terça-feira, 23 de junho de 2015

O Tormento dos Anjos




“Milhares de criaturas espirituais caminham invisíveis sobre a Terra, tanto quando dormimos, como quando estamos acordados.”
(Milton)


A primeira coisa que Ehlon viu quando alcançou o terraço do edifício, foi um jovem de cabelos anelados, relativamente longos, sentado à beira do precipício, balançando desanimadamente as pernas sobre o vácuo. O garoto deveria aparentar por volta de dezessete anos e seu olhar era infinitamente triste. Sob o céu tingido de violeta pelo crepúsculo, ele olhava melancolicamente para baixo, observando o trânsito dos mortais, cinquenta andares abaixo dali. Estavam tão alto que, vistos de cima, os carros pareciam de brinquedo e as pessoas assemelhavam-se a formigas. Apesar da altura, podia-se perceber uma aglomeração de curiosos na calçada. 
Ao lado do rapaz deprimido havia uma criatura que, a despeito de sua semelhança com um humano, tinha olhos rubros como sangue, bem como emanava uma aura ardente e malévola. Dirigindo-se então a essa criatura, Ehlon foi taxativo:
- Já conseguiu o que queria, Abrahor. Agora dê o fora daqui. Pare de perturbar Ayael. Ele merece um pouco de paz nesse momento. 
Abrahor olhou com ódio para Ehlon antes de argumentar com voz cavernosa:
- É meu direito ficar e me vangloriar da vitória. 
Lançando um olhar autoritário a seu interlocutor, Ehlon pousou a mão sobre o cabo da espada brilhante e estupenda que trazia na cintura:
- Eu não darei um segundo aviso. Vá embora enquanto pode. 
Emitindo um grunhido frustrado de ira, mesmo contrariada a terrível entidade obedeceu, desvanecendo-se no ar imediatamente. Em seu lugar restou apenas o cheiro desagradável de enxofre.
Percebendo que estavam sozinhos, Ehlon aproximou-se do moço triste. Sem dizer nada, sentou-se ao seu lado na beira do terraço, encarando também o abismo. Permaneceram um instante assim, absortos, observando o tráfego humano lá embaixo. Viram as luzes vermelhas piscando alternadamente e ouviram a sirene de uma ambulância que se aproximava velozmente do local da aglomeração, dispersando parcialmente as pessoas ante sua passagem. 
O garoto triste, que se chamava Ayael, consciente da presença do amigo, comentou em um sussurro:
- Os paramédicos já não podem fazer mais nada. Ele obviamente não sobreviveu à queda. Abrahor veio aqui zombar de mim, dizendo que havia acabado de levar a alma dele. 
- Sinto muito, irmão. – balbuciou Ehlon, pesaroso. 
Mais alguns segundos de silêncio constrangedor.
Finalmente Ehlon explicou de modo solene:
- Fui mandado para acompanhá-lo de volta. 
Ayael se voltou para ele, e então Ehlon notou pela primeira vez que os olhos do outro anjo, de cor púrpura como o crepúsculo, derramavam sofridas e cristalinas lágrimas de luto. 
- Não sei se quero voltar. 
- Você precisa, irmão. 
- Ehlon, não posso encarar o Criador depois disso. Eu falhei. 
- Ele não te culpa pelo acontecido, e sofre com a perda dessa alma tanto quanto
 você. 
- Gostaria de saber o sentido disso tudo. Ele poderia tornar as coisas diferentes se quisesse... – falou Ayael, sentido, enxugando as lágrimas que não paravam de correr.
- São as regras, Ayael. Você sabe. Livre-arbítrio. 
Ehlon era solidário à dor do amigo. Sabia que Ayael, até então guardião de um dos filhos de Deus, carregaria para sempre o fardo de não encontrar seu protegido no Paraíso. Imaginava que, para um anjo, não haveria sofrimento ou tristeza maior. 
Por isso, apertando encorajadoramente o ombro do companheiro, Ehlon completou:
- Você foi um bom mensageiro. Fez tudo o que estava ao seu alcance. Sempre o inspirou com a vontade divina, o protegeu quando ele solicitou ajuda, procurou incansavelmente mostrar-lhe o caminho da luz. Mas a decisão final é deles, meu irmão. Enquanto a humanidade não aprender a usar com sabedoria seu direito de escolha, estará à deriva no caos, prisioneira das consequências daquilo que decidir. Fazemos nossa parte. Eles têm que aprender a fazer a deles. 
Ayael assentiu antes de dizer:
- Até o último instante eu orei para que ele se arrependesse. 
- Eu também. – confessou Ehlon – Não devemos, porém, perder nossa fé nos homens. Se Deus ainda acredita neles, nós também devemos acreditar. 
Passando os braços ao redor do ombro de Ayael de maneira confortadora, delicadamente disse:
- Temos de ir agora. Nosso Pai nos aguarda. 
Ayael concordou. Assim, abraçados fraternamente, os dois anjos desfraldaram suas belas asas e alçaram voo majestosamente, retornando para seu Lar Celestial. 
Cinquenta andares abaixo, a multidão se dispersou quando a ambulância partiu levando consigo o corpo de um humano que, para o bem ou para o mal, fizera uso de seu maior direito inato: o Livre-arbítrio.



