A mão do sacerdote
tremia ao empunhar a marreta que atingiria a estaca apoiada contra o peito da
morta, enterrando-a fundo no coração inativo.
O cadáver era o de uma
moça muito bela, de feições plácidas, que parecia estar apenas dormindo em seu
esquife, com ambas as mãos delicadas cruzadas sobre o peito.
Era morena clara, tinha
rosto oval, cabelos longos, castanhos e anelados, sobrancelhas grossas e lábios
carnudos. Estranhamente, a palidez da morte contrastava com seus traços
harmoniosos e infantis, proporcionando-lhe um ar quase angelical.
Uma onda de emoções
conflitantes assombrava o jovem padre, arrastando-o rumo ao desespero
crescente. O dever sagrado o empurrava em direção a uma das decisões mais
difíceis de sua vida.
Checara tudo antes:
percebeu que os caninos estavam mais agudos e protuberantes. Não havia rigor mortis ou qualquer sinal de
putrefação. A jovem estava mais fresca e exuberante do que nunca, vicejante
como a relva depois da chuva. Não havia dúvidas de que a garota se alimentara
de algum inocente naquela noite. Aquilo precisava ter um fim.
Se fosse uma
desconhecida ou uma anônima, talvez sua tarefa se mostrasse menos árdua. Mas a
jovem no caixão ele conhecia muito bem, desde os tempos de infância.
Aos seus olhos de
padre, ela era agora apenas uma vampira. Uma Não Morta. Uma perfeita máquina de
matar, criada pelo Diabo à sua semelhança para zombar de Deus. Mas para
Mariano, o homem que vestia a batina, aquela era sua doce e adorada Eulália, a
namorada da adolescência, seu primeiro amor. Um amor que ele precisou abandonar
para ingressar no seminário tempos antes.
Uma passagem do livro
bíblico de Apocalipse encontrada no capítulo 2 reverberava em sua mente,
crivando seu coração com a dor de pregos enferrujados: “E sofreste, e tens paciência; e trabalhaste pelo meu nome, e não te
cansaste. Tenho, porém, contra ti, que deixaste teu primeiro amor”.
Lembrou-se de Eulália
no primeiro banco da igreja, perto do altar, inconsolável e aos prantos,
participando da primeira missa que ele celebrou assim que foi ordenado
sacerdote. O bispo o designara para ser vigário na paróquia onde ele crescera e
amadurecera na fé, e onde também conhecera Eulália quando eram ainda crianças.
O jovem padre Mariano
tivera de renunciar ao amor em nome de um bem maior: sua vocação. Precisou
aprender a sufocar um sentimento que, apesar de tão bonito, tornara-se agora
proibido.
Entretanto,
preocupou-se sobremaneira na noite em que ela, voltando da faculdade de
veterinária, fora atacada por um maluco. Felizmente nada de muito grave
ocorrera, salvo que o agressor a mordera no pescoço. Quando o plantonista a
medicou, determinando que a jovem permanecesse em observação até o dia
seguinte, padre Mariano permaneceu durante todo o tempo ao seu lado, zelando pela amada em seu leito.
Depois disso, Eulália
não foi mais a mesma. Dormia mal, aparecia com olheiras, reclamava
constantemente de cansaço e fraqueza extremos. Procurou Mariano na paróquia
diversas vezes, alegando ter pesadelos recorrentes e pavorosos, onde um homem
de terríveis olhos abrasadores a visitava em seu quarto quase todas as noites.
Cada vez que tinha esse sonho, ela amanhecia pior. Padre Mariano rezava com ela
e por ela, mas achava que tudo aquilo fosse sobrecarga de tensão emocional pelo
ocorrido. Era um bom padre, mas, na época, faltava-lhe experiência sobre estes
assuntos obscuros.
Eulália piorou e os
médicos nunca descobriram a causa. Acreditavam ser um quadro grave e inédito de
anemia, o qual não puderam reverter. E assim, ela partiu.
Baqueado pela morte da
jovem, padre Mariano compareceu ao velório para ajudar o pároco, padre Ezequiel,
que ia ministrar as exéquias, ou seja, os ritos e as orações próprias para
recomendar o corpo a Deus. Reverendo Ezequiel era um velho e sábio sacerdote, o
qual já vira muita coisa nesse mundo. Coisas de deixar qualquer um de cabelo em
pé. Notara a marca de mordida no pescoço da menina e desconfiara a causa da
morte. Esclareceu tudo a padre Mariano, mostrou-lhe livros antigos,
explicou-lhe todo o procedimento. Afirmou que Mariano era quem devia fazer,
porque ele amava a moça.
Agora ele estava ali
pouco antes do amanhecer. Invadira o cemitério e arrombara o mausoléu. Fizera
as orações apropriadas. Tentava criar coragem. Precisava fazer aquilo, ou
Eulália não teria descanso. Para que ela se salvasse, ele teria de cruzar o
Inferno. Lágrimas escorriam por seu rosto jovem e barbeado. Inclinando-se,
beijou de leve os lábios frios da morta, balbuciando:
- Eu te amo, Eulália.
E com a marreta golpeou
a estaca vigorosamente, perfurando o coração da vampira.
Dois gritos
assustadores ecoaram na tumba: o da alma que era liberta da maldição, e o
outro, da alma que ficava nesse mundo, dilacerada por todo o sempre.
(Danilo Alex da Silva)
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