“Ouça a voz do passado
Você vai descobrir por
último
Há uma indagação que
está esperando por você e sua alma”
(Vampire Killer –
Battleroar)
Quando
parecia prestes a ser esmigalhado pelas garras afiadas do monstro, Julian se
esquivou com uma tranquilidade assombrosa, como se toda a agilidade do oponente
fosse nada para ele. O rapaz era perito em várias artes marciais, sendo,
entretanto a sua favorita o Karatê. Por
isso, esticou a perna, erguendo-a de modo reto, firme, e desferiu um poderoso
chute frontal que explodiu em cheio no rosto do demônio bebedor de sangue,
fazendo-o voar de costas e bater contra um poste, no qual permaneceu apoiado
alguns segundos, um tanto atordoado. Tentou um novo ataque, mas Julian se
aproximou e, girando o corpo com fantástica destreza, fustigou-lhe o peito com
um novo, possante pontapé, lançando-o ao chão com uma cambalhota grotesca.
Nesse
ínterim, o terceiro vampiro conseguiu se desvencilhar do espanto e usou suas
unhas afiadas para produzir três cortes sangrentos nas costas do jovem caçador,
que se curvou momentaneamente com uma careta de dor. A mulher soltou um grito
abafado, temendo pela vida de seu herói. A fim de evitar um novo ataque, Julian
se lançou para o lado, rolando pela rua molhada, afastando-se de seu
adversário.
O
problema dos vampiros é a sua arrogância. Consideram-se seres extremamente
superiores, os supremos ocupantes do topo da cadeia alimentar. Subestimam os
humanos, tratam-nos como vermes, ridicularizam sua capacidade de raciocínio e
seus instintos de sobrevivência. E esse erro costuma ser letal. Ao ver Julian
encolhido no chão, meio agachado, o monstro julgou que o combate estava ganho.
Enlouquecido
pelo cheiro do sangue que escapava das costas dilaceradas do mortal curvado, o
assassino sobrenatural rugiu e se arremessou ao ataque, já antegozando o sabor
do líquido vermelho e vital. Quando estava a um passo do jovem caçador, o mesmo
moveu a mão com rapidez fatal e algo em sua mão brilhou à luz amarela dos
postes. A lâmina abençoada do punhal enterrou-se com precisão na garganta do
vampiro, rasgando a carne flácida, pálida e morta, como faca cortando manteiga
quente.
Desesperado,
o ser das trevas se ergueu de um salto e arregalou os olhos inumanos. Levou as
mãos cadavéricas ao pescoço, tentando estancar o vazamento de sangue pútrido e
malcheiroso, negro como o petróleo, mesmo ciente de que a tentativa era inútil.
Sabia ser a lâmina do punhal feita de prata pura, e que aquele ferimento jamais
cicatrizaria. Com um gargarejo sinistro, o vampiro deu dois passos cambaleantes
em direção ao caçador, tropeçou e caiu de joelhos, antes de tombar de bruços e
ficar imóvel, esvaindo-se em sangue escuro.
Julian
se ergueu, limpando o punhal na manga de couro de sua jaqueta preta enquanto
fitava o inimigo em quem assestara dois pontapés devastadores, pois o bicho
estava praticamente recuperado e preparava-se para atacar. Quando o monstro se
moveu, rápido como o vento, Julian já tinha guardado o punhal e estava
retirando algo de dentro da jaqueta. O vampiro apenas percebeu o que era quando
ouviu três estampidos secos e sentiu as balas banhadas de prata perfurando-o
impiedosamente.
Com seus olhos malignos arregalados e cheios
de surpresa, o vampiro frustrou-se ao sofrer a destruição final pelas mãos de
um mero mortal. Aquele que fora esfaqueado na garganta também havia sido
destruído para sempre. Sem exibir qualquer traço de fadiga pela cruenta batalha
que acabara de travar, Julian se voltou para o filho das trevas que estava
agonizando no chão, aquele que havia sido atingido pelo shuriken. A pistola apontou para a cabeça da criatura, cuspiu fogo
e logo em seguida, manipulada com desenvoltura pelo caçador, mudou de ângulo e
disparou novamente, dessa vez em direção ao coração do monstro, que se desfez
em uma nuvem de cinzas. Tudo terminado.
A
mulher, ainda sentada no meio da rua, tomada de absoluto espanto, observava o
bravo cavaleiro sagrado, o qual, surgindo das brumas da noite como uma anjo
enviado à Terra, a defendera de três demônios poderosos e os vencera, de um modo
completamente improvável. Estava emudecida de assombro e apenas o observava.
Seguiu-o
com os olhos enquanto ele se certificava que os três vampiros haviam sido
definitivamente liquidados. Depois, viu-o abaixar-se e recolher cuidadosamente
as cápsulas vazias resultantes dos disparos que havia feito com sua pistola.