(Danilo Alex da Silva)

sábado, 6 de junho de 2015

Chuva no Deserto - 2ª e Última parte



"Eu sou um castigo de Deus. E se você não cometeu grandes pecados, Deus não teria enviado um castigo como eu."

(Gengis Khan)




Sob a meia-luz do ambiente, o panorama a se descortinar diante de seus olhos era tétrico: cadáveres por toda parte. Fregueses, coristas, o pianista...

Ninguém escapara da matança. Os fregueses estavam espalhados pelo lugar, a maioria estendida no assoalho, mas alguns tinham morrido sentados e, permanecendo às mesas, davam a impressão de ainda esperarem que o barman os servisse, ou contassem com a abordagem de alguma corista mais ousada.

O pianista fora trucidado enquanto estava sentado ante seu instrumento, de modo que se achava debruçado sobre as teclas manchadas com seu sangue, como se dormisse um sono profundo. Havia coristas mortas perto do balcão, sobre as mesas, nos degraus da escada, algumas atravessadas sobre o corrimão de madeira. Uma delas, inclusive, estava presa ao lustre que pendia do teto, imóvel, e seu sangue gotejava sinistramente no meio do salão.

E no meio do caos o homem divisou seu alvo.

A causadora de tudo se encontrava displicentemente sentada sobre o balcão polido. Estava inclinada sobre o pescoço de um homem que agonizava com a cabeça em seu colo. Parecia uma mulher apaixonada beijando seu amante. Contudo, ouvindo a chegada do viajante, ela ergueu o rosto, esboçando um sorriso gélido: sua boca, dentes e queixo estavam lambuzados pelo sangue da vítima, a qual era nada menos que o barman do saloon.

Exatamente como Carson lhe adiantara, a garota aparentava por volta de vinte anos. Era loura, cabelos longos e anelados, que usava soltos, descendo pelos ombros magros. Possuía maliciosos e grandes olhos, negros como o azeviche. O rosto era harmonioso, delicado e atraente, a despeito dos retráteis caninos longos e afiados.

O sorriso era maldoso, cínico. A pele perfeitamente marmórea possuía a alvura da cera, própria de quem nunca vê o sol. Media cerca de 1, 76 m, e seu corpo era magro, conquanto uma magreza esbelta, elegante, nobre.

Trajava uma calça justa de montaria, uma jaqueta preta feita de couro de bezerro, e calçava botas texanas de cano longo, repleta de ornamentos. Parecia a versão sinistra de uma cowgirl.

A sombria jovem, por sua vez, também estudou atentamente o recém-chegado: um homem alto e forte, rosto anguloso e viril, tez morena de sol, dono de enigmáticos olhos cinza-esverdeados que irradiavam uma melancolia profunda e insondável. O rosto marcante estava sombreado por uma espessa barba por fazer. Tinha os cabelos castanho-escuros lisos e relativamente compridos. O homem apresentava ser ainda jovem: apesar de seu aspecto descuidado que o fazia aparentar mais idade, ele devia ter acabado de entrar na casa dos trinta anos.

Trajava calças de brim escuro, um sobretudo vermelho-sangue, botas marrons de cano alto e esporas vermelhas. Trazia na cintura um par de Colts negros de grosso calibre. Um lenço preto envolvia seu pescoço taurino, e suas mãos estavam revestidas por luvas de couro que serviam tanto para montar quanto para atirar. A cabeça estava coberta por um chapéu preto, amarfanhado, de abas largas meio dobradas e copa alta.

O homem recendia a enxofre, e sua postura não era nada amigável.

A garota sorriu com desdém:

- Ora, ora, ora! Quem diria? Um Renegado por estas bandas! Fazia um bom tempo que eu não me deparava com algum de vocês. Boa noite, forasteiro! – o inglês dela não chegava a ser sofrível, e não era exatamente perfeito, mas se fazia compreender, mesmo com a fala carregada pelo inconfundível sotaque do Leste Europeu.

- Nenhuma noite pode ser boa enquanto você ainda pisar neste mundo. – rebateu o rapaz duramente – Eu não sabia que vocês, vampiros, existiam. Achava que não passassem de lendas. Quando eu terminar o que vim fazer aqui, lendas serão somente o que restará de você.

A loura riu sarcasticamente:

- Que cowboy pouco cavalheiro! Aposto que você não é lá muito popular com as mulheres.

- Você não é uma mulher. – retrucou ele, rangendo os dentes – É uma morta-viva.

- E o que o faz pensar que é diferente de mim? Um homem em pedaços, dotado de poderes amaldiçoados que adquiriu ao vender sua própria alma ao Diabo...

- Cale-se! – ordenou o Renegado de dedo em riste – Você não sabe nada sobre mim. Não me conhece.

- Já conheço a ponto de perceber sua ingenuidade em acreditar ser capaz de me aniquilar. Eu sou Lenora Von Born, meu rapaz.

Inesperadamente o homem soltou uma risada plena de escárnio:

- Esse nome deveria significar alguma coisa? Porque, para ser franco, eu nunca ouvi falar. Para mim, você não passa de um alvo, e meus alvos não têm nomes nem rostos.

