sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Ossos do Ofício


“Você vai mostrar-lhes todos os seus truques
Suas armas são uma lenda
A corrente de aço santo
E o escudo sagrado”

(Vampire Killer – Battleroar)





Quando estacionou sua imensa motocicleta nos arredores da igreja de São Carlos, Julian imaginou que aquela fosse apenas mais uma noite de trabalho qualquer. Girando a chave na ignição, viu o robusto tanque de combustível diante de si estremecer. Julian então sentiu a trepidação da monstruosa moto, e ouviu o motor possante desligar-se com um ronronado. O potente farol apagou-se repentinamente, como um olho sonolento que se fecha na escuridão.
Julian consultou o relógio e constatou que passavam das vinte e duas horas. Parecia pura rotina: recebera uma mensagem dos informantes da Ordem, a qual explicava a aproximada localização dos objetivos. Seus alvos se moviam rápido, tinham apenas a noite para si, mas eram presos a certas regras, padrões, horários e locais. Era inerente à sua natureza animalesca. A mesma natureza paradigmática que, embora fossem inimigos ferozes e ardilosos, os fazia vulneráveis e previsíveis para profissionais como Julian.
Aqueles alvos estavam ousando muito em caçar perto de uma igreja, por dois motivos: primeiro, porque nos arredores de igrejas sempre havia grandes quantidades de Observadores da Ordem. Segundo, porque solo santificado os enfraquecia, e a maioria deles preferia evitar locais como aquele. Então, para Julian só havia duas respostas: ou as criaturas eram jovens demais e desconheciam o perigo que corriam por estar naquele lugar, ou eram velhas e poderosas demais para se importar com detalhes como aquele.
Correndo os olhos castanhos ao redor, e tendo certeza de que a rua estava deserta, o jovem motociclista pela milésima vez enfiou a mão por dentro da jaqueta de couro preta, própria para pilotagem, a fim de conferir se seus instrumentos de trabalho estavam onde deveriam. Tranquilizou-se ao sentir que estavam. Seu trabalho não permitia erros; nunca havia uma segunda chance. Ou se cumpria a tarefa com perfeição, ou se pagava o preço, que era altíssimo. Por isso ele era tão sistemático, o que o tornava tão bom no que fazia.
Algumas horas antes, no quarto que lhe haviam destinado no quartel-general secreto da Ordem, lenta e cuidadosamente ele havia amolado seu punhal de prata e afiado uma dúzia de estacas de madeira embebidas em água benta; também tinha desmontado, limpado e recarregado sua pistola automática de treze tiros, modificada para disparar balas banhadas a prata,  com o sinal da cruz entalhado em suas pontas. Uma arma formidável de cor preta e cuja coloração negra era fosca, para evitar que brilhasse e despertasse a atenção dos demais ao ser empunhada.
 Ainda por dentro da jaqueta e numa tira de coro presa na coxa, ele trazia algumas armas brancas leves e de fácil manuseio, como adagas e shurikens, aquelas lâminas japonesas com pontas, próprias para arremesso, chamadas popularmente de “estrelas”, amplamente utilizadas pelos ninjas do cinema. Tanto as adagas quanto os shurikens eram feitos de prata, porque esse metal, de uma inexplicável e mística maneira, era letal para seus oponentes. Aquelas armas eram grandes recursos nas mãos do jovem Julian, pois ele as atirava com maestria; habilidade adquirida durante muitos anos de treinamento, o qual se iniciara quando ele era apenas uma criança, vinte anos antes.
Quando ainda era um bebê, Julian foi doado a um orfanato pela mãe que não tinha condições de criá-lo. Ele não tinha ressentimentos de sua progenitora; pelo contrário. Era grato por ela lhe ter dado a oportunidade de nascer. Nem todas as mulheres despreparadas para a maternidade agiriam como ela. Por isso, Julian sentia-se grato por estar vivo. Mesmo sem nunca ter visto o rosto da mãe, ou sequer saber algo sobre ela, lembrava-se dela em cada oração como forma de agradecimento pelo presente da vida. Sim porque, graças a ela, Julian podia salvar pessoas.
Fora criado até os cinco anos nesse orfanato. E então, a Ordem o descobriu. Revelou-se um garoto com um fantástico coração altruísta, muito inteligente e apto, capaz de se tornar um soldado como poucos. Julian viu-se acolhido por uma fraternidade mística e secreta, que combatia perigos inimagináveis à maioria dos seres humanos. O Mal além dos olhos. Inimigos sobrenaturais. Aquilo que muitos consideravam histórias da carochinha era o ganha-pão do jovem Julian. Localizar. Caçar. Destruir.
