sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A Última Partida




 

Fazia vinte minutos que eu estava imóvel no meu cubículo. O ramal da diretoria piscando como um vaga-lume louco no display. Simplesmente não conseguia atender. O resto do que seria um álbum quando me recompusesse e juntasse toda aquela bagunça estava espalhado no carpete do escritório. O zunzunzum dos outros funcionários, outros telefones, a copeira passando com o carrinho do café, o suor escorrendo pelas minhas costas apesar do ar-condicionado ligado no talo, tudo isso parecia a galáxias de distância da minha mesa. Você já ficou vinte minutos imóvel, sendo consumido por milhares de pensamentos ruins, culpa e danação? Garanto que é um bocado de tempo, embora para mim, naquela droga de dia em que recebi pelo serviço de entrega do laboratório as fotos do aniversário da minha caçula, vinte minutos pareceram um piscar de olhos. A história é a seguinte; sou um senhor de quarenta e sete anos, sentado na minha mesa de gerência de feedback e retaguarda ao cliente platina, tenho dois filhos e uma esposa que quero largar, segurando a fotografia da clássica hora do parabéns. Nanda está com um chapeuzinho de prender com elástico, feliz da vida, pronta para assoprar o número sete de parafina cor-de-rosa sobre o Bob Esponja Calça Quadrada. Eu, Deise, meu filho Marcelo, um cunhado, sogra e meu pai bem ao fundo, meio escondido pela profusão de convivas aparentados, esperando o espetacular primeiro pedaço de bolo e posando para aquela foto que agora balança na ponta dos meus dedos por conta da tremedeira que vai me consumindo.
A terceira amiga de escritório pára ao meu lado, fala algo no idioma klingon, a única palavra em português que escuto é “pálido”. Não dou a mínima. Acho que vou ter um ataque cardíaco mesmo.
A foto é coisa normal e corriqueira, tudo bem. Tudo bem. O anormal é meu pai ali, entre minha sogra e meu cunhado, com a penumbra por conta da luz apagada e da fraca luminosidade da vela banhando um pouco da cena. Meu pai não foi ao aniversário. Ele nunca vai. Meu pai vive num asilo para idosos. Faz dois anos que eu não o visito. Por isso a culpa me consome. Por isso meu coração está disparado. Não é que eu simplesmente não o visite. A agravante é que faz uns dezoito meses que eu nem ligo para saber como ele está. Não liguei no Natal, nem no ano-novo, nem em seu aniversário de setenta anos. Deus Pai! Deus Pai! O que é isso? Será impressão minha? Não pode ser ele, ali. Finalmente consigo me livrar daquele torpor que havia congelado meus ossos e, de quebra, minha alma. Ainda tremendo apanho a agenda ao lado do vaga-lume ensandecido. Martirizo-me pela enésima vez. Nem o telefone do asilo eu tenho de cor nem comigo! Digito no buscador “asilo Santos-SP”. A Internet retorna mais de cem mil resultados. Sei que minha testa está fria. Não lembro o nome do santo que nomeia a droga do lar de velhinhos onde internei meu pai. Que tipo de monstro não lembra o nome da casa onde seu pai está? Levanto da mesa e, a passadas largas, vou até o elevador, deixando as fotografias esparramadas no chão, um rastro de olhares que percebem um louco e faço a secretária da diretoria que caminha na minha direção se afastar com medo do meu rosto suado e meus olhos arregalados. Dirijo até em casa tirando tinta dos carros ao lado. Farol vermelho. Excesso de velocidade. Dia de rodízio. Antes de entrar em meu condomínio e subir ao apartamento já perdi a habilitação por umas dez vidas. Atravesso a sala como bala. Reviro minha gaveta no guarda-roupas. Dúzias de envelopes do Lar Santo Antônio sem ao menos serem abertos. Não precisava conferir os boletos, uma vez que a conta estava em débito automático. Se fosse alguma urgência os imbecis do asilo teriam ligado. Teriam, eu sei. Rasgo o envelope mais recente. Papel timbrado. Digito os números e a ligação toca no litoral. Uma voz de senhora rouca do outro lado. Explico quem sou, pergunto pelo meu pai. Musiquinha irritante enquanto transferem para o serviço social. Outra senhora. Pergunta o nome do interno, meu nome. Ela pigarreia daquele jeito que a gente sabe que lá vem chumbo quente. Um hiato desconfortável. Minha cabeça a mil, zunindo, pensando um monte de merda. Meu pai não podia estar naquela foto. Meu pai estava no asilo. Meu pai… ela finalmente fala.
— Lamento, senhor Sérgio. Mandamos oito cartas de lá pra cá. O senhor não deu nenhum retorno. Seu pai foi enterrado dia 16 de setembro do ano passado.
— Entendo.
— Temos coisas dele aqui. Ele deixou pertences para o senhor. Antes de ficar em coma tinha dito que era para lhe entregar quando viesse visitá-lo em seu aniversário.