Lançando um olhar satisfeito à cena de seu bom combate, o jovem dirigiu então
sua atenção para a mulher que acabara de salvar. Sem dizer nada, ele se abaixou
e começou a recolher as sacolas do supermercado, das quais muitos produtos,
como latas de conserva, tinham se espalhado pela rua. Agilmente ele reuniu tudo
e conseguiu colocar as várias alças das sacolas presas firmemente em sua
enluvada mão esquerda. Caminhou até a mulher e olhou-a nos olhos, um olhar de
compaixão pura.
-
Você está bem? – ele perguntou jovialmente.
Ainda
sem conseguir articular as palavras devido o choque da situação, ela fez que
sim com a cabeça. Com um sorriso satisfeito ele estendeu a mão para ajudá-la a
se erguer. Ela aceitou a ajuda e, quando estendeu a sua mão, sob a luz amarelecida
dos postes, a qual fornecia um tom sépia à cena, o olhar do jovem caçador caiu
sobre as costas da mão dela.
O
rosto de Julian não demonstrou a reviravolta emocional que houve em seu íntimo
naquele momento. Ele vacilou, mas foi só por um segundo. Seu senso de
profissionalismo jamais permitiria que sua subjetividade interferisse em algo
durante uma missão, ainda que fosse um caso como aquele. Depois de olhar e segurar
a mão da mulher, o rapaz fitou-a nos olhos de forma indecifrável e a amparou
para que se erguesse. Ela estendeu os braços para segurar as sacolas, mas ele
se recusou a entregar. Acompanhou-a até a casa dela, que não estava longe.
Enquanto ela apanhava a chave no bolso e destrancava a porta, ele esteve de pé,
vigilante.
Mesmo
com as compras no colo, os olhos treinados dele perscrutavam a noite em todas
as direções, prontos para captar o menor sinal de perigo. Quando ela abriu a
porta, acendeu as luzes e viu que a casa estava segura, só então Julian
entregou a ela as compras. A mulher, cheia de gratidão, o observou com carinho.
Por que será que aquele rapaz lhe parecia tão familiar?
Com
os olhos lacrimejantes, ela segurou a mão dele e beijou-a diversas vezes,
agradecendo e abençoando-o infinitamente. Ele sorria, meio sem jeito. Julian
estava um pouco lívido, os lábios franzidos, o suor querendo brotar das
têmporas. Ele deu um tapinha amistoso no ombro dela e, sem dizer nada, virou-lhe
as costas, caminhando rapidamente em direção à sua moto, estacionada perto da
igreja, do outro lado da esquina.
Enquanto
andava, ele sentia a intensidade do olhar dela em suas costas. Ela devia
julgá-lo uma espécie de anjo, ou algo parecido. Não podia culpá-la; ela vivera
muitas coisas fantásticas, muitas emoções naquele dia. Julian sentia-se dentro
de um mundo irreal, etéreo, como se caminhasse nas nuvens. Sentia como se uma
represa emocional em seu interior, há muito esquecida e considerada por ele
inexistente, houvesse se rompido.
Na
mão direita da mulher ele vira uma marca de nascença, a qual consistia num tipo
de cruz chamuscada, meio borrada. Aquilo o havia atingido em cheio, de tal
forma que até se esquecera da dor nas costas, onde as unhas do vampiro haviam
feito um estrago considerável. A visão daquele sinal na mão dela o congelou,
pelo simples fato de que em sua mão direita, sob a luva, ele trazia a mesma
marca.
Enquanto
caminhava, com o coração aos pulos, ele sabia que não podia olhar par trás.
Embora conhecesse agora o endereço dela, não devia jamais voltar ali. Julian a
ter encontrado era uma fraqueza que poderia ser explorada pelos inimigos. Esses
eram os ossos do ofício, sobretudo quando os ossos eram o próprio ofício. O
caçador deveria desaparecer; se ficasse por perto, a exporia a riscos
desnecessários e perigos sem medida. Tivera vontade de abraçá-la, de dizer
tantas coisas, mas não pudera. Melhor assim. Agradeceu a Deus em silêncio pela
oportunidade de ter conhecido sua mãe. Nem todas as pessoas adotadas tem essa
sorte.
Alcançou
a moto molhada pela garoa e passou a mão enluvada pelo banco, tentando secá-lo
o melhor possível. Subiu na máquina, pôs o capacete, ajustou-o na cabeça e o
abotoou. Introduziu a chave na ignição, girou e acionou o botão de partida
elétrica. Não olhou uma vez sequer para a casa da mulher. Colocou o veículo em
movimento e partiu.
Olhou
atentamente para o céu nublado de onde despencava a fria garoa e tentou colocar
os pensamentos em ordem. Acelerou fundo a motocicleta e se afastou chispando
pela rua deserta noite adentro, na tentativa desesperada de que o ronco
possante do motor abafasse as vozes gritantes dentro de sua cabeça e dentro de
seu coração.
Fim
Danilo Alex da Silva
Salve meus queridos! Espero que tenham gostado do conto! Como sempre agradeço o carinho e o apoio.
Forte abraço!
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