sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O Confronto dos Sóis - Parte I

  
Parecia apenas um fim de tarde comum no conturbado coração da Metrópole paulista. Transeuntes apressados, centenas de carros e motos enfileirados, presos nos engarrafamentos, buzinando interminavelmente. Uma sexta feira que se esvaía em sua loucura normal diária, pessoas cansadas que, cheias de alívio, saiam de seus trabalhos e se dirigiam ao ponto de Happy Hour mais próximo, a fim de espairecer após uma semana estressante, angustiados pelo trabalho e correria semanal, e asfixiados pela poluição inevitável, própria de todo grande centro urbano, tal como São Paulo. O sol se punha, era uma bola de fogo escarlate que desaparecia atrás do horizonte longínquo. Tudo parecia comum, ordinário, corriqueiro. Um carro de som percorria as ruas apinhadas de gente e veículos, fazendo propaganda de uma loja de eletrodomésticos. No intervalo entre o anúncio das promoções, uma conhecida música nacional jorrava dos potentes alto-falantes:
“Quando o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam
Se tratar de um outro cometa...”
– cantava a voz saudosa e inconfundível de Cássia Eller, acompanhada por acordes vibrantes de violão.
A música, deflagrada em altíssimo nível de decibéis, era despejada pelas caixas de som fixadas sobre o teto do carro-propaganda, e se misturava à barulheira infernal da capital paulista. A voz de Cássia Eller ecoava com autoridade acima da poluição sonora citadina, fazendo com que os versos da música chegassem aos ouvidos cansados dos cidadãos em marcha para casa ou para o bar mais próximo.  Apesar de ouvi-la, os paulistas não prestaram atenção à letra. E deveriam, pois, mais tarde as palavras desta canção se mostrariam sombriamente proféticas.
Até aqui soubemos o que acontecia no mundo físico. Sim porque, para quem não sabe, ou não acredita, existe um outro mundo, o plano espiritual que se comunica com o nosso.
Acima dos arranha-céus de concreto maciço e da atmosfera espessa e escurecida de poluição, sem que os humanos lá embaixo pudessem ver ou sequer imaginar, subitamente as nuvens foram fendidas violentamente. O véu sutil etéreo que separa o plano físico do espiritual foi transpassado. O Céu estremeceu.
 Eis que uma figura poderosa surgiu do seio da abóbada celeste: um ser invisível para os olhos mortais, procedente do mundo espiritual, atravessando a fronteira entre os mundos e pairando com suavidade no céu físico paulista. Tinha dois metros e trinta de altura. A tez era muito clara e brilhante como as estrelas de uma noite sem lua. Os cabelos eram dourados, maciamente encaracolados. Seus cachos dourados moviam-se, obedientes, cada vez que ele voltava a cabeça imponente. Tinha olhos azuis vivazes, inumanamente brilhantes, dos quais emanava um olhar que era rígido, autoritário, mas podia rapidamente se suavizar. Seus olhos eram destituídos de íris, de modo que duas bolas de fogo azuis ocupavam toda a cavidade orbital. Um par fino de sobrancelhas douradas encimava seus olhos cor de safira. O nariz era harmonioso com o rosto de menino, os lábios róseos e finos, o queixo era firme. Seu corpo era jovem e atlético como o de um militar. O ser trajava uma túnica de linho branca e simples, e usava sandálias douradas. Sobre a túnica envergava uma fabulosa armadura dourada e rebrilhante, que lhe encobria dos ombros até a cintura, uma espécie de couraça inteiriça. Na cintura trazia uma espada esplêndida e flamejante. De suas costas surgiam dois pares de asas brancas como algodão, e majestosas como as de uma águia real, cuja envergadura alcançava os 8 metros sem muito esforço.
Sim, o ser que adentrava o espaço aéreo paulistano era um mensageiro divino. Um dos sete que estavam sempre na presença do Altíssimo. Seu nome era Miguel.
O arcanjo Miguel vinha pessoalmente à Terra naquele fim de tarde para executar uma missão a qual não permitia erros. Para que o general da milícia celestial abandonasse seu posto, a razão deveria de fato ser extremamente grave. Descia lentamente, agitando de modo elegante e cadenciado suas imensas e lindas asas. Dentro em pouco, sua figura angelical, ainda invisível aos homens, pousou no asfalto da Avenida Paulista. Sua presença era tão poderosa que as luzes dos postes piscaram insanamente, ao mesmo tempo em que uma pequena pane desligava os aparelhos celulares e eletrodomésticos numa área mínima de 15 quarteirões do local onde ele pousara. O vento passava com violência, carregando consigo folhas mortas de árvores e jornais velhos das sarjetas umedecidas pela garoa constante.
 Miguel olhou preocupadamente ao redor e começou a se mover em direção ao seu objetivo. Porém, mal dera dois passos, um poderoso raio atingiu o chão logo adiante dele, obrigando-o a se deter. Aquela descarga elétrica repentina também tinha sua essência espiritual. Os humanos continuavam a caminhar ou dirigir para seus destinos naquele começo de noite, ignorando totalmente a atividade celestial que ocorria ao seu redor, apenas estranhando um pouco o vento súbito, a falha geral nas luzes e as panes de energia.
O raio caíra diante de Miguel por uma razão. No local onde a descarga de eletricidade tocara o chão estava agora de pé uma criatura semelhante ao general do paraíso.
