O forasteiro entrou na cidade desmontado, conduzindo sua magnífica
montaria pelas rédeas. Um silêncio constante e pesado envolvia o lugar,
tornando-o semelhante a um grande e desolado cemitério.
Portas e janelas cerradas. Ruas ermas. Silêncio absoluto. Quase
nenhuma luminosidade à vista porque, muito embora a noite caísse rapidamente,
não havia nenhum funcionário da prefeitura para acender as lamparinas a querosene,
que constituíam o precário sistema de iluminação público da época.
Localizada no coração do Arizona, rodeada pelo Deserto de Sonora e
encimada naquele instante pelo avermelhado céu crepuscular, a cidade de Gold Fortress parecia agora um local
morto, uma cidade-fantasma, que não chegava a ser nem mesmo a sombra do que já
fora.
Em seus idos dias de glória, Gold Fortress representara um marco
durante a Corrida do Ouro, tendo acolhido em seus limites cerca de quatorze mil
almas que, gananciosas, sonhavam com a possibilidade de encontrar ali um veio do
precioso metal amarelo. Desse tempo não restava sequer o menor dos vestígios.
Avançando com firmeza pela larga rua principal, o recém-chegado era
seguido de perto por seu gracioso cavalo. Levantando os olhos para o céu já
enegrecido quase totalmente, o homem avistou no horizonte a aproximação de
nuvens carregadas que pressagiavam temporal em breve.
Voltando os olhos impenetráveis para a terra, ele divisou no fim da
rua o saloon decrépito, em cuja
direção passou a caminhar, sempre puxando seu animal suavemente pelo bridão.
O saloon aparentemente era a única construção da cidade a irradiar
alguma luz, ainda que parcamente. Ali havia claridade, embora não houvesse
música. Este era um fator digno de estranheza, visto que a noite estava em seu
princípio. Àquela hora, as ruas deveriam estar apinhadas de gente, assim como o
pianista do saloon deveria estar atacando as teclas, extraindo delas uma melodia
alegre e dançante, adequada ao momento. Todavia, a única sonoridade capaz de
ameaçar o exasperante silêncio tumular era aquela proveniente do vento que,
soprando do deserto, percorria as ruas de Gold Fortress uivando
fantasmagoricamente, erguendo poeira da sarjeta.
Conforme o viajante caminhava, suas esporas escarlates tilintavam
cerimoniosamente dentro da noite jovem e assombrada. O modo de andar do homem
era ágil e vigoroso. Meio oculto pelas orlas do sobretudo, o par de Colts de pesado calibre que ele trazia,
um de cada lado do cinturão, denunciava de imediato a natureza de seu trabalho:
Era um pistoleiro. Um profissional da morte. Mais um homem talhado pela dureza
do Oeste, levado pelas circunstâncias a obter seu ganha-pão do modo mais
sombrio. Talvez ele tivesse aprendido a gostar de seu ofício. O mais provável é
que não, conquanto esse detalhe não alterasse o fato de que ele desempenhava
sua macabra tarefa com perfeição.
No entanto, dessa vez ele não estava em Gold Fortress pelo dinheiro. O
que o impelira até ali era uma prioridade sua que estava muito além de qualquer
riqueza material: Honra – uma virtude
que não pode ser comprada com um punhado de dólares.
Dias antes, em um começo de noite semelhante àquele, o forasteiro
estava entrando em Horizon, um
povoado bem ao leste, erguido às margens do temporário Rio Buffalo e preservado
do vento desértico pela face rochosa das Montanhas Gêmeas.
Em Horizon morava um amigo do viajante – um dos poucos que ele ainda
possuía neste mundo, a bem da verdade, – o xerife Carson Wayne.
Regularmente o pistoleiro visitava a cidade, onde procurava o xerife
Wayne para examinar os cartazes de “Procurado”
que os federais deixavam e aceitar um trabalho, prontificando-se a caçar mais
um criminoso de alta periculosidade que incomodava as pessoas de bem o qual,
vivo ou morto, sempre trazia depois, atravessado na sela de seu cavalo.
