriadas. Tentava criar coragem. Precisava fazer aquilo, ou Eulália não teria descanso. Para que ela se salvasse, ele teria de cruzar o Inferno. Lágrimas escorriam por seu rosto jovem e barbeado. Inclinando-se, beijou de leve os lábios frios da morta, balbuciando:
- Eu te amo, Eulália.
E com a marreta golpeou a estaca vigorosamente, perfurando o coração da vampira.
Dois gritos assustadores ecoaram na tumba: o da alma que era liberta da maldição, e o outro, da alma que ficava nesse mundo, dilacerada por todo o sempre.

(Danilo Alex da Silva)