Abriu os olhos amarelos e eles varreram a escuridão
ansiosamente. A escuridão era amiga, era a companheira de muito tempo, seu habitat,
seu refúgio; na verdade, era ela quem garantia sua existência. Moveu-se
lentamente dentro de seu esquife, iniciando o movimento de sair após ter
erguido a tampa do mesmo.
Enquanto seus olhos brilhavam intensamente no
escuro, suas narinas se dilataram, como se farejassem a presa. Seus ouvidos
captaram o som de água que pingava ali por perto. Uma goteira. Aliás, uma não:
várias. Olhando mais uma vez ao redor, percebeu que seu abrigo parecia uma
caverna ou algo assim. Sim, aos poucos foi se lembrando, era uma espécie de
gruta, uma mina esgotada, que outrora devia ter gerado grandes lucros ao seu
proprietário.
Com o fluxo das lembranças viu-se invadido por
terrível sentimento de revolta. Como não sentiria revolta, diante de tão grande
humilhação? Uma criatura de sua estirpe, criado num dos melhores clãs, puro,
vindo direto da linhagem de Drácula, fruto da sétima geração que sucedera o
Conde, sendo perseguido como uma raposa, e obrigado a se esconder naquela gruta
deprimente, cheirando a mofo... Era lastimável! Na Transilvânia era um nobre
respeitado e temido, talvez mais temido que respeitado, mas era!
E agora, isso. E tudo por causa daqueles malditos
vermes, a quem chamam de humanos! Insetos insignificantes que desejavam
destruí-lo! Como ousavam? Não passavam de poeira, seres desprezíveis que podia
esmagar com apenas um de seus punhos, sob o impacto do menor dos poderes que a
noite lhe fornecia! Mas eles pagariam por tudo que estavam lhe causando! No
momento oportuno ele teria sua vingança. Depois de ficar de pé, bateu com as
mãos sobre as roupas de estilo vitoriano, um sobretudo negro cheio de detalhes,
com gola alta, punhos de renda e botões dourados. Um sono de mais de meio
século com certeza empoeiraria suas roupas! Feito isso, ergueu a cabeça ao ouvir
guinchos estridentes, que ecoavam ao longe e vinham ricocheteando pelas úmidas
e pedregosas paredes da caverna. A seguir, ele próprio produziu um som
estranho, um chiado sinistro saiu de seus lábios finos e pálidos, apertados
contra os caninos brancos e pontiagudos. Segundos depois, em resposta a esse
estranho silvo, dezenas de morcegos irromperam na câmara escura onde ele se
achava de pé.
Os inúmeros morcegos o cercaram e passaram a voar
ao redor dele, envolvidos numa espécie de encantamento, executando uma dança
que era, ao mesmo tempo, horrenda e maravilhosa. Embora voassem em círculos a
sua volta, não o tocaram, e mesmo sem emitir seus guinchos, que servem para
orientá-los, tinham consciência da presença de seu mestre naquele lugar. Tinham
atendido prontamente o chamado daquele irmão da noite, que por ser superior a
eles, era seu senhor. No meio do turbilhão de asas negras, ele sorriu
misteriosamente. Seus olhos chamejaram e uma metamorfose incrível assolou seu
corpo pálido. No instante seguinte, era um deles. De sua forma humana, passara
a forma de morcego. Ainda assim, eles o cercavam. Houve uma espécie de
comunicação entre eles e, pelo visto, um entendimento, pois os morcegos
partiram em seguida e ele, batendo também suas asas, os seguiu.
Voaram pela infinidade de largos corredores que
formavam o labirinto daquela gruta e saíram por uma brecha natural que havia lá
em cima, bem alto, no teto, e por onde também entrava a luz fantasmagórica do
luar. Mal saíram e ele sentiu o vento frio e cortante da noite, que veio e
acariciou seu pequenino e enrugado corpo metamorfoseado. Uma espécie de alívio
se apossou dele. Mais de cinqüenta anos em sono profundo, sem sentir a brisa e
os aromas da noite! Ele voava escoltado pelos outros. Soube que era pouco mais
de meia-noite. Apenas soube, não precisaram lhe dizer. Ele sabia, era um dos
filhos da noite. Juntou-se aos outros e formaram uma imensa revoada de asas
negras que encobriu a lua cheia...
Esse texto é um trecho de um conto meu, chamado Sede. Espero que gostem, e que me perdoem o tema gótico, sombrio rs. Na época, mais do que nunca eu andava fascinado por vampiros( vampiros de verdade rsrs), tinha acabado de ler "Drácula" do Bram Stoker, e estava lendo "Entrevista com o vampiro", da Anne Rice, que ainda hoje está entre meus autores prediletos.
No momento estou lendo As Crônicas Vampirescas, da Anne.
Lestat é o cara!
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