Seres que saíam à noite para tirar vidas humanas eram o alvo do poderoso guerreiro. Cresceu familiarizado com armas brancas e de fogo. Intenso treinamento físico para disciplinar o corpo e a alma. Artes marciais diversas para transformar o corpo resistente e viril em uma máquina de matar monstros. Aulas teóricas e práticas de estratégia e como localizar e liquidar as crias das trevas. Treino rigoroso em infiltração, furtividade, disfarce.
 Muito estudo sobre várias ciências, culturas, literaturas, para que soubesse usar a arte da fala e da escrita para caçar, sobreviver, e escapar de alguma situação em que precisasse despistar seres humanos, tais como policiais. Instrução em valores éticos, morais e religiosos, o que contribuía para forjar a mente do guerreiro, moldar seu caráter e conscientizá-lo dos ideais supremos que deveria servir, sendo o principal amar e defender todos os seres humanos das criaturas infernais que brotavam no mundo quando a noite se avizinhava.
Enfrentando esse processo de preparação ao longo de anos, Julian finalmente foi submetido ao severo teste final. Depois disso, ritual de iniciação e um juramento sagrado que, uma vez proferido, o ligou para sempre à Ordem e aos seus novos irmãos. Esse era o Julian que a Confraria preparara. O gosto obsessivo por motocicletas, garotas e rock and roll ele adquirira por conta própria. E gostava imensamente de seu ofício, principalmente quando caçava alvos como os daquela noite. Vampiros. A Julian era muito gratificante eliminar aquela escória do mundo, resgatar pessoas das garras horrendas dessas sanguessugas infernais. Era morbidamente divertido finalizar com os vamps. Quase experimentava uma espécie de prazer culpado. A única parte ruim era aquela; permanecer de campana, morrendo de tédio e de frio.
Estava imerso nesses pensamentos quando um ônibus dobrou a esquina bufando e se aproximou, roncando ruidosamente dentro da noite gelada, cortada por uma garoa insistente e irritante que umedecia implacavelmente as ruas desertas. O imenso veículo passou por Julian, inundando fugazmente com sua claridade exagerada o jovem e sua motocicleta parados aparentemente de modo ocasional na esquina; o rapaz parecia entretido com um celular.
O ônibus quase vazio se deteve na esquina, a cerca de vinte metros de onde o caçador se encontrava. Apenas um vulto desceu: uma mulher metida em um grosso e pesado casaco impermeável, carregando um monte de sacolas e embrulhos de supermercado. Sozinha, meio cambaleante devido o peso das compras, sem reparar em Julian, ela mal esperou que o lotação se afastasse e, meio curvada, caminhou em direção a uma rua estreita nas proximidades. No meio da noite, sozinha, tão indefesa, vulnerável. Uma vítima perfeita para aqueles malditos vampiros.
Julian refreou a custo o desejo inato de ajudar a senhora com as sacolas. Conseguiu se conter; sabia que poria tudo a perder se chegasse perto dela naquele momento. Infelizmente ela tinha de servir de isca, pois, caso contrário, os chupadores de sangue do Diabo não apareceriam.
Enquanto a mulher caminhava o mais rapidamente que podia para chegar logo em casa, Julian, observando de longe e tomado de impaciência, aguardava que os atacantes surgissem para que ele cumprisse sua missão logo. Se corresse, talvez ainda pudesse alcançar os rapazes no Hurricane e tomar com eles uma cerveja. O Hurricane era o tipo de bar que atraía inexplicavelmente os caçadores da Ordem, talvez pelo ambiente bem decorado, onde podiam ouvir boa música e degustar uma bebida com os amigos, ou talvez porque aquele era um estabelecimento onde todo e qualquer tipo de informação sobre o Reino das Sombras era trocado como selos por colecionadores entusiásticos. Seja como for, Julian queria estar lá; o Hurricane era seu destino certo após a realização daquela tarefa.
Então, algo mudou. Julian sabia, seus instintos de caçador estavam alerta, e seus sentidos afinados lhe indicavam a presença inimiga. Sinais quase imperceptíveis, que jamais escapariam ao olhar perspicaz do jovem soldado. A temperatura caindo dez graus. Luzes dos postes falhando simultaneamente. Um odor fino e desagradável flutuando na noite. Algo mudava no ar, uma espécie de eletricidade malévola se condensava numa atmosfera repulsiva onde o ataque ia ser desferido. Julian não precisou de mais nada para que a certeza varresse seu bravo coração: os demônios bebedores de sangue estavam ali. Por isso, ele preparou-se.