Tão logo o pistoleiro recebia suas gordas recompensas, geralmente
Carson e ele seguiam juntos para o saloon, a fim de tomar uma cerveja. O agente
da lei era um homem reservado, de poucas palavras. O caçador de recompensas
falava menos ainda. Então, os dois muitas vezes ficavam apenas sentados no bar,
bebendo em silêncio ali, agradecidos pela companhia um do outro, enquanto seu
olhar distante mostrava que estavam pensando cada qual em suas próprias
misérias.
Naquela noite, porém, tinha sido diferente.
Conduzindo a trote seu belo animal de pelo sedoso e negro na ocasião,
antes mesmo de entrar em Horizon o pistoleiro já percebeu o mau cheiro: a
cidade mergulhada em silêncio fedia a sangue e morte.
Pressentindo o pior, o viajante esporeara sua montaria.
Tendo adentrado a povoação, deparou-se com uma cena de pesadelo:
janelas quebradas, portas aspergidas com sangue já seco, dezenas de cadáveres
em adiantado estado de decomposição forrando as ruas. Homens e mulheres.
Crianças e idosos. O assassino, ou os assassinos, fossem quem fossem, não
fizeram distinção entre suas vítimas.
Segurando as rédeas na mão direita, o homem sacou o revólver do lado
esquerdo com a canhota, atirando nos corvos e coiotes para enxotá-los, pois a
carnificina atraíra a eles e as moscas.
O homem lidava com sérias dúvidas a respeito da existência de
sobreviventes, quando viu surgir mais adiante a anêmica luminosidade de um
lampião em uma casa. A janela que irradiava a fraca claridade era a do
escritório do xerife.
Lá chegando, encontrou os corpos eviscerados dos comissários, as
estrelas douradas de latão ainda presas aos coletes ensanguentados. Sentado a
um canto, respirando com dificuldade, estava Carson Wayne, gravemente ferido. A esteira vermelha no chão indicava que, ao
ouvir os tiros dados pelo forasteiro para rechaçar os animais e aves
carniceiros, o xerife tinha se arrastado pela sala, a fim de alcançar o lampião
e acendê-lo. Aparentemente isso o extenuara. Entretanto, se achava debilitado
demais para pensar em qualquer outra forma de sinalizar sua posição e obter
socorro.
Os olhos verdes e argutos do homem da lei brilharam de alegre
satisfação ao reconhecer o recém-chegado:
- Ah, é você. – disse com uma careta de dor – Graças a Deus!
- Parece que hoje não vamos tomar aquela cerveja. – lamentou o
pistoleiro.
- Pois é. Realmente uma pena.
Permaneceram em silêncio por um momento.
O forasteiro aproximou-se de Wayne, agachando-se junto ao homem. O
bravo agente da lei tinha as mãos cruzadas sobre o próprio ventre, procurando
comprimir o ferimento, para evitar que o sangue continuasse escapando aos
borbotões. Pedindo para dar uma olhada, o pistoleiro constatou haver um enorme
buraco sangrento, por onde se viam as entranhas. Não havia nada a fazer.
O xerife esboçou um sorriso fraco ante o olhar desolado do outro:
- Nada bonito de se ver, não é?
- Vou levá-lo a um médico. – falou o forasteiro sem muita convicção.
- Não. Não vai. Nós dois sabemos disso. O doutor também morreu na
chacina. Não há outro médico por aqui, e eu não resistiria a uma viagem. De qualquer
modo, não vou durar muito.
- Não devia falar assim. – protestou o forasteiro, pesaroso.
- Ora essa! Sem pieguices a esta altura da minha vida, pelo amor de
Deus! Estou com a boca seca. Merda! Se quiser mesmo fazer algo por mim, dê-me
um pouco de água, filho.