A vampira sorria com superioridade:

- Uau! Você me parece mesmo um sujeito durão. Diga uma coisa, xerife: posso ao menos saber o nome daquele que veio dar fim à minha existência?

- Se faz realmente tanta questão, me chamo Sean Ridell. Dentro em pouco reduzirei você a cinzas, e saber quem foi seu carrasco não terá te servido de nada.

- Atiraria então em alguém desarmado? – ela quis saber, fazendo-se de vítima.

- Você não está desarmada. Se metade do que dizem sobre vocês for verdade, as trevas são seu arsenal. É noite lá fora, você está em vantagem. Em todo caso, se preferir, posso te oferecer um de meus revólveres.

- Detesto armas de fogo. – respondeu Lenora com uma careta de desaprovação.

- Como quiser. Está pronta?

- Quer dizer que não podemos ser amigos?

- Exato. Quer dizer que vou matá-la, e vou matá-la agora.

O Renegado desviou-se uma fração de segundo da garrafa de uísque arremessada de modo velocíssimo e preciso contra seu rosto. Enquanto procurava entretê-lo conversando, traiçoeiramente a vampira, que estava sentada sobre o balcão, rapidamente apanhara a garrafa e a jogara com toda a força.

Ouvindo o estilhaçar de vidros contra a parede atrás de si, Sean Ridell se jogou ao chão com agilidade felina, rolando para escapar da segunda e da terceira garrafa, que já voavam em sua direção, tão rapidamente quanto a primeira, transformadas em perigosos projéteis pela força descomunal da vampira.

Após rolar duas vezes pelo velho assoalho forrado de cadáveres, o Renegado parou no centro do saloon: o joelho direito no solo, as mãos apontando a um só tempo o poderoso par de Colts Dragoon, os quais brotaram entre seus dedos como que num passe de mágica. Roçou os gatilhos num gesto quase desleixado, totalmente despreocupado.

Dois tiros certeiros cruzaram o espaço. Tudo ocorreu indizivelmente rápido.

O par de garrafas de tequila que Lenora empunhava pelos gargalos e que pretendia arremessar contra o pistoleiro simplesmente foi reduzido a uma chuva de cacos enquanto a vampira ainda as segurava. Rugindo de ira, ela viu-se banhada pela bebida âmbar e teve seu belo rosto parcialmente lacerado pelos estilhaços voadores das garrafas.

- Vou arrancar seus membros, sugar seu sangue, devorar seu coração, e depois roer seus ossos! – prometeu Lenora com uma voz gutural, demoníaca, bem diferente de seu timbre natural.

- Pode vir, cowgirl! – zombou o Renegado – Vamos ver se você é tão boa de sela como diz!

Urrando como fera, a pavorosa garota se moveu muito rápido. Abastecida pelo sangue que drenara dos habitantes ali de Gold Fortress, ela parecia imbatível no auge de seus poderes.

Sem que Sean pudesse esboçar reação, a garota praticamente materializou-se à sua frente, cravando brutalmente a sola da bota em seu flanco direito, um palmo abaixo da axila. Foi um chute arrepiante.

Colhido pelo impacto alucinante, o Renegado viu-se projetado de encontro ao outro lado do saloon, derrubando inúmeras mesas em sua queda. No momento em que foi golpeado, ambas as armas escorregaram de suas mãos. Se fosse um humano comum, teria sofrido morte instantânea.

Antes mesmo que se refizesse, Lenora já estava sobre si, pressionando-o contra o chão. Ele sentiu uma dor excruciante na altura do peito, e percebeu que a inimiga tentava arrancar-lhe o coração de dentro do tórax.  A criatura cumpriria seu intento em segundos, caso não fosse impedida.

Segurando o fino braço dela com a mão esquerda, Sean usou o punho direito para aplicar-lhe um violento soco no rosto. Lenora desorientou-se. Aproveitando-se disso, ele usou ambas as pernas com força, fazendo delas uma alavanca, a fim de catapultar para longe a adversária, fazendo-a voar em sentido contrário ao seu.

Ao passo que a estupefata vampira se chocava ruidosamente contra a parede, sem perda de tempo Sean Ridell se levantou tão habilmente como se tivesse molas nos pés. Uma dolorosa fisgada do lado direito fê-lo levar a mão ao local atingido. A respiração era difícil, o ar que entrava nos pulmões queimava como fogo.

- A cadela me quebrou pelo menos três costelas. – chiou o Renegado, furioso.

Lenora também já estava se levantando.

Raciocinando com rapidez, o homem viu seu par de Colts no assoalho. Então, ignorando a dor terrível, ele correu para mergulhar em direção aos revólveres. Posicionando o corpo, ele se virou e atirou do chão mesmo.

Lenora havia entendido o movimento inimigo e correu o mais rápido que podia, convertendo-se em um borrão. Quando começou a ouvir as primeiras detonações, ela uniu sua rapidez a habilidades acrobáticas, saltando quase dois metros do chão e girando o corpo em manobras evasivas que impressionariam um artista circense. Sua flexibilidade e destreza desafiavam a gravidade.

