quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Ossos do Ofício - Parte III - Final

“Ouça a voz do passado
Você vai descobrir por último
Há uma indagação que está esperando por você e sua alma”

(Vampire Killer – Battleroar)



Quando parecia prestes a ser esmigalhado pelas garras afiadas do monstro, Julian se esquivou com uma tranquilidade assombrosa, como se toda a agilidade do oponente fosse nada para ele. O rapaz era perito em várias artes marciais, sendo, entretanto a sua favorita o Karatê. Por isso, esticou a perna, erguendo-a de modo reto, firme, e desferiu um poderoso chute frontal que explodiu em cheio no rosto do demônio bebedor de sangue, fazendo-o voar de costas e bater contra um poste, no qual permaneceu apoiado alguns segundos, um tanto atordoado. Tentou um novo ataque, mas Julian se aproximou e, girando o corpo com fantástica destreza, fustigou-lhe o peito com um novo, possante pontapé, lançando-o ao chão com uma cambalhota grotesca.
Nesse ínterim, o terceiro vampiro conseguiu se desvencilhar do espanto e usou suas unhas afiadas para produzir três cortes sangrentos nas costas do jovem caçador, que se curvou momentaneamente com uma careta de dor. A mulher soltou um grito abafado, temendo pela vida de seu herói. A fim de evitar um novo ataque, Julian se lançou para o lado, rolando pela rua molhada, afastando-se de seu adversário.
O problema dos vampiros é a sua arrogância. Consideram-se seres extremamente superiores, os supremos ocupantes do topo da cadeia alimentar. Subestimam os humanos, tratam-nos como vermes, ridicularizam sua capacidade de raciocínio e seus instintos de sobrevivência. E esse erro costuma ser letal. Ao ver Julian encolhido no chão, meio agachado, o monstro julgou que o combate estava ganho.
Enlouquecido pelo cheiro do sangue que escapava das costas dilaceradas do mortal curvado, o assassino sobrenatural rugiu e se arremessou ao ataque, já antegozando o sabor do líquido vermelho e vital. Quando estava a um passo do jovem caçador, o mesmo moveu a mão com rapidez fatal e algo em sua mão brilhou à luz amarela dos postes. A lâmina abençoada do punhal enterrou-se com precisão na garganta do vampiro, rasgando a carne flácida, pálida e morta, como faca cortando manteiga quente.
Desesperado, o ser das trevas se ergueu de um salto e arregalou os olhos inumanos. Levou as mãos cadavéricas ao pescoço, tentando estancar o vazamento de sangue pútrido e malcheiroso, negro como o petróleo, mesmo ciente de que a tentativa era inútil. Sabia ser a lâmina do punhal feita de prata pura, e que aquele ferimento jamais cicatrizaria. Com um gargarejo sinistro, o vampiro deu dois passos cambaleantes em direção ao caçador, tropeçou e caiu de joelhos, antes de tombar de bruços e ficar imóvel, esvaindo-se em sangue escuro.
Julian se ergueu, limpando o punhal na manga de couro de sua jaqueta preta enquanto fitava o inimigo em quem assestara dois pontapés devastadores, pois o bicho estava praticamente recuperado e preparava-se para atacar. Quando o monstro se moveu, rápido como o vento, Julian já tinha guardado o punhal e estava retirando algo de dentro da jaqueta. O vampiro apenas percebeu o que era quando ouviu três estampidos secos e sentiu as balas banhadas de prata perfurando-o impiedosamente.
 Com seus olhos malignos arregalados e cheios de surpresa, o vampiro frustrou-se ao sofrer a destruição final pelas mãos de um mero mortal. Aquele que fora esfaqueado na garganta também havia sido destruído para sempre. Sem exibir qualquer traço de fadiga pela cruenta batalha que acabara de travar, Julian se voltou para o filho das trevas que estava agonizando no chão, aquele que havia sido atingido pelo shuriken. A pistola apontou para a cabeça da criatura, cuspiu fogo e logo em seguida, manipulada com desenvoltura pelo caçador, mudou de ângulo e disparou novamente, dessa vez em direção ao coração do monstro, que se desfez em uma nuvem de cinzas. Tudo terminado.
A mulher, ainda sentada no meio da rua, tomada de absoluto espanto, observava o bravo cavaleiro sagrado, o qual, surgindo das brumas da noite como uma anjo enviado à Terra, a defendera de três demônios poderosos e os vencera, de um modo completamente improvável. Estava emudecida de assombro e apenas o observava.