Logo adiante, a mulher carregada de compras também pressentia algo ruim na noite, um gemido baixo e agourento trazido pelo vento a fazia apertar o passo o máximo que podia sem derrubar todas as sacolas. A rua deserta e silenciosa subitamente parecia ter se enchido de sussurros fantasmagóricos. As sombras se transformaram em espectros assustadores que percorriam as paredes das casas silenciosas, projetados contra a garoa noturna pela luz amarela e mortiça dos postes. A dança das sombras causava medo no coração daquela senhora, e ela não via a hora de estar em casa. Sem que ela percebesse, um vulto alto surgiu às suas costas, veloz a ponto de se tornar um borrão, e silencioso como uma alma penada. Num instante a sombra não estava ali, e no outro já estava, como se tivesse brotado das entranhas da terra. Observava as costas da mulher receosa que rumava para casa. O sombrio recém-chegado abriu a boca e disse com voz gutural, nada semelhante ao timbre de um ser humano:
- Boa noite, senhora. Tem fogo?
Estremecendo de susto, a mulher voltou a cabeça rapidamente e olhou de relance para seu estranho interlocutor, o qual se aproximara sorrateiramente e por isso não fora notado.
- Desculpe, mas eu não fumo. – respondeu ela com voz trêmula, dando a conversa por encerrada enquanto buscava se afastar ligeiro do desconhecido. 
- Na verdade, eu também não. – quando o homem respondeu, já estava ao lado dela.
 Como podia ser aquilo? Movera-se a uma velocidade sobrenatural para alcançá-la. Levando outro susto, a mulher olhou para o sujeito ao seu lado e largou as sacolas, que se esparramaram pela rua molhada. O medo apertava seu coração, que pulsava acelerado. Abafando um grito de horror com a mão, ela recuou pé por pé, afastando-se sem dar as costas. De repente, esbarrou em algo. Ao se virar, constatou ser outro indivíduo, tão estranho quanto o primeiro, barrando-lhe o caminho. Ofegante, de olhos arregalados, ela começou a recuar de ré em outra direção, sem dar as costas para os estranhos, e então tropeçou em um terceiro sujeito.
Tentou correr, mas esse último a empurrou, fazendo-a cair pesadamente no meio da rua, indefesa e em pânico.
- Quem são vocês? O que querem? – balbuciou ela, agora com as lágrimas correndo livremente pelo rosto ainda bonito, a despeito da idade – Olha só, não precisam me machucar, na minha bolsa tem dinheiro e...
- Calada. – rosnou o primeiro raivosamente – Não é dinheiro que queremos. Você tem algo muito mais interessante para nós.
Meio sentada na rua úmida pela garoa, a mulher percebeu que seus interlocutores eram mais sinistros do que esperaria. Homens com roupas escuras, muito pálidos, com olhos negros como piche, que brilhavam de modo bestial, ocupando toda a órbita, como globos oculares de um assassino psicopata. Quando esbarrara neles, sentira que sua pele era fria como a de um cadáver. E agora ela estava ali, acuada entre os três como um coelho apavorado, enquanto eles a fitavam da mesma maneira que raposas olhariam para um frango.
Os estranhos haviam se aproximado sem produzir qualquer tipo de ruído, pois ela tinha uma audição muito boa e estava certa de não ter ouvido qualquer som de passos. Os sombrios recém-chegados abriram a boca e exibiram seus caninos longos e pontiagudos. Não eram dentes de homens, eram dentes de lobo. E aqueles não podiam ser homens, só podiam ser demônios noturnos que a vinham matar.
 Em silêncio, sabendo-se em seus últimos momentos e prestes a experimentar uma morte horrenda e dolorosa, a mulher abaixou a cabeça. Com o rosto banhado em pranto, iniciou uma oração silenciosa enquanto os monstros riam e arreganhavam as presas à sua volta. A mulher mal tinha começado a rezar quando a voz possante e autoritária de Julian invadiu a rua, tomada por um tom quase jovial de tão cínico:
- Seres imundos, malditos e covardes! É por isso que cada noite gosto mais de mandá-los de volta para o Inferno.

Continua...

Danilo Alex da Silva


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