Entretanto, nem sua vertiginosa velocidade ou suas manobras acrobáticas puderam salvá-la da fúria de um Renegado. Ele também fez uso de seus poderes sobrenaturais, acurando sua pontaria e triplicando a velocidade ao disparar. A linha de fogo seguiu Lenora implacavelmente pelo saloon. Ela ainda desviou-se do terceiro e quarto tiros, mas o quinto encontrou seu corpo enquanto ela ainda girava no ar. A bala fervente atingiu-a no ombro esquerdo, varando e despedaçando a clavícula, saindo pelas costas em seguida.

Um jato impetuoso de sangue negro escapou do ferimento. Com um grito angustiado, a vampira caiu.

Colocando-se de pé, comprimindo as costelas fraturadas, o Renegado cambaleou rumo à presa ferida. Sangrando no assoalho, Lenora reuniu as forças que ainda lhe restavam para metamorfosear-se em névoa. Passou pelo pistoleiro e desceu a rua, reassumindo sua forma “humana” e tentando fugir.

Montando seu belo cavalo, de nome Pandemônio, o Renegado seguiu os rastros de sangue escurecido. Sabia que ela não iria longe.

No momento em que alcançavam os limites de Gold Fortress e começavam a levar sua perseguição para o deserto, as primeiras grandes gotas de chuva despencaram das nuvens pesadas. Apertando os olhos em meio ao temporal, do alto de seu cavalo, Sean Ridell avistou Lenora à sua esquerda, avançando com dificuldade, fugindo como um puma ferido.

Emparelhando com ela, o Renegado sacou o revólver e lhe explodiu a rótula da perna direita. O trovejar da arma confundiu-se com o trovejar das nuvens. A vampira tombou como um fardo, gritando, agarrando o ombro e o joelho baleados.

Sean apeou do cavalo, sabendo que sua caçada estava chegando ao fim. Engatilhou seu Colt místico, aproximando-se da adversária caída. As costelas ardiam como o próprio inferno. A chuva se tornava torrencial.

- Por que está fazendo isso? – gemeu Lenora ensanguentada, encolhendo-se em posição fetal no chão arenoso.

- Porque você chacinou duas cidades inteiras, ceifando vidas inocentes, incluindo a de um dos poucos amigos que me restavam: Carson Wayne, xerife de Horizon.

- Seu amigo era um homem corajoso. – a vampira tremia, batia queixo, talvez pela chuva intensa, talvez pela perda maciça de sangue. Ela não podia se curar tão facilmente, pois a arma de Sean era mística, tinha sido forjada no Inferno, bem como sua munição.

- Ele enfrentou a morte com mais dignidade do que você. – Sean era tão implacável com as palavras quanto com os Colts.

- Os matei para saciar minha sede. – justificou-se a loira – Tenho apenas duzentos anos, sou uma vampira jovem. Preciso de muito sangue.

- Explique-se ao Diabo. – rosnou ele.

- É dinheiro que você quer? Tenho bastante. Posso pagá-lo.

- Nunca foi pelo dinheiro. Estou aqui porque prometi a um amigo. E sou um homem de palavra.

A chuva os encharcava naquele instante crucial. Sean apontou o Colt Dragoon para o rosto crispado de dor da morta-viva.

Seu cérebro enviou a ordem assassina aos dedos, para que puxassem o gatilho.

O problema é que seus dedos não obedeceram.

Uma estranha paralisia se apoderou repentinamente de seu corpo. Conseguia mover somente a cabeça, como se seu tronco estivesse congelado.

Então, em um momento de clareza absoluta, a verdade estalou em sua mente.

- Arahmon! – esbravejou o Renegado – Que diabos pensa estar fazendo?

Dando uma risada sardônica, a criatura mencionada materializou-se ao seu lado.

Arahmon era o ardiloso demônio com o qual, em um instante extremo de aflição, Sean Ridell selara um pacto diabólico, vendendo sua alma em troca de poderes para vingar sua família massacrada por bandidos da pior espécie. A partir do dia em que fizeram seu sombrio acordo, a terrível entidade passou a seguir o Renegado em toda parte, como um guardião sinistro.

Geralmente ele aparecia assumindo a forma de um velho espantalho de lavoura: alto, muito magro, cabelos pretos compridos e anelados, sobretudo franjado e puído de couro, calças escuras, botas, chapéu e lenço no rosto.

Arahmon era um grande adepto de qualquer forma de destrutividade; por isso, Sean não entendia a razão de o demônio intervir justo naquela hora, quando o Renegado estava prestes a liquidar sua presa.

- Já se divertiu muito por hoje, Renegado. Como cavalheiro que sou, não posso permitir que machuque mais essa pobre e bela dama. – zombou o demônio com sua voz assustadoramente cavernosa.

- Seu maldito! – vociferou Sean, ainda sem conseguir se mexer.

O monstro soltou sua risada odiosa. Voltou-se então para a morta-viva no chão. Fazendo uma reverência sarcástica, falou:

- Oh, ilustríssima senhora Lenora Von Born, filha do venerável Marquês Radu Von Born, soberano da Transilvânia! Parecia estar em sérios apuros antes de minha chegada. Onde está sua altivez agora, vampira?

Embora não respondesse, ela o fuzilou com os olhos, expressando o que ainda lhe restava de dignidade.