Seguiu-o com os olhos enquanto ele se certificava que os três vampiros haviam sido definitivamente liquidados. Depois, viu-o abaixar-se e recolher cuidadosamente as cápsulas vazias resultantes dos disparos que havia feito com sua pistola. Lançando um olhar satisfeito à cena de seu bom combate, o jovem dirigiu então sua atenção para a mulher que acabara de salvar. Sem dizer nada, ele se abaixou e começou a recolher as sacolas do supermercado, das quais muitos produtos, como latas de conserva, tinham se espalhado pela rua. Agilmente ele reuniu tudo e conseguiu colocar as várias alças das sacolas presas firmemente em sua enluvada mão esquerda. Caminhou até a mulher e olhou-a nos olhos, um olhar de compaixão pura.
- Você está bem? – ele perguntou jovialmente.
Ainda sem conseguir articular as palavras devido o choque da situação, ela fez que sim com a cabeça. Com um sorriso satisfeito ele estendeu a mão para ajudá-la a se erguer. Ela aceitou a ajuda e, quando estendeu a sua mão, sob a luz amarelecida dos postes, a qual fornecia um tom sépia à cena, o olhar do jovem caçador caiu sobre as costas da mão dela.
O rosto de Julian não demonstrou a reviravolta emocional que houve em seu íntimo naquele momento. Ele vacilou, mas foi só por um segundo. Seu senso de profissionalismo jamais permitiria que sua subjetividade interferisse em algo durante uma missão, ainda que fosse um caso como aquele. Depois de olhar e segurar a mão da mulher, o rapaz fitou-a nos olhos de forma indecifrável e a amparou para que se erguesse. Ela estendeu os braços para segurar as sacolas, mas ele se recusou a entregar. Acompanhou-a até a casa dela, que não estava longe. Enquanto ela apanhava a chave no bolso e destrancava a porta, ele esteve de pé, vigilante.
Mesmo com as compras no colo, os olhos treinados dele perscrutavam a noite em todas as direções, prontos para captar o menor sinal de perigo. Quando ela abriu a porta, acendeu as luzes e viu que a casa estava segura, só então Julian entregou a ela as compras. A mulher, cheia de gratidão, o observou com carinho. Por que será que aquele rapaz lhe parecia tão familiar?
Com os olhos lacrimejantes, ela segurou a mão dele e beijou-a diversas vezes, agradecendo e abençoando-o infinitamente. Ele sorria, meio sem jeito. Julian estava um pouco lívido, os lábios franzidos, o suor querendo brotar das têmporas. Ele deu um tapinha amistoso no ombro dela e, sem dizer nada, virou-lhe as costas, caminhando rapidamente em direção à sua moto, estacionada perto da igreja, do outro lado da esquina.
Enquanto andava, ele sentia a intensidade do olhar dela em suas costas. Ela devia julgá-lo uma espécie de anjo, ou algo parecido. Não podia culpá-la; ela vivera muitas coisas fantásticas, muitas emoções naquele dia. Julian sentia-se dentro de um mundo irreal, etéreo, como se caminhasse nas nuvens. Sentia como se uma represa emocional em seu interior, há muito esquecida e considerada por ele inexistente, houvesse se rompido.
Na mão direita da mulher ele vira uma marca de nascença, a qual consistia num tipo de cruz chamuscada, meio borrada. Aquilo o havia atingido em cheio, de tal forma que até se esquecera da dor nas costas, onde as unhas do vampiro haviam feito um estrago considerável. A visão daquele sinal na mão dela o congelou, pelo simples fato de que em sua mão direita, sob a luva, ele trazia a mesma marca.
Enquanto caminhava, com o coração aos pulos, ele sabia que não podia olhar par trás. Embora conhecesse agora o endereço dela, não devia jamais voltar ali. Julian a ter encontrado era uma fraqueza que poderia ser explorada pelos inimigos. Esses eram os ossos do ofício, sobretudo quando os ossos eram o próprio ofício. O caçador deveria desaparecer; se ficasse por perto, a exporia a riscos desnecessários e perigos sem medida. Tivera vontade de abraçá-la, de dizer tantas coisas, mas não pudera. Melhor assim. Agradeceu a Deus em silêncio pela oportunidade de ter conhecido sua mãe. Nem todas as pessoas adotadas tem essa sorte.
Alcançou a moto molhada pela garoa e passou a mão enluvada pelo banco, tentando secá-lo o melhor possível. Subiu na máquina, pôs o capacete, ajustou-o na cabeça e o abotoou. Introduziu a chave na ignição, girou e acionou o botão de partida elétrica. Não olhou uma vez sequer para a casa da mulher. Colocou o veículo em movimento e partiu.
Olhou atentamente para o céu nublado de onde despencava a fria garoa e tentou colocar os pensamentos em ordem. Acelerou fundo a motocicleta e se afastou chispando pela rua deserta noite adentro, na tentativa desesperada de que o ronco possante do motor abafasse as vozes gritantes dentro de sua cabeça e dentro de seu coração.

Fim


Danilo Alex da Silva


Salve meus queridos! Espero que tenham gostado do conto! Como sempre agradeço o carinho e o apoio. 

Forte abraço!

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