Desligo o telefone. Caio na cama e, como não fazia há dez anos pelo menos, explodi num pranto misturado a berreiro e condenação. Meu pai estava morto. Duas semanas antes do aniversário de Fernanda. Ele queria tanto me ver que tinha aparecido na festinha. Ele, de alguma forma irreal e inacreditável, estivera ali, no salão do condomínio. Estivera ali.
Então um arrepio sobe pela minha espinha. Interrompo o choro rasgado quando Deise entra no quarto. Meus olhos dançam pelo vazio do quarto impessoal e padronizado, como tantos outros. Passam pelo lençol amarrotado, pelos criados-mudos e varrem as paredes. Meu pai… estaria ali? Naquele instante? Uma alma penada, assombrando um filho monstro.
— Sérgio do céu? Você foi despedido?
Não respondo. Ainda procuro o espectro nos cantos e nas sombras. Um homem calado e de vida dura. Esquecido num asilo cheirando a mofo, trancafiado atrás das barras de solidão e preso aos grilhões pesados da espera.
Deise me abraça com medo e preocupada.
— Quanto você vai receber de indenização? Já falaram?
Dou um empurrão em minha esposa. Ela cai sentada na cama. Ainda preocupada. Calculando. Ela também está presa a grilhões. Grilhões com outro peso… com correntes muito, mas muito mais curtas.
— Meu pai morreu, Deise.
— Ah… pena.
A mulher se levanta e recompõe a roupa.
— Quando foi?
— Setembro. Ano passado.
— Que coisa.
Ficamos calados. Constrangidos. Tânatos é um deus forte.
— Você nunca me deixa visitar meu pai.
Pela primeira vez na vida de casado ela não retruca. Sei exatamente a ladainha que viria. Pela primeira vez na vida ela respeita minha dor. Surpresas demais para um dia só.
Estendo a fotografia para Deise. Religiosa, ela se benze.
— Sérgio! Você não acha…
— Cadê a câmera?
— Joguei fora. No Natal você comprou uma digital para nós.
Até chegar ao asilo dispenso dois amigos pelo celular. Não queria falar com ninguém. Tinha vergonha de explicar qualquer coisa. Os pensamentos incessantes não dão descanso aos miolos conspurcados por imagens do passado. Por conta dessas imagens, mesmo antes de chegar ao Santo Antônio, já tinha a resposta para a pergunta que me fustigava. Por que não tinham ligado nenhuma vez? O apartamento era novo. Tinha mudado para lá pouco menos de dois anos. Liguei só uma vez para o asilo. Não para o meu pai, para o financeiro. Alterei meu endereço de correspondência, mas não tinha o novo telefone ainda. Troquei de celular e nem lembrei de meu pai. Perdemos o contato. Lá me entregaram um embrulho que o velho Cesário tinha deixado para mim. Os amigos dele tinham feito uma vaquinha para que ele não fosse enterrado como indigente. Sem família, sem ninguém para acompanhar o cortejo. Sozinho na terra fria do cemitério.
Parei o carro na frente do campo santo, relembrando e remoendo as dúzias de vezes que entre um cafezinho e outro no trabalho eu me prometia ir visitar meu pai. Depois eu vou. Depois eu vou. Sempre e sempre deixando o amor de agora para a frieza do depois. Caminhei até a quadra indicada. Um túmulo simples, sem foto, só o nome. Cesário Balbino da Costa. Baiano, morto de tristeza aos setenta anos. Caí de joelhos diante da cruz e tirei o embrulho da sacola. Mais choro quando abri o pacote. Um tabuleiro dobrável de madeira. Jogo de damas. Colei a testa ao chão, enchendo a pele de pedriscos e arranhões por culpa dos soluços. Minha mãe tinha morrido muito cedo e, então, quando eu tinha onze anos caí doente, coisa séria, hepatite da brava. Seu Cesário, que era homem rústico e pouco dado a rompantes emocionais, deixou o trabalho por trinta dias e trinta dias passou ao pé da cama do hospital, ficando comigo o tempo todo. No segundo dia apareceu com aquele tabuleiro de damas e me ensinou a jogar. A lembrança só serviu para varar ainda mais meu coração de gelo. Quando abri o tabuleiro um pedaço de papel dobrado caiu junto com as pedras de damas. Apanhei o papelzinho e desdobrei, lendo a mensagem grafada com caligrafia tremida e inconfundível do velho Cesário. Sorri sem graça.
— Está tudo bem… — dizia meu pai através do escrito. — Está tudo bem… — repetia minha voz para consolar ambos.
Armei as pedras sobre o tabuleiro. Um vento gelado arrastou as folhas secas em minha direção. Assoprei a sujeira de cima dos quadrados. Movi a branca para a frente, avançando uma casa como era a regra.


— Sua vez, pai — murmurei. 





André Vianco



"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Porque, se você parar pra pensar, na verdade não há."

Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá

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