A chuva e os ventos rugiam ao redor deles.

- Venha. – disse Arahmon, estendendo a mão para ela. – Erga-se. Recomponha-se. Hoje é seu dia de sorte. Ou sua noite de sorte. O que preferir.

O Renegado, indignado e furioso, observava a cena sem poder fazer nada.

Assim que Lenora se levantou, Arahmon estalou os dedos.

Na mesma hora um magnífico cavalo surgiu diante deles. Era jovem e forte, pelo cor de chocolate, patas vigorosas e peludas, garupa larga, olhos refulgentes como fogo. O diferencial eram as duas grandes asas de morcego que se projetavam de seu dorso musculoso. Uma espécie de Pégaso Infernal.

Ajudando Lenora a subir em sua excêntrica montaria, Arahmon disse:

- Seu cavalo voará com você rapidamente até o cais mais próximo. Haverá um navio apenas ancorado ali, que partirá ao amanhecer, com destino à sua terra. Entre nele e se esconda no porão. Logo o dia vai raiar.

- Obrigada por manter seu cão longe de mim. – falou Lenora, indicando Sean – Ele é perigoso fora da coleira.

- Sem problemas, boneca. Só não o deixe vê-la mais nesse continente. Caso ele te encontre novamente e queira terminar o serviço, talvez eu não esteja tão bem humorado para salvar seu lindo pescocinho uma segunda vez.

- Agradeço, Arahmon. Ninguém que ajude um Von Born fica sem retribuição.

- Assim espero, madame. Tenha certeza que, na hora oportuna, vou cobrar o favor. Vá agora.

O diabólico cavalo alado levantou voo, levando Lenora em segurança, livrando-a definitivamente do alcance de Sean Ridell. Ao ter certeza de que a vampira estava bem longe, Arahmon libertou o Renegado do feitiço que usara para imobilizá-lo temporariamente.

Embora seus olhos cintilassem sinistramente, o homem não disse nada. Devolveu seu par de revólveres aos respectivos coldres. Depois, assobiou para chamar seu belíssimo cavalo, no qual montou em seguida. Enquanto subia para o alto da sela, notou satisfeito que as costelas somente latejavam e a dor da fratura se tornara agora suportável. Seu misterioso poder de cura acelerada, obtido no pacto, devia estar agindo. Em breve não sentiria mais nada.

- É inútil tentar segui-la. – declarou Arahmon gravemente.

- Eu sei. – respondeu Sean de modo alarmantemente calmo – Não pretendo ir atrás dela.

A chuva diminuíra de intensidade, mas ainda se fazia presente, regando com suavidade o mortal Deserto de Sonora.

Arahmon sentiu-se apreensivo. Toda aquela tranquilidade não era normal. Preferia que seu protegido estivesse esbravejando. Calmaria era sinal de perigo iminente. Não gostava nada daquilo.

- Eu não podia permitir que você a destruísse. – começou Arahmon cautelosamente, quase em tom de desculpas – Lenora é uma boa garota, me será muito útil ainda no futuro. Talvez por ser uma vampira jovem, é também bastante ingênua: devido a uma tola profecia de sua linhagem, ela cruzou o oceano, certa de que encontraria na América seu prometido, um homem de coração puro e alma incorruptível, que ela converteria em vampiro, desposaria e levaria para a Transilvânia. Em tese, esse seria o escolhido para unificar e governar todos os vampiros. Que piada! Me admira muito haver ainda criaturas das trevas dispostas a acreditar nesses contos de fadas ridículos! Uma coisa, no entanto, eu posso garantir, Renegado: Lenora Von Born jamais massacrará alguém nesses arredores de novo.

- Mas graças a você, ela ainda está livre para matar outras pessoas.

O demônio abaixou a cabeça num gesto falso de arrependimento. Fechando o punho, bateu contra o próprio peito, dizendo:

- Mea culpa!  Reconheço. Espero que possa me perdoar algum dia por isso.

Do alto de sua montaria, dirigindo-lhe um olhar indecifrável, Sean Ridell apenas deu de ombros:

- Na verdade, não me importa. Talvez não seja aqui hoje, nem amanhã que Lenora pagará por seus crimes. Pode ser que se passem cem anos, ou até mais, e aconteça em outro lugar. Todavia, o que posso assegurar é que ela encontrará alguém de coração bondoso e forte o bastante para liquidá-la. Quando isso acontecer, o povo de Horizon e Gold Fortress e todas as pessoas por ela assassinadas serão vingadas. Todo o sangue inocente derramado por Lenora clama aos Céus por retribuição, e esse clamor se extinguirá no dia que a vampira for devolvida ao inferno, de onde não devia ter saído. Nesse dia o meu amigo xerife Carson Wayne descansará em paz, e eu finalmente terei cumprido a promessa que fiz. E não haverá nada que você poderá fazer para impedir, Arahmon. Porque a vida é como um ciclo – não se pode fugir das consequências. No momento certo, você, eu e Lenora teremos exatamente aquilo que merecemos.

O Renegado fez uma curta pausa antes de concluir:

- Sabe como eu sei disso tudo? Eu sei, porque a Justiça é como Chuva no Deserto: Pode até ser que demore, mas sempre vem.

