“Você
vai mostrar-lhes todos os seus truques
Suas armas são uma lenda
A corrente de aço santo
E o escudo sagrado”
(Vampire
Killer – Battleroar)
Quando
estacionou sua imensa motocicleta nos arredores da igreja de São Carlos, Julian
imaginou que aquela fosse apenas mais uma noite de trabalho qualquer. Girando a
chave na ignição, viu o robusto tanque de combustível diante de si estremecer.
Julian então sentiu a trepidação da monstruosa moto, e ouviu o motor possante
desligar-se com um ronronado. O potente farol apagou-se repentinamente, como um
olho sonolento que se fecha na escuridão.
Julian
consultou o relógio e constatou que passavam das vinte e duas horas. Parecia
pura rotina: recebera uma mensagem dos informantes da Ordem, a qual explicava a
aproximada localização dos objetivos. Seus alvos se moviam rápido, tinham
apenas a noite para si, mas eram presos a certas regras, padrões, horários e
locais. Era inerente à sua natureza animalesca. A mesma natureza paradigmática
que, embora fossem inimigos ferozes e ardilosos, os fazia vulneráveis e
previsíveis para profissionais como Julian.
Aqueles
alvos estavam ousando muito em caçar perto de uma igreja, por dois motivos:
primeiro, porque nos arredores de igrejas sempre havia grandes quantidades de
Observadores da Ordem. Segundo, porque solo santificado os enfraquecia, e a
maioria deles preferia evitar locais como aquele. Então, para Julian só havia
duas respostas: ou as criaturas eram jovens demais e desconheciam o perigo que
corriam por estar naquele lugar, ou eram velhas e poderosas demais para se
importar com detalhes como aquele.
Correndo
os olhos castanhos ao redor, e tendo certeza de que a rua estava deserta, o
jovem motociclista pela milésima vez enfiou a mão por dentro da jaqueta de
couro preta, própria para pilotagem, a fim de conferir se seus instrumentos de
trabalho estavam onde deveriam. Tranquilizou-se ao sentir que estavam. Seu trabalho
não permitia erros; nunca havia uma segunda chance. Ou se cumpria a tarefa com
perfeição, ou se pagava o preço, que era altíssimo. Por isso ele era tão
sistemático, o que o tornava tão bom no que fazia.
Algumas
horas antes, no quarto que lhe haviam destinado no quartel-general secreto da
Ordem, lenta e cuidadosamente ele havia amolado seu punhal de prata e afiado
uma dúzia de estacas de madeira embebidas em água benta; também tinha
desmontado, limpado e recarregado sua pistola automática de treze tiros,
modificada para disparar balas banhadas a prata, com o sinal da cruz entalhado em suas pontas.
Uma arma formidável de cor preta e cuja coloração negra era fosca, para evitar
que brilhasse e despertasse a atenção dos demais ao ser empunhada.
Ainda
por dentro da jaqueta e numa tira de coro presa na coxa, ele trazia algumas
armas brancas leves e de fácil manuseio, como adagas e shurikens, aquelas lâminas japonesas com
pontas, próprias para arremesso, chamadas popularmente de “estrelas”,
amplamente utilizadas pelos ninjas do cinema. Tanto as adagas quanto os shurikens eram feitos de prata,
porque esse metal, de uma inexplicável e mística maneira, era letal para seus
oponentes. Aquelas armas eram grandes recursos nas mãos do jovem Julian, pois
ele as atirava com maestria; habilidade adquirida durante muitos anos de
treinamento, o qual se iniciara quando ele era apenas uma criança, vinte anos
antes.
Quando
ainda era um bebê, Julian foi doado a um orfanato pela mãe que não tinha
condições de criá-lo. Ele não tinha ressentimentos de sua progenitora; pelo
contrário. Era grato por ela lhe ter dado a oportunidade de nascer. Nem todas
as mulheres despreparadas para a maternidade agiriam como ela. Por isso, Julian
sentia-se grato por estar vivo. Mesmo sem nunca ter visto o rosto da mãe, ou
sequer saber algo sobre ela, lembrava-se dela em cada oração como forma de
agradecimento pelo presente da vida. Sim porque, graças a ela, Julian podia
salvar pessoas.
Fora
criado até os cinco anos nesse orfanato. E então, a Ordem o descobriu.
Revelou-se um garoto com um fantástico coração altruísta, muito inteligente e
apto, capaz de se tornar um soldado como poucos. Julian viu-se acolhido por uma
fraternidade mística e secreta, que combatia perigos inimagináveis à maioria
dos seres humanos. O Mal além dos olhos. Inimigos sobrenaturais. Aquilo que
muitos consideravam histórias da carochinha era o ganha-pão do jovem Julian.
