Pouco tempo depois,
chegou ao tal lugar. Estava escuro e deserto. Era um local no meio do nada,
cercado por solidão e sombras. Ouvia os grilos cantando e os sapos coaxando. O
vento frio da madrugada era impetuoso e agourento. Ricardo se dirigiu então para
a escada utilizada pelos turistas (e, em ocasiões como aquelas, por suicidas
também), para visitar a imensa ponte ferroviária. Tinha de vencer uma
infinidade de degraus, passando por vários patamares enquanto galgava pouco a
pouco a íngreme e aparentemente interminável escadaria.
Enquanto subia,
sentia o vento gelado sacudi-lo em sua magreza quase doentia. A friagem da
madrugada atravessava com facilidade sua velha e desbotada jaqueta camuflada do
Exército, tão inseparável como uma segunda pele. Apoiava-se no corrimão
enquanto subia, tentando não pensar em nada. Quando finalmente atingiu o topo
da escada, viu-se andando solitariamente ao longo da passarela que corria
paralela aos trilhos, separada dos mesmos por grades metálicas de proteção, as
quais batiam no ombro de um homem alto. Elas balançavam suavemente quando
envolvidas pelo vento, o qual passava zunindo por elas. Lançando um
olhar desolado ao redor, Ricardo parou subitamente de caminhar e permaneceu
ali, imóvel, aspirando profundamente os aromas da fria e silenciosa noite.
Seus olhos até
então não expressavam emoção alguma; apenas vazia indiferença, frio
desinteresse. Uma coruja agourenta piou ao longe. Quase em seguida, ele jurou
ter ouvido o som de uma ave pouco comum naquela região: uma gralha. Ou corvo,
como era chamado o pássaro em outros lugares. Estremeceu. Seria o frio? Ou o
mau presságio? Achou que estava louco; não poderia haver um corvo por ali.
Apoiando a cabeça nas grades, olhou para baixo e imaginou quantas dezenas de
metros o separavam do chão quando saltasse. Provavelmente uma centena. Talvez
mais. Ao fundo, as serras que o trem contornava apitando, sacolejando
implacavelmente sobre os trilhos maciçamente construídos ali tantos anos antes.
Sentiu-se repentinamente só, perdido e sozinho. Quase pensou em voltar atrás.
Todavia, seguiu adiante com seu louco intento.
Com facilidade
impulsionou seu corpo magro e leve para o alto e escalou a grade de proteção
que o separava do negro abismo. Em poucos instantes, estava sustentando-se apenas
pelos calcanhares na base da grade, com as costas apoiadas na mesma, balançando
perigosamente sobre o precipício. Vivenciando os últimos momentos nesse mundo
que apenas o decepcionou. Derradeiros segundos de vida para um homem sem
esperança. No fundo, talvez já estivesse morto e não soubesse.
“Que seja anátema...”
Surpreendeu-se com a
forma repentina e inexplicável que essa frase despontou em sua mente já
embotada e vencida por pensamentos autodestrutivos. Parecia a voz da
consciência falando, num último e desesperado esforço para fazê-lo desistir
daquela insanidade; buscando convencê-lo a desistir de desistir.
Anátema... Uma
palavra que definia alguém rejeitado pela igreja e repudiado por Deus, mas,
principalmente, se referia a alguém amaldiçoado. Alguém sem futuro, fadado à
morte, condenado irremediavelmente à destruição. Exatamente o que Ricardo Lemos
era naquele momento. Anátema. Um homem sentenciado à escuridão sem volta. Moveu
a perna direita à frente, e seu pé pendeu fantasmagoricamente sobre o abismo.
Era hora de acabar com tudo aquilo, bem ali, naquele momento. Só precisava se
soltar. Apenas deixar a dor ir. Apenas fugir. Apenas cair.
Agora sim o coração
martelava no peito. Os olhos arregalavam-se encarando a iminência do que estava
prestes a acontecer. O suor brotava nas têmporas, na testa, nas axilas.
Respirava forte e com dificuldade, tentando se controlar. A adrenalina
eletrizava seu corpo embriagado, agora precariamente lúcido devido à situação
crucial. Quando finalmente se decidiu, e inclinou-se para frente, o vendo
soprou mais forte e Ricardo encheu-se de medo. No instante final, lembrou das
faces amadas de sua esposa e filha, e resolveu que desejava vê-las mais uma
vez. Decidiu que queria viver. Esse é o instinto mais básico do ser humano: sobreviver.
Existir. É para isso e por isso que o homem vem lutando desde o limiar dos
tempos, desde a aurora do mundo. Ali não cabia a morte, ele pensou.