A figura diante dele era um pouco mais baixa, devia medir cerca de dois metros. Sua tez também era clara e fulgurante, quase translúcida. Seus cabelos eram negros como ébano, lisos, estavam soltos e desciam-lhe pelos ombros e costas em uma longa e linda cascata escura. Os olhos eram perscrutadores, severos, vivos. Pelo modo que fixavam Miguel, pareciam transmitir algum tipo de inquietude que beirava a irritação. Assim como os de Miguel, os olhos desse segundo personagem também não possuíam esclera. Todavia, não eram azuis: tinham a cor da prata pura. Duas bolas de fogo argênteo que ocupavam as órbitas. Seus impressionantes globos oculares não poderiam ser encarados por um humano devido sua luminosidade, já que olhar para os olhos dele era como tentar fitar diretamente o sol: queimava as vistas mortais. Sobrancelhas pretas e finas, rosto de infante, nariz pequeno e reto, lábios finos e quase sem cor, praticamente translúcidos como sua pele divinal. Tudo isso culminando num queixo marcante, que contrastava com seu rosto oval e belo.
Assim como Miguel, esse segundo arcanjo possuía uma silhueta jovem e saudável, como a de um mortal que fosse halterofilista. Usava uma túnica de linho azul clara, simples como a de Miguel, e seus pés eram calçados por sandálias prateadas. Sobre a túnica, envergava também uma armadura resplandecente de guerreiro celestial; mas a sua era prata, como seus olhos. Trazia na cintura uma grande e imponente espada, pela lâmina da qual pareciam percorrer ondas infindas de eletricidade. Por fim, das costas desse mensageiro do paraíso surgiam dois pares de asas magistrais e prateadas, de envergadura comparável às asas de Miguel. Ao pousar, o recém chegado as recolhera imponentemente. Sua presença era igualmente poderosa então, ao chegar, o mundo físico reagiu ao contato sobrenatural: tampas de bueiro foram pelos ares, luzes de prédios e postes piscaram, um vento impetuoso e repentino começou a varrer a Avenida Paulista. Os dois seres se olharam fixamente.
- O que fazes aqui, Raguel? Ordenei que ficasse lá e me substituísse enquanto eu estivesse fora - disse Miguel com firmeza, e sua voz era como o som de centenas de ondas batendo furiosamente nas rochas. Como centenas de vozes de uma multidão agitada.
Raguel, o arcanjo que acabara de chegar, também era um dos sete que estavam diante do Trono de Deus. Cruzando os braços, não se intimidou:
- Vim para dissuadi-lo. Não deves realizar aquilo que tenciona. – a voz de Raguel era igualmente impressionante, parecia o vento vigoroso que destelha lares e traz a tempestade; parecia o trovão que faz tremer o céu tempestuoso.
- É preciso, irmão. Não tenho feito outra coisa senão pensar em um modo de resolver a situação, mas não vejo nenhuma outra solução. É chegado o tempo de agir.
- Não há o que fazer. Ele optou por isso. Respeite a vontade dele, assim como Deus respeitou.
Miguel fitou o outro com melancolia em seus feéricos olhos azuis antes de replicar:
- Desde a Grande Guerra eu nunca pedi nada a ele, Raguel. Sempre o deixamos em paz em sua neutralidade. Contudo, o momento que atravessamos agora é crucial. Eis que o fim está perto.
Os olhos prateados de Raguel adquiriram uma expressão de estranheza e sua aura tremulou como a chama de uma vela assaltada pelo vento. O arcanjo responsável por executar a justiça divina pareceu vacilar diante das palavras inusitadas do comandante das tropas celestes.
- O que dizes, Miguel? Ninguém senão nosso Pai sabe o momento do fim.
- Verdade, irmão. Mas eu posso sentir que o Dia do Juízo vem a nós. Acredito que o tempo esteja muito próximo. Os sinais são claros, basta olhar o caos em que se encontra a humanidade. Lúcifer recebeu seu indulto temporário e se dirige nesse instante para a Terra, com o mesmo intuito que eu. Eis que a Estrela da Manhã deseja convencê-lo antes de mim.
- Lúcifer não conseguirá, assim como tu. Ninguém pode convencê-lo a nada, pois ele faz uso de seu livre arbítrio. Bem o sabes que nem mesmo Elohim interfere nessas questões. – Olhando para Miguel, Raguel agitou suas esplêndidas asas com impaciência latente e prosseguiu, como se falasse a uma criança teimosa – Entendo que esteja preocupado, meu irmão. Tu és o Príncipe dos Príncipes, General das Tropas Célicas. Muitas responsabilidades pesam sobre vossos ombros, e diversos afazeres esperam sob a sombra de vossas asas. Também sei que amas a nosso Pai e a humanidade, e temes, pois, tendo Lúcifer se aliado a ele, estaríamos todos em uma posição delicada. Mas ele não parece disposto a tomar partido. Está escondido aqui em São Paulo, habitando entre os homens como sempre fez, conforme foi lhe determinado desde o princípio. Em seu exílio espontâneo, ele aguarda resignadamente pelo Juízo, quando terá que se prostrar diante do Trono glorioso e prestar contas por seus atos, assim como os mortais. Não, Lúcifer não o demoverá de sua neutralidade. Tampouco você, Miguel.
- Talvez tenha razão, Raguel. Mas preciso tentar.



Continua...


Por Danilo Alex da Silva


Salve, meu povo! Depois de um sumiço, venho hoje presentear vocês com esse rabisco meu, gerado essa semana. Isso que dá ler Eduardo Spohr: a gente escreve esse tipo de contos hahahaha.
Quem curtir esse trecho de hoje, não pode perder a continuação da história, que postarei em breve.Se houver comentários neste post, colocarei o restante da história depois.

Tenham um fim de semana abençoado!

abraços

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