terça-feira, 2 de junho de 2015

Chuva no Deserto







O forasteiro entrou na cidade desmontado, conduzindo sua magnífica montaria pelas rédeas. Um silêncio constante e pesado envolvia o lugar, tornando-o semelhante a um grande e desolado cemitério.

Portas e janelas cerradas. Ruas ermas. Silêncio absoluto. Quase nenhuma luminosidade à vista porque, muito embora a noite caísse rapidamente, não havia nenhum funcionário da prefeitura para acender as lamparinas a querosene, que constituíam o precário sistema de iluminação público da época.

Localizada no coração do Arizona, rodeada pelo Deserto de Sonora e encimada naquele instante pelo avermelhado céu crepuscular, a cidade de Gold Fortress parecia agora um local morto, uma cidade-fantasma, que não chegava a ser nem mesmo a sombra do que já fora.

Em seus idos dias de glória, Gold Fortress representara um marco durante a Corrida do Ouro, tendo acolhido em seus limites cerca de quatorze mil almas que, gananciosas, sonhavam com a possibilidade de encontrar ali um veio do precioso metal amarelo. Desse tempo não restava sequer o menor dos vestígios.

Avançando com firmeza pela larga rua principal, o recém-chegado era seguido de perto por seu gracioso cavalo. Levantando os olhos para o céu já enegrecido quase totalmente, o homem avistou no horizonte a aproximação de nuvens carregadas que pressagiavam temporal em breve.

Voltando os olhos impenetráveis para a terra, ele divisou no fim da rua o saloon decrépito, em cuja direção passou a caminhar, sempre puxando seu animal suavemente pelo bridão.

O saloon aparentemente era a única construção da cidade a irradiar alguma luz, ainda que parcamente. Ali havia claridade, embora não houvesse música. Este era um fator digno de estranheza, visto que a noite estava em seu princípio. Àquela hora, as ruas deveriam estar apinhadas de gente, assim como o pianista do saloon deveria estar atacando as teclas, extraindo delas uma melodia alegre e dançante, adequada ao momento. Todavia, a única sonoridade capaz de ameaçar o exasperante silêncio tumular era aquela proveniente do vento que, soprando do deserto, percorria as ruas de Gold Fortress uivando fantasmagoricamente, erguendo poeira da sarjeta.

Conforme o viajante caminhava, suas esporas escarlates tilintavam cerimoniosamente dentro da noite jovem e assombrada. O modo de andar do homem era ágil e vigoroso. Meio oculto pelas orlas do sobretudo, o par de Colts de pesado calibre que ele trazia, um de cada lado do cinturão, denunciava de imediato a natureza de seu trabalho: Era um pistoleiro. Um profissional da morte. Mais um homem talhado pela dureza do Oeste, levado pelas circunstâncias a obter seu ganha-pão do modo mais sombrio. Talvez ele tivesse aprendido a gostar de seu ofício. O mais provável é que não, conquanto esse detalhe não alterasse o fato de que ele desempenhava sua macabra tarefa com perfeição.

No entanto, dessa vez ele não estava em Gold Fortress pelo dinheiro. O que o impelira até ali era uma prioridade sua que estava muito além de qualquer riqueza material: Honra – uma virtude que não pode ser comprada com um punhado de dólares.

Dias antes, em um começo de noite semelhante àquele, o forasteiro estava entrando em Horizon, um povoado bem ao leste, erguido às margens do temporário Rio Buffalo e preservado do vento desértico pela face rochosa das Montanhas Gêmeas.

Em Horizon morava um amigo do viajante – um dos poucos que ele ainda possuía neste mundo, a bem da verdade, – o xerife Carson Wayne.

Regularmente o pistoleiro visitava a cidade, onde procurava o xerife Wayne para examinar os cartazes de “Procurado” que os federais deixavam e aceitar um trabalho, prontificando-se a caçar mais um criminoso de alta periculosidade que incomodava as pessoas de bem o qual, vivo ou morto, sempre trazia depois, atravessado na sela de seu cavalo.

Tão logo o pistoleiro recebia suas gordas recompensas, geralmente Carson e ele seguiam juntos para o saloon, a fim de tomar uma cerveja. O agente da lei era um homem reservado, de poucas palavras. O caçador de recompensas falava menos ainda. Então, os dois muitas vezes ficavam apenas sentados no bar, bebendo em silêncio ali, agradecidos pela companhia um do outro, enquanto seu olhar distante mostrava que estavam pensando cada qual em suas próprias misérias.

Naquela noite, porém, tinha sido diferente.

Conduzindo a trote seu belo animal de pelo sedoso e negro na ocasião, antes mesmo de entrar em Horizon o pistoleiro já percebeu o mau cheiro: a cidade mergulhada em silêncio fedia a sangue e morte.

Pressentindo o pior, o viajante esporeara sua montaria.

Tendo adentrado a povoação, deparou-se com uma cena de pesadelo: janelas quebradas, portas aspergidas com sangue já seco, dezenas de cadáveres em adiantado estado de decomposição forrando as ruas. Homens e mulheres. Crianças e idosos. O assassino, ou os assassinos, fossem quem fossem, não fizeram distinção entre suas vítimas.