Localizar. Caçar. Destruir.
Seres
que saíam à noite para tirar vidas humanas eram o alvo do poderoso guerreiro.
Cresceu familiarizado com armas brancas e de fogo. Intenso treinamento físico
para disciplinar o corpo e a alma. Artes marciais diversas para transformar o
corpo resistente e viril em uma máquina de matar monstros. Aulas teóricas e
práticas de estratégia e como localizar e liquidar as crias das trevas. Treino
rigoroso em infiltração, furtividade, disfarce.
Muito
estudo sobre várias ciências, culturas, literaturas, para que soubesse usar a
arte da fala e da escrita para caçar, sobreviver, e escapar de alguma situação
em que precisasse despistar seres humanos, tais como policiais. Instrução em
valores éticos, morais e religiosos, o que contribuía para forjar a mente do
guerreiro, moldar seu caráter e conscientizá-lo dos ideais supremos que deveria
servir, sendo o principal amar e defender todos os seres humanos das criaturas
infernais que brotavam no mundo quando a noite se avizinhava.
Enfrentando
esse processo de preparação ao longo de anos, Julian finalmente foi submetido
ao severo teste final. Depois disso, ritual de iniciação e um juramento sagrado
que, uma vez proferido, o ligou para sempre à Ordem e aos seus novos irmãos.
Esse era o Julian que a Confraria preparara. O gosto obsessivo por
motocicletas, garotas e rock and
roll ele adquirira por conta própria. E gostava imensamente de seu
ofício, principalmente quando caçava alvos como os daquela noite. Vampiros. A
Julian era muito gratificante eliminar aquela escória do mundo, resgatar
pessoas das garras horrendas dessas sanguessugas infernais. Era morbidamente
divertido finalizar com os vamps.
Quase experimentava uma espécie de prazer culpado. A única parte ruim era
aquela; permanecer de campana, morrendo de tédio e de frio.
Estava
imerso nesses pensamentos quando um ônibus dobrou a esquina bufando e se
aproximou, roncando ruidosamente dentro da noite gelada, cortada por uma garoa
insistente e irritante que umedecia implacavelmente as ruas desertas. O imenso
veículo passou por Julian, inundando fugazmente com sua claridade exagerada o
jovem e sua motocicleta parados aparentemente de modo ocasional na esquina; o
rapaz parecia entretido com um celular.
O
ônibus quase vazio se deteve na esquina, a cerca de vinte metros de onde o
caçador se encontrava. Apenas um vulto desceu: uma mulher metida em um grosso e
pesado casaco impermeável, carregando um monte de sacolas e embrulhos de
supermercado. Sozinha, meio cambaleante devido o peso das compras, sem reparar
em Julian, ela mal esperou que o lotação se afastasse e, meio curvada, caminhou
em direção a uma rua estreita nas proximidades. No meio da noite, sozinha, tão
indefesa, vulnerável. Uma vítima perfeita para aqueles malditos vampiros.
Julian
refreou a custo o desejo inato de ajudar a senhora com as sacolas. Conseguiu se
conter; sabia que poria tudo a perder se chegasse perto dela naquele momento.
Infelizmente ela tinha de servir de isca, pois, caso contrário, os chupadores
de sangue do Diabo não apareceriam.
Enquanto
a mulher caminhava o mais rapidamente que podia para chegar logo em casa,
Julian, observando de longe e tomado de impaciência, aguardava que os atacantes
surgissem para que ele cumprisse sua missão logo. Se corresse, talvez ainda
pudesse alcançar os rapazes no Hurricane e
tomar com eles uma cerveja. O Hurricane era
o tipo de bar que atraía inexplicavelmente os caçadores da Ordem, talvez pelo
ambiente bem decorado, onde podiam ouvir boa música e degustar uma bebida com
os amigos, ou talvez porque aquele era um estabelecimento onde todo e qualquer
tipo de informação sobre o Reino das
Sombras era trocado como selos por colecionadores entusiásticos. Seja como
for, Julian queria estar lá; o Hurricane era
seu destino certo após a realização daquela tarefa.
Então,
algo mudou. Julian sabia, seus instintos de caçador estavam alerta, e seus
sentidos afinados lhe indicavam a presença inimiga. Sinais quase imperceptíveis,
que jamais escapariam ao olhar perspicaz do jovem soldado. A temperatura caindo
dez graus. Luzes dos postes falhando simultaneamente. Um odor fino e
desagradável flutuando na noite. Algo mudava no ar, uma espécie de eletricidade
malévola se condensava numa atmosfera repulsiva onde o ataque ia ser desferido.