Arahmon não teve resposta para aquilo. Tampouco Sean Ridell esperou por uma.

Com um toque suave nas rédeas, o Renegado girou seu belo corcel e afastou-se do sombrio interlocutor. Cavalgando, rumou para o horizonte, que já não era mais tão escuro, porque a aurora o tingia com suas primeiras cores.











Danilo Alex da Silva



28/05/15



14 h 48 min


terça-feira, 2 de junho de 2015

Chuva no Deserto







O forasteiro entrou na cidade desmontado, conduzindo sua magnífica montaria pelas rédeas. Um silêncio constante e pesado envolvia o lugar, tornando-o semelhante a um grande e desolado cemitério.

Portas e janelas cerradas. Ruas ermas. Silêncio absoluto. Quase nenhuma luminosidade à vista porque, muito embora a noite caísse rapidamente, não havia nenhum funcionário da prefeitura para acender as lamparinas a querosene, que constituíam o precário sistema de iluminação público da época.

Localizada no coração do Arizona, rodeada pelo Deserto de Sonora e encimada naquele instante pelo avermelhado céu crepuscular, a cidade de Gold Fortress parecia agora um local morto, uma cidade-fantasma, que não chegava a ser nem mesmo a sombra do que já fora.

Em seus idos dias de glória, Gold Fortress representara um marco durante a Corrida do Ouro, tendo acolhido em seus limites cerca de quatorze mil almas que, gananciosas, sonhavam com a possibilidade de encontrar ali um veio do precioso metal amarelo. Desse tempo não restava sequer o menor dos vestígios.

Avançando com firmeza pela larga rua principal, o recém-chegado era seguido de perto por seu gracioso cavalo. Levantando os olhos para o céu já enegrecido quase totalmente, o homem avistou no horizonte a aproximação de nuvens carregadas que pressagiavam temporal em breve.

Voltando os olhos impenetráveis para a terra, ele divisou no fim da rua o saloon decrépito, em cuja direção passou a caminhar, sempre puxando seu animal suavemente pelo bridão.

O saloon aparentemente era a única construção da cidade a irradiar alguma luz, ainda que parcamente. Ali havia claridade, embora não houvesse música. Este era um fator digno de estranheza, visto que a noite estava em seu princípio. Àquela hora, as ruas deveriam estar apinhadas de gente, assim como o pianista do saloon deveria estar atacando as teclas, extraindo delas uma melodia alegre e dançante, adequada ao momento. Todavia, a única sonoridade capaz de ameaçar o exasperante silêncio tumular era aquela proveniente do vento que, soprando do deserto, percorria as ruas de Gold Fortress uivando fantasmagoricamente, erguendo poeira da sarjeta.

Conforme o viajante caminhava, suas esporas escarlates tilintavam cerimoniosamente dentro da noite jovem e assombrada. O modo de andar do homem era ágil e vigoroso. Meio oculto pelas orlas do sobretudo, o par de Colts de pesado calibre que ele trazia, um de cada lado do cinturão, denunciava de imediato a natureza de seu trabalho: Era um pistoleiro. Um profissional da morte. Mais um homem talhado pela dureza do Oeste, levado pelas circunstâncias a obter seu ganha-pão do modo mais sombrio. Talvez ele tivesse aprendido a gostar de seu ofício. O mais provável é que não, conquanto esse detalhe não alterasse o fato de que ele desempenhava sua macabra tarefa com perfeição.

No entanto, dessa vez ele não estava em Gold Fortress pelo dinheiro. O que o impelira até ali era uma prioridade sua que estava muito além de qualquer riqueza material: Honra – uma virtude que não pode ser comprada com um punhado de dólares.

Dias antes, em um começo de noite semelhante àquele, o forasteiro estava entrando em Horizon, um povoado bem ao leste, erguido às margens do temporário Rio Buffalo e preservado do vento desértico pela face rochosa das Montanhas Gêmeas.

Em Horizon morava um amigo do viajante – um dos poucos que ele ainda possuía neste mundo, a bem da verdade, – o xerife Carson Wayne.

Regularmente o pistoleiro visitava a cidade, onde procurava o xerife Wayne para examinar os cartazes de “Procurado” que os federais deixavam e aceitar um trabalho, prontificando-se a caçar mais um criminoso de alta periculosidade que incomodava as pessoas de bem o qual, vivo ou morto, sempre trazia depois, atravessado na sela de seu cavalo.

Tão logo o pistoleiro recebia suas gordas recompensas, geralmente Carson e ele seguiam juntos para o saloon, a fim de tomar uma cerveja. O agente da lei era um homem reservado, de poucas palavras. O caçador de recompensas falava menos ainda. Então, os dois muitas vezes ficavam apenas sentados no bar, bebendo em silêncio ali, agradecidos pela companhia um do outro, enquanto seu olhar distante mostrava que estavam pensando cada qual em suas próprias misérias.

Naquela noite, porém, tinha sido diferente.

Conduzindo a trote seu belo animal de pelo sedoso e negro na ocasião, antes mesmo de entrar em Horizon o pistoleiro já percebeu o mau cheiro: a cidade mergulhada em silêncio fedia a sangue e morte.