Segurando as rédeas na mão direita, o homem sacou o revólver do lado esquerdo com a canhota, atirando nos corvos e coiotes para enxotá-los, pois a carnificina atraíra a eles e as moscas.

O homem lidava com sérias dúvidas a respeito da existência de sobreviventes, quando viu surgir mais adiante a anêmica luminosidade de um lampião em uma casa. A janela que irradiava a fraca claridade era a do escritório do xerife.

Lá chegando, encontrou os corpos eviscerados dos comissários, as estrelas douradas de latão ainda presas aos coletes ensanguentados. Sentado a um canto, respirando com dificuldade, estava Carson Wayne, gravemente ferido.  A esteira vermelha no chão indicava que, ao ouvir os tiros dados pelo forasteiro para rechaçar os animais e aves carniceiros, o xerife tinha se arrastado pela sala, a fim de alcançar o lampião e acendê-lo. Aparentemente isso o extenuara. Entretanto, se achava debilitado demais para pensar em qualquer outra forma de sinalizar sua posição e obter socorro.

Os olhos verdes e argutos do homem da lei brilharam de alegre satisfação ao reconhecer o recém-chegado:

- Ah, é você. – disse com uma careta de dor – Graças a Deus!

- Parece que hoje não vamos tomar aquela cerveja. – lamentou o pistoleiro.

- Pois é. Realmente uma pena.

Permaneceram em silêncio por um momento.

O forasteiro aproximou-se de Wayne, agachando-se junto ao homem. O bravo agente da lei tinha as mãos cruzadas sobre o próprio ventre, procurando comprimir o ferimento, para evitar que o sangue continuasse escapando aos borbotões. Pedindo para dar uma olhada, o pistoleiro constatou haver um enorme buraco sangrento, por onde se viam as entranhas. Não havia nada a fazer.

O xerife esboçou um sorriso fraco ante o olhar desolado do outro:

- Nada bonito de se ver, não é?

- Vou levá-lo a um médico. – falou o forasteiro sem muita convicção.

- Não. Não vai. Nós dois sabemos disso. O doutor também morreu na chacina. Não há outro médico por aqui, e eu não resistiria a uma viagem. De qualquer modo, não vou durar muito.

- Não devia falar assim. – protestou o forasteiro, pesaroso.

- Ora essa! Sem pieguices a esta altura da minha vida, pelo amor de Deus! Estou com a boca seca. Merda! Se quiser mesmo fazer algo por mim, dê-me um pouco de água, filho.

Por um breve instante o pistoleiro hesitou, temendo que a ingestão do líquido fosse agravar a hemorragia do outro. Concluiu que pensar isso era tolice, porque tinham pouco tempo, e, no fim das contas, um gole de água não faria assim tanta diferença. Atendendo então ao pedido do amigo, inclinou-se para dar-lhe de beber do cantil que sempre trazia consigo.

- Quantas pessoas fizeram isso? – perguntou ele ao xerife enquanto olhava ao redor.

- Uma. – respondeu Carson com um meio sorriso triste.

O pistoleiro olhou-o com intensidade, apesar de não ter dito nada.

- Sei o que parece, mas não, não é delírio, meu amigo. Estou bem lúcido. Sei exatamente o que vi. Se me contassem, eu também teria dificuldade em acreditar. Todo esse estrago somente poderia ter sido causado por um destacamento da cavalaria. Contudo, o autor dessa destruição é um só. Uma garota franzina e danada de bonita, mais ou menos da mesma idade que minha neta.

O agente da lei fez uma pausa para tomar fôlego e foi acometido por uma crise de tosse seca. Sem que nenhum músculo de sua face se movesse, o viajante esperou que a tosse cessasse antes de servir mais um gole de água ao moribundo.

- Obrigado, garoto. Como eu dizia, ela chegou de repente a Horizon. O céu ficou amarelo como enxofre. Uma ventania estranha começou, e uma terrível tempestade de poeira sitiou a cidade. No olho do furacão estava a menina. Acho que era o anjo da morte disfarçado. Deus... Que pesadelo! Se meus olhos não me enganaram, vi a tal garota beber o sangue das pessoas, depois, é claro, de degolá-las como frangos de granja. Ninguém escapou de sua fúria e sede assassinas. Meus auxiliares e eu tentamos detê-la. Nos refugiamos aqui com alguns sobreviventes e resistimos por algum tempo mas, no fim, foi inútil. Ela acabou entrando. Os sobreviventes foram arrastados para outro ponto da cidade e trucidados. Meus homens e eu acabamos aqui, do jeito que está vendo. Ah, meu rapaz... Você nem pode sonhar como é ver uma cidade inteira sob sua jurisdição sendo dizimada como gado diante de seus olhos, sem que você possa impedir. Que Deus me perdoe!

O representante da lei arquejava. Seu rosto suado e crispado de dor denotava urgência. Fez um gesto para que o outro se aproximasse. Depois, em voz baixa, declarou com dificuldade:

- Meu tempo está... acabando. Está chegando a hora de fechar a conta. Fico feliz em... tê-lo comigo nesses momentos... finais. Cheguei a pensar... a pensar que morreria aqui sozinho... Bom Deus, sinto tanto... frio...