Julian não precisou de mais nada para que a certeza varresse seu bravo coração:
os demônios bebedores de sangue estavam ali. Por isso, ele preparou-se.
Logo
adiante, a mulher carregada de compras também pressentia algo ruim na noite, um
gemido baixo e agourento trazido pelo vento a fazia apertar o passo o máximo
que podia sem derrubar todas as sacolas. A rua deserta e silenciosa subitamente
parecia ter se enchido de sussurros fantasmagóricos. As sombras se
transformaram em espectros assustadores que percorriam as paredes das casas
silenciosas, projetados contra a garoa noturna pela luz amarela e mortiça dos
postes. A dança das sombras causava medo no coração daquela senhora, e ela não
via a hora de estar em casa. Sem que ela percebesse, um vulto alto surgiu às
suas costas, veloz a ponto de se tornar um borrão, e silencioso como uma alma
penada. Num instante a sombra não estava ali, e no outro já estava, como se
tivesse brotado das entranhas da terra. Observava as costas da mulher receosa
que rumava para casa. O sombrio recém-chegado abriu a boca e disse com voz
gutural, nada semelhante ao timbre de um ser humano:
-
Boa noite, senhora. Tem fogo?
Estremecendo
de susto, a mulher voltou a cabeça rapidamente e olhou de relance para seu
estranho interlocutor, o qual se aproximara sorrateiramente e por isso não fora
notado.
-
Desculpe, mas eu não fumo. – respondeu ela com voz trêmula, dando a conversa
por encerrada enquanto buscava se afastar ligeiro do desconhecido.
-
Na verdade, eu também não. – quando o homem respondeu, já estava ao lado dela.
Como
podia ser aquilo? Movera-se a uma velocidade sobrenatural para alcançá-la.
Levando outro susto, a mulher olhou para o sujeito ao seu lado e largou as
sacolas, que se esparramaram pela rua molhada. O medo apertava seu coração, que
pulsava acelerado. Abafando um grito de horror com a mão, ela recuou pé por pé,
afastando-se sem dar as costas. De repente, esbarrou em algo. Ao se virar,
constatou ser outro indivíduo, tão estranho quanto o primeiro, barrando-lhe o
caminho. Ofegante, de olhos arregalados, ela começou a recuar de ré em outra
direção, sem dar as costas para os estranhos, e então tropeçou em um terceiro
sujeito.
Tentou
correr, mas esse último a empurrou, fazendo-a cair pesadamente no meio da rua,
indefesa e em pânico.
-
Quem são vocês? O que querem? – balbuciou ela, agora com as lágrimas correndo
livremente pelo rosto ainda bonito, a despeito da idade – Olha só, não precisam
me machucar, na minha bolsa tem dinheiro e...
-
Calada. – rosnou o primeiro raivosamente – Não é dinheiro que queremos. Você
tem algo muito mais interessante para nós.
Meio
sentada na rua úmida pela garoa, a mulher percebeu que seus interlocutores eram
mais sinistros do que esperaria. Homens com roupas escuras, muito pálidos, com
olhos negros como piche, que brilhavam de modo bestial, ocupando toda a órbita,
como globos oculares de um assassino psicopata. Quando esbarrara neles, sentira
que sua pele era fria como a de um cadáver. E agora ela estava ali, acuada
entre os três como um coelho apavorado, enquanto eles a fitavam da mesma
maneira que raposas olhariam para um frango.
Os
estranhos haviam se aproximado sem produzir qualquer tipo de ruído, pois ela
tinha uma audição muito boa e estava certa de não ter ouvido qualquer som de
passos. Os sombrios recém-chegados abriram a boca e exibiram seus caninos
longos e pontiagudos. Não eram dentes de homens, eram dentes de lobo. E aqueles
não podiam ser homens, só podiam ser demônios noturnos que a vinham matar.
Em
silêncio, sabendo-se em seus últimos momentos e prestes a experimentar uma morte
horrenda e dolorosa, a mulher abaixou a cabeça. Com o rosto banhado em pranto,
iniciou uma oração silenciosa enquanto os monstros riam e arreganhavam as
presas à sua volta. A mulher mal tinha começado a rezar quando a voz possante e
autoritária de Julian invadiu a rua, tomada por um tom quase jovial de tão
cínico:
-
Seres imundos, malditos e covardes! É por isso que cada noite gosto mais de
mandá-los de volta para o Inferno.
Continua...
Danilo Alex da Silva
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