Pressentindo o pior, o viajante esporeara sua montaria.

Tendo adentrado a povoação, deparou-se com uma cena de pesadelo: janelas quebradas, portas aspergidas com sangue já seco, dezenas de cadáveres em adiantado estado de decomposição forrando as ruas. Homens e mulheres. Crianças e idosos. O assassino, ou os assassinos, fossem quem fossem, não fizeram distinção entre suas vítimas.

Segurando as rédeas na mão direita, o homem sacou o revólver do lado esquerdo com a canhota, atirando nos corvos e coiotes para enxotá-los, pois a carnificina atraíra a eles e as moscas.

O homem lidava com sérias dúvidas a respeito da existência de sobreviventes, quando viu surgir mais adiante a anêmica luminosidade de um lampião em uma casa. A janela que irradiava a fraca claridade era a do escritório do xerife.

Lá chegando, encontrou os corpos eviscerados dos comissários, as estrelas douradas de latão ainda presas aos coletes ensanguentados. Sentado a um canto, respirando com dificuldade, estava Carson Wayne, gravemente ferido.  A esteira vermelha no chão indicava que, ao ouvir os tiros dados pelo forasteiro para rechaçar os animais e aves carniceiros, o xerife tinha se arrastado pela sala, a fim de alcançar o lampião e acendê-lo. Aparentemente isso o extenuara. Entretanto, se achava debilitado demais para pensar em qualquer outra forma de sinalizar sua posição e obter socorro.

Os olhos verdes e argutos do homem da lei brilharam de alegre satisfação ao reconhecer o recém-chegado:

- Ah, é você. – disse com uma careta de dor – Graças a Deus!

- Parece que hoje não vamos tomar aquela cerveja. – lamentou o pistoleiro.

- Pois é. Realmente uma pena.

Permaneceram em silêncio por um momento.

O forasteiro aproximou-se de Wayne, agachando-se junto ao homem. O bravo agente da lei tinha as mãos cruzadas sobre o próprio ventre, procurando comprimir o ferimento, para evitar que o sangue continuasse escapando aos borbotões. Pedindo para dar uma olhada, o pistoleiro constatou haver um enorme buraco sangrento, por onde se viam as entranhas. Não havia nada a fazer.

O xerife esboçou um sorriso fraco ante o olhar desolado do outro:

- Nada bonito de se ver, não é?

- Vou levá-lo a um médico. – falou o forasteiro sem muita convicção.

- Não. Não vai. Nós dois sabemos disso. O doutor também morreu na chacina. Não há outro médico por aqui, e eu não resistiria a uma viagem. De qualquer modo, não vou durar muito.

- Não devia falar assim. – protestou o forasteiro, pesaroso.

- Ora essa! Sem pieguices a esta altura da minha vida, pelo amor de Deus! Estou com a boca seca. Merda! Se quiser mesmo fazer algo por mim, dê-me um pouco de água, filho.

Por um breve instante o pistoleiro hesitou, temendo que a ingestão do líquido fosse agravar a hemorragia do outro. Concluiu que pensar isso era tolice, porque tinham pouco tempo, e, no fim das contas, um gole de água não faria assim tanta diferença. Atendendo então ao pedido do amigo, inclinou-se para dar-lhe de beber do cantil que sempre trazia consigo.

- Quantas pessoas fizeram isso? – perguntou ele ao xerife enquanto olhava ao redor.

- Uma. – respondeu Carson com um meio sorriso triste.

O pistoleiro olhou-o com intensidade, apesar de não ter dito nada.

- Sei o que parece, mas não, não é delírio, meu amigo. Estou bem lúcido. Sei exatamente o que vi. Se me contassem, eu também teria dificuldade em acreditar. Todo esse estrago somente poderia ter sido causado por um destacamento da cavalaria. Contudo, o autor dessa destruição é um só. Uma garota franzina e danada de bonita, mais ou menos da mesma idade que minha neta.

O agente da lei fez uma pausa para tomar fôlego e foi acometido por uma crise de tosse seca. Sem que nenhum músculo de sua face se movesse, o viajante esperou que a tosse cessasse antes de servir mais um gole de água ao moribundo.

- Obrigado, garoto. Como eu dizia, ela chegou de repente a Horizon. O céu ficou amarelo como enxofre. Uma ventania estranha começou, e uma terrível tempestade de poeira sitiou a cidade. No olho do furacão estava a menina. Acho que era o anjo da morte disfarçado. Deus... Que pesadelo! Se meus olhos não me enganaram, vi a tal garota beber o sangue das pessoas, depois, é claro, de degolá-las como frangos de granja. Ninguém escapou de sua fúria e sede assassinas. Meus auxiliares e eu tentamos detê-la. Nos refugiamos aqui com alguns sobreviventes e resistimos por algum tempo mas, no fim, foi inútil. Ela acabou entrando. Os sobreviventes foram arrastados para outro ponto da cidade e trucidados. Meus homens e eu acabamos aqui, do jeito que está vendo. Ah, meu rapaz... Você nem pode sonhar como é ver uma cidade inteira sob sua jurisdição sendo dizimada como gado diante de seus olhos, sem que você possa impedir. Que Deus me perdoe!