Rapidamente o pistoleiro entrou em uma das celas vazias, apanhou do catre dos prisioneiros um cobertor e cobriu o homem agonizante, tentando acomodá-lo o melhor possível.

- Obrigado, filho. O frio... estava... subindo pelas minhas pernas.

O forasteiro assentiu pensativamente. Sabia que a manta seria de pouca utilidade, pois a queda de temperatura sentida pelo xerife era resultado da hemorragia não estancada. Eram os dedos gelados da morte que galgavam as pernas de Carson Wayne.

Aflito, o xerife agarrou o braço de seu interlocutor:

- Você tem um... bom coração, meu garoto. Se alguém pode deter... aquela menina infernal, esse alguém... é você. Precisa prometer que vai achá-la... e que vai fazê-la pagar. O povo de Horizon... mesmo na morte... conta com você.

- Fique descansado. Ela será devidamente punida por seus crimes. Tem a minha palavra.

- Ótimo... – murmurou Wayne.

Respirava penosamente. Suava frio. Estava pálido, branco como cera. Os lábios perdiam a cor. Seu aspecto já era o de um cadáver.

Num último e titânico esforço, Carson reuniu suas energias restantes para pressionar o braço do outro um pouco mais, conforme advertia:

- Tenha muito cuidado. Ela é... perigosa. Não se... deixe enganar por sua... aparência frágil. Loura. Mede 1,70 m. Magra... Olhos negros... Sorriso maldoso. Parece uma boneca, mas é o diabo... de saia. Descarreguei toda a... munição de minha espingarda de caça... na filha da mãe... e ela riu... como se sentisse cócegas.

- Serei cuidadoso.  – prometeu o pistoleiro.

- Excelente. Ela foi... para o noroeste. Adeus, garoto.

- Adeus, meu velho. Descanse em paz.

Carson Wayne tentou sorrir, e seu sorriso transformou-se numa careta dolorosa. Uma golfada de sangue brotou de sua boca. Sua respiração acelerou como se ele subisse correndo uma ladeira muito íngreme. Estremeceu convulsivamente. Um suspiro longo. A pressão de seus dedos ao redor do pulso do pistoleiro acabou, e a mão inerte do xerife escorregou ao lado do corpo, caída, imobilizada.

 O viajante fechou os olhos vidrados do amigo morto.

Depois que a vida do xerife se extinguiu como a chama de uma vela apagada pelo vento, o pistoleiro ainda permaneceu mais um quarto de hora ali, refletindo, martirizando-se, imaginando quantas mortes teria evitado caso chegasse a Horizon um ou dois dias antes.

Então se levantou e improvisou uma mortalha com o cobertor, envolvendo no mesmo o corpo inerte do xerife Carson Wayne. Jogando o cadáver sobre seus ombros, deixou a xerifatura.

O forasteiro realmente gostaria de ter feito mais por Horizon naquele instante.

Entretanto, muitos eram os mortos, e escasso era o tempo.

Enterrando seu amigo Carson Wayne no simplório cemitério local, ele montou em seu cavalo e partiu sem olhar para trás.

Tendo encontrado os rastros da assassina na direção noroeste, iniciou sua caçada. O inimigo era rápido, e conquistara uma vantagem absurdamente impressionante, levando-se em conta o fato de que não tinha se passado tanto tempo desde que deixara o povoado cuja destruição provocara. Distanciava-se perigosamente.

O pistoleiro precisava apertar o passo caso não quisesse perder sua presa.

Metódico e paciente, durante um dia e uma noite ele cavalgou pelo deserto, seguindo incansavelmente os passos de sua oponente. E os rastros o levaram diretamente a Gold Fortress naquela noite.

Pelo visto, uma vez mais chegava demasiado tarde. A cidade deserta, abandonada e silenciosa tinha todas as características de já ter sofrido o ataque devastador. Por onde a misteriosa assassina passava, as cidades morriam. Literalmente. Não sobrava ninguém para contar história.

E agora ali estava o homem diante do saloon, que era onde as pistas terminavam. Com toda certeza o responsável pelos massacres se encontrava lá dentro do estabelecimento.

O viajante amarrou seu corcel na trave de madeira, muito mais por hábito do que por necessidade. De qualquer maneira, seu cavalo não iria a lugar algum. Estavam juntos naquilo desde o início, e só podiam contar um com o outro.

Gold Fortress jazia praticamente engolida pelas sombras, imersa na quietude opressiva, quase palpável. O vento zunia alto, fazendo balançar e ranger a velha placa que exibia o nome do lugar: “The Midnight Star Saloon”.

O momento decisivo chegara.

Destemidamente o homem subiu os velhos degraus do alpendre, empurrou a dupla portinhola vaivém e entrou.



Continua...



Um comentário:

  1. Muito bom, Danilo. Seus escritos são sempre fascinantes. Agora vou ler a continuação, pois estou curiosa. :)

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