Por um breve instante o pistoleiro hesitou, temendo que a ingestão do
líquido fosse agravar a hemorragia do outro. Concluiu que pensar isso era
tolice, porque tinham pouco tempo, e, no fim das contas, um gole de água não
faria assim tanta diferença. Atendendo então ao pedido do amigo, inclinou-se
para dar-lhe de beber do cantil que sempre trazia consigo.
- Quantas pessoas fizeram isso? – perguntou ele ao xerife enquanto
olhava ao redor.
- Uma. – respondeu Carson com um meio sorriso triste.
O pistoleiro olhou-o com intensidade, apesar de não ter dito nada.
- Sei o que parece, mas não, não é delírio, meu amigo. Estou bem
lúcido. Sei exatamente o que vi. Se me contassem, eu também teria dificuldade
em acreditar. Todo esse estrago somente poderia ter sido causado por um destacamento
da cavalaria. Contudo, o autor dessa destruição é um só. Uma garota franzina e
danada de bonita, mais ou menos da mesma idade que minha neta.
O agente da lei fez uma pausa para tomar fôlego e foi acometido por
uma crise de tosse seca. Sem que nenhum músculo de sua face se movesse, o
viajante esperou que a tosse cessasse antes de servir mais um gole de água ao
moribundo.
- Obrigado, garoto. Como eu dizia, ela chegou de repente a Horizon. O
céu ficou amarelo como enxofre. Uma ventania estranha começou, e uma terrível
tempestade de poeira sitiou a cidade. No olho do furacão estava a menina. Acho
que era o anjo da morte disfarçado. Deus... Que pesadelo! Se meus olhos não me
enganaram, vi a tal garota beber o sangue das pessoas, depois, é claro, de degolá-las
como frangos de granja. Ninguém escapou de sua fúria e sede assassinas. Meus auxiliares
e eu tentamos detê-la. Nos refugiamos aqui com alguns sobreviventes e
resistimos por algum tempo mas, no fim, foi inútil. Ela acabou entrando. Os sobreviventes
foram arrastados para outro ponto da cidade e trucidados. Meus homens e eu
acabamos aqui, do jeito que está vendo. Ah, meu rapaz... Você nem pode sonhar
como é ver uma cidade inteira sob sua jurisdição sendo dizimada como gado
diante de seus olhos, sem que você possa impedir. Que Deus me perdoe!
O representante da lei arquejava. Seu rosto suado e crispado de dor
denotava urgência. Fez um gesto para que o outro se aproximasse. Depois, em voz
baixa, declarou com dificuldade:
- Meu tempo está... acabando. Está chegando a hora de fechar a conta.
Fico feliz em... tê-lo comigo nesses momentos... finais. Cheguei a pensar... a
pensar que morreria aqui sozinho... Bom Deus, sinto tanto... frio...
Rapidamente o pistoleiro entrou em uma das celas vazias, apanhou do
catre dos prisioneiros um cobertor e cobriu o homem agonizante, tentando
acomodá-lo o melhor possível.
- Obrigado, filho. O frio... estava... subindo pelas minhas pernas.
O forasteiro assentiu pensativamente. Sabia que a manta seria de pouca
utilidade, pois a queda de temperatura sentida pelo xerife era resultado da
hemorragia não estancada. Eram os dedos gelados da morte que galgavam as pernas
de Carson Wayne.
Aflito, o xerife agarrou o braço de seu interlocutor:
- Você tem um... bom coração, meu garoto. Se alguém pode deter...
aquela menina infernal, esse alguém... é você. Precisa prometer que vai achá-la...
e que vai fazê-la pagar. O povo de Horizon... mesmo na morte... conta com você.
- Fique descansado. Ela será devidamente punida por seus crimes. Tem a
minha palavra.
- Ótimo... – murmurou Wayne.
Respirava penosamente. Suava frio. Estava pálido, branco como cera. Os
lábios perdiam a cor. Seu aspecto já era o de um cadáver.