O representante da lei arquejava. Seu rosto suado e crispado de dor denotava urgência. Fez um gesto para que o outro se aproximasse. Depois, em voz baixa, declarou com dificuldade:

- Meu tempo está... acabando. Está chegando a hora de fechar a conta. Fico feliz em... tê-lo comigo nesses momentos... finais. Cheguei a pensar... a pensar que morreria aqui sozinho... Bom Deus, sinto tanto... frio...

Rapidamente o pistoleiro entrou em uma das celas vazias, apanhou do catre dos prisioneiros um cobertor e cobriu o homem agonizante, tentando acomodá-lo o melhor possível.

- Obrigado, filho. O frio... estava... subindo pelas minhas pernas.

O forasteiro assentiu pensativamente. Sabia que a manta seria de pouca utilidade, pois a queda de temperatura sentida pelo xerife era resultado da hemorragia não estancada. Eram os dedos gelados da morte que galgavam as pernas de Carson Wayne.

Aflito, o xerife agarrou o braço de seu interlocutor:

- Você tem um... bom coração, meu garoto. Se alguém pode deter... aquela menina infernal, esse alguém... é você. Precisa prometer que vai achá-la... e que vai fazê-la pagar. O povo de Horizon... mesmo na morte... conta com você.

- Fique descansado. Ela será devidamente punida por seus crimes. Tem a minha palavra.

- Ótimo... – murmurou Wayne.

Respirava penosamente. Suava frio. Estava pálido, branco como cera. Os lábios perdiam a cor. Seu aspecto já era o de um cadáver.

Num último e titânico esforço, Carson reuniu suas energias restantes para pressionar o braço do outro um pouco mais, conforme advertia:

- Tenha muito cuidado. Ela é... perigosa. Não se... deixe enganar por sua... aparência frágil. Loura. Mede 1,70 m. Magra... Olhos negros... Sorriso maldoso. Parece uma boneca, mas é o diabo... de saia. Descarreguei toda a... munição de minha espingarda de caça... na filha da mãe... e ela riu... como se sentisse cócegas.

- Serei cuidadoso.  – prometeu o pistoleiro.

- Excelente. Ela foi... para o noroeste. Adeus, garoto.

- Adeus, meu velho. Descanse em paz.

Carson Wayne tentou sorrir, e seu sorriso transformou-se numa careta dolorosa. Uma golfada de sangue brotou de sua boca. Sua respiração acelerou como se ele subisse correndo uma ladeira muito íngreme. Estremeceu convulsivamente. Um suspiro longo. A pressão de seus dedos ao redor do pulso do pistoleiro acabou, e a mão inerte do xerife escorregou ao lado do corpo, caída, imobilizada.

 O viajante fechou os olhos vidrados do amigo morto.

Depois que a vida do xerife se extinguiu como a chama de uma vela apagada pelo vento, o pistoleiro ainda permaneceu mais um quarto de hora ali, refletindo, martirizando-se, imaginando quantas mortes teria evitado caso chegasse a Horizon um ou dois dias antes.

Então se levantou e improvisou uma mortalha com o cobertor, envolvendo no mesmo o corpo inerte do xerife Carson Wayne. Jogando o cadáver sobre seus ombros, deixou a xerifatura.

O forasteiro realmente gostaria de ter feito mais por Horizon naquele instante.

Entretanto, muitos eram os mortos, e escasso era o tempo.

Enterrando seu amigo Carson Wayne no simplório cemitério local, ele montou em seu cavalo e partiu sem olhar para trás.

Tendo encontrado os rastros da assassina na direção noroeste, iniciou sua caçada. O inimigo era rápido, e conquistara uma vantagem absurdamente impressionante, levando-se em conta o fato de que não tinha se passado tanto tempo desde que deixara o povoado cuja destruição provocara. Distanciava-se perigosamente.

O pistoleiro precisava apertar o passo caso não quisesse perder sua presa.

Metódico e paciente, durante um dia e uma noite ele cavalgou pelo deserto, seguindo incansavelmente os passos de sua oponente. E os rastros o levaram diretamente a Gold Fortress naquela noite.

Pelo visto, uma vez mais chegava demasiado tarde. A cidade deserta, abandonada e silenciosa tinha todas as características de já ter sofrido o ataque devastador. Por onde a misteriosa assassina passava, as cidades morriam. Literalmente. Não sobrava ninguém para contar história.

E agora ali estava o homem diante do saloon, que era onde as pistas terminavam. Com toda certeza o responsável pelos massacres se encontrava lá dentro do estabelecimento.

O viajante amarrou seu corcel na trave de madeira, muito mais por hábito do que por necessidade. De qualquer maneira, seu cavalo não iria a lugar algum. Estavam juntos naquilo desde o início, e só podiam contar um com o outro.

Gold Fortress jazia praticamente engolida pelas sombras, imersa na quietude opressiva, quase palpável. O vento zunia alto, fazendo balançar e ranger a velha placa que exibia o nome do lugar: “The Midnight Star Saloon”.

O momento decisivo chegara.

Destemidamente o homem subiu os velhos degraus do alpendre, empurrou a dupla portinhola vaivém e entrou.



Continua...