quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Sede




Abriu os olhos amarelos e eles varreram a escuridão ansiosamente. A escuridão era amiga, era a companheira de muito tempo, seu habitat, seu refúgio; na verdade, era ela quem garantia sua existência. Moveu-se lentamente dentro de seu esquife, iniciando o movimento de sair após ter erguido a tampa do mesmo.
 Enquanto seus olhos brilhavam intensamente no escuro, suas narinas se dilataram, como se farejassem a presa. Seus ouvidos captaram o som de água que pingava ali por perto. Uma goteira. Aliás, uma não: várias. Olhando mais uma vez ao redor, percebeu que seu abrigo parecia uma caverna ou algo assim. Sim, aos poucos foi se lembrando, era uma espécie de gruta, uma mina esgotada, que outrora devia ter gerado grandes lucros ao seu proprietário.
Com o fluxo das lembranças viu-se invadido por terrível sentimento de revolta. Como não sentiria revolta, diante de tão grande humilhação? Uma criatura de sua estirpe, criado num dos melhores clãs, puro, vindo direto da linhagem de Drácula, fruto da sétima geração que sucedera o Conde, sendo perseguido como uma raposa, e obrigado a se esconder naquela gruta deprimente, cheirando a mofo... Era lastimável! Na Transilvânia era um nobre respeitado e temido, talvez mais temido que respeitado, mas era!
E agora, isso. E tudo por causa daqueles malditos vermes, a quem chamam de humanos! Insetos insignificantes que desejavam destruí-lo! Como ousavam? Não passavam de poeira, seres desprezíveis que podia esmagar com apenas um de seus punhos, sob o impacto do menor dos poderes que a noite lhe fornecia! Mas eles pagariam por tudo que estavam lhe causando! No momento oportuno ele teria sua vingança. Depois de ficar de pé, bateu com as mãos sobre as roupas de estilo vitoriano, um sobretudo negro cheio de detalhes, com gola alta, punhos de renda e botões dourados. Um sono de mais de meio século com certeza empoeiraria suas roupas! Feito isso, ergueu a cabeça ao ouvir guinchos estridentes, que ecoavam ao longe e vinham ricocheteando pelas úmidas e pedregosas paredes da caverna.  A seguir, ele próprio produziu um som estranho, um chiado sinistro saiu de seus lábios finos e pálidos, apertados contra os caninos brancos e pontiagudos. Segundos depois, em resposta a esse estranho silvo, dezenas de morcegos irromperam na câmara escura onde ele se achava de pé.
Os inúmeros morcegos o cercaram e passaram a voar ao redor dele, envolvidos numa espécie de encantamento, executando uma dança que era, ao mesmo tempo, horrenda e maravilhosa. Embora voassem em círculos a sua volta, não o tocaram, e mesmo sem emitir seus guinchos, que servem para orientá-los, tinham consciência da presença de seu mestre naquele lugar. Tinham atendido prontamente o chamado daquele irmão da noite, que por ser superior a eles, era seu senhor. No meio do turbilhão de asas negras, ele sorriu misteriosamente. Seus olhos chamejaram e uma metamorfose incrível assolou seu corpo pálido. No instante seguinte, era um deles. De sua forma humana, passara a forma de morcego. Ainda assim, eles o cercavam. Houve uma espécie de comunicação entre eles e, pelo visto, um entendimento, pois os morcegos partiram em seguida e ele, batendo também suas asas, os seguiu.
Voaram pela infinidade de largos corredores que formavam o labirinto daquela gruta e saíram por uma brecha natural que havia lá em cima, bem alto, no teto, e por onde também entrava a luz fantasmagórica do luar. Mal saíram e ele sentiu o vento frio e cortante da noite, que veio e acariciou seu pequenino e enrugado corpo metamorfoseado. Uma espécie de alívio se apossou dele. Mais de cinqüenta anos em sono profundo, sem sentir a brisa e os aromas da noite! Ele voava escoltado pelos outros. Soube que era pouco mais de meia-noite. Apenas soube, não precisaram lhe dizer. Ele sabia, era um dos filhos da noite. Juntou-se aos outros e formaram uma imensa revoada de asas negras que encobriu a lua cheia...

 Danilo Alex da Silva (Dezembro de 2009)





Esse texto é um trecho de um conto meu, chamado Sede. Espero que gostem, e que me perdoem o tema gótico, sombrio rs. Na época, mais do que nunca eu andava fascinado por vampiros( vampiros de verdade rsrs), tinha acabado de ler "Drácula" do Bram Stoker, e estava lendo "Entrevista com o vampiro", da Anne Rice, que ainda hoje está entre meus autores prediletos.
No momento estou lendo As Crônicas Vampirescas, da Anne.
Lestat é o cara!

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