Num último e titânico esforço, Carson reuniu suas energias restantes
para pressionar o braço do outro um pouco mais, conforme advertia:
- Tenha muito cuidado. Ela é... perigosa. Não se... deixe enganar por
sua... aparência frágil. Loura. Mede 1,70 m. Magra... Olhos negros... Sorriso
maldoso. Parece uma boneca, mas é o diabo... de saia. Descarreguei toda a...
munição de minha espingarda de caça... na filha da mãe... e ela riu... como se
sentisse cócegas.
- Serei cuidadoso. – prometeu o
pistoleiro.
- Excelente. Ela foi... para o noroeste. Adeus, garoto.
- Adeus, meu velho. Descanse em paz.
Carson Wayne tentou sorrir, e seu sorriso transformou-se numa careta
dolorosa. Uma golfada de sangue brotou de sua boca. Sua respiração acelerou
como se ele subisse correndo uma ladeira muito íngreme. Estremeceu
convulsivamente. Um suspiro longo. A pressão de seus dedos ao redor do pulso do
pistoleiro acabou, e a mão inerte do xerife escorregou ao lado do corpo, caída,
imobilizada.
O viajante fechou os olhos
vidrados do amigo morto.
Depois que a vida do xerife se extinguiu como a chama de uma vela
apagada pelo vento, o pistoleiro ainda permaneceu mais um quarto de hora ali,
refletindo, martirizando-se, imaginando quantas mortes teria evitado caso
chegasse a Horizon um ou dois dias antes.
Então se levantou e improvisou uma mortalha com o cobertor, envolvendo
no mesmo o corpo inerte do xerife Carson Wayne. Jogando o cadáver sobre seus
ombros, deixou a xerifatura.
O forasteiro realmente gostaria de ter feito mais por Horizon naquele
instante.
Entretanto, muitos eram os mortos, e escasso era o tempo.
Enterrando seu amigo Carson Wayne no simplório cemitério local, ele
montou em seu cavalo e partiu sem olhar para trás.
Tendo encontrado os rastros da assassina na direção noroeste, iniciou
sua caçada. O inimigo era rápido, e conquistara uma vantagem absurdamente
impressionante, levando-se em conta o fato de que não tinha se passado tanto
tempo desde que deixara o povoado cuja destruição provocara. Distanciava-se perigosamente.
O pistoleiro precisava apertar o passo caso não quisesse perder sua
presa.
Metódico e paciente, durante um dia e uma noite ele cavalgou pelo
deserto, seguindo incansavelmente os passos de sua oponente. E os rastros o
levaram diretamente a Gold Fortress naquela noite.
Pelo visto, uma vez mais chegava demasiado tarde. A cidade deserta,
abandonada e silenciosa tinha todas as características de já ter sofrido o
ataque devastador. Por onde a misteriosa assassina passava, as cidades morriam.
Literalmente. Não sobrava ninguém para contar história.
E agora ali estava o homem diante do saloon, que era onde as pistas
terminavam. Com toda certeza o responsável pelos massacres se encontrava lá
dentro do estabelecimento.
O viajante amarrou seu corcel na trave de madeira, muito mais por
hábito do que por necessidade. De qualquer maneira, seu cavalo não iria a lugar
algum. Estavam juntos naquilo desde o início, e só podiam contar um com o
outro.
Gold Fortress jazia praticamente engolida pelas sombras, imersa na
quietude opressiva, quase palpável. O vento zunia alto, fazendo balançar e
ranger a velha placa que exibia o nome do lugar: “The Midnight Star Saloon”.
O momento decisivo chegara.
Destemidamente o homem subiu os velhos degraus do alpendre, empurrou a
dupla portinhola vaivém e entrou.
Continua...
Muito bom, Danilo. Seus escritos são sempre fascinantes. Agora vou ler a continuação, pois estou curiosa. :)
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