No último segundo, o
vento fez Ricardo mudar de idéia, ao mesmo tempo em que o desequilibrava.
Perdendo o apoio uma fração de segundo depois de soltar-se, o homem viu o vento
tentar barrar sua tentativa de agarrar-se à vida da qual pensava desistir.
Por um milésimo de
segundo o qual pareceu durar uma sofrida eternidade, Ricardo Lemos bracejou
angustiosamente à procura de apoio e oscilou mortalmente para o precipício.
Quando estava prestes a mergulhar na escuridão, caindo como um fardo, girou o
quadril e sua mão direita agarrou a base da grade, de modo que o homem ficou
balançando arquejante acima das trevas famintas, que ansiavam por engoli-lo
imediatamente.
Precisou esperar que
o vento diminuísse seu soprar furioso para que começasse a árdua subida, seus
braços tremendo dolorosamente. Havia se esfolado todo ao quase cair e,
principalmente, na subida. Passou por cima da grade e tombou do lado de dentro,
de bruços sobre o chão cimentado da passarela. Ficou ali por alguns momentos,
se recompondo, respirando fundo, sentindo-se plenamente vivo. O sangue pulsava
em suas veias irrigadas de álcool.
Quando finalmente se
viu em condições, se levantou e desceu correndo a gigantesca escadaria, apoiado
no corrimão e saltando alguns degraus, tomado por uma alegria quase infantil.
Queria rever sua família. Queria largar a bebida e a depressão. Queria ser
alguém melhor. Queria passar uma borracha em seu passado sombrio e construir a
partir dali uma vida melhor e luminosa para si, e para aqueles que o cercavam.
Terminando de descer a escada, continuou correndo euforicamente de volta para
casa.
Esbaforido, em pouco
tempo alcançou as ruas do bairro vizinho àquela famigerada ponte. Pensava
encontrar algum telefone público e chamar um táxi ou talvez, um
moto-táxi. Queria estar em casa o quanto antes. Sempre correndo em direção à
segura claridade dos postes de iluminação pública, acabou descuidando-se.
Esqueceu que era madrugada, e que estava em um dos bairros mais perigosos da
cidade. Não percebeu a sombra que o observava há alguns momentos, e que se
destacou da sombra de uma frondosa árvore assim que ele passou. Seguindo-o.
Finalmente saindo um
pouco de seus devaneios, Ricardo ouviu passos rápidos atrás de si e virou-se
bruscamente, balançando os braços. Seu perseguidor, um jovem franzino metido em
uma blusa com capuz levantado, assustou-se com o gesto. Provavelmente era um
viciado querendo dinheiro para comprar drogas. Trazia na mão um revólver e
nervosamente se preparava para abordar a vítima quando foi surpreendido.
Achando que Ricardo
estava reagindo, o gesto foi instintivo: o dedo do magrelo acionou o gatilho.
Um estampido seco. Um homem caindo no chão frio. O assassino revistou a vítima
rapidamente, pescou do bolso da jaqueta a carteira e fugiu do local,
abandonando Ricardo ali sangrando, sozinho, morrendo. Um buraco considerável no
meio do peito.
— Estou morrendo! —
balbuciou ele vendo suas mãos empapadas de sangue, e completou com um suspiro
quase resignado — Anátema...
Ouvindo o tiro,
alguns vizinhos acordaram. Algumas luzes se acenderam nas casas próximas.
Pessoas apavoradas cochichavam dentro de casa, procurando o telefone para
avisar a polícia, os bombeiros, qualquer um. Ricardo sabia que o socorro viria,
disso não tinha dúvidas. Por outro lado, sabia que seria tarde demais. As vistas
escureciam. Tossiu sangue. O pulmão ardia em brasa, como se queimado pelo fogo
do inferno.
Num flash, viu o
rosto de Liane banhado em lágrimas. Queria tê-la amado mais, cuidado mais dela.
Divisou também o rosto da filha e lamentou não poder vê-la crescer. Percebeu
com tristeza a ironia de tudo: naquela noite, não fora ele quem escolhera a
morte. Não; fora a morte que escolhera Ricardo. E ninguém tapeia a morte. Que
seja anátema, Ricardo.
Nos últimos segundos
que lhe restavam ali naquele chão frio, respirando penosamente, à beira de
iniciar sua jornada ao outro mundo, Ricardo ouviu novamente aquilo que julgou
ser o pássaro agourento tão pouco usual em sua região. Quase sorriu em meio às
lágrimas e ao sangue, morrendo sozinho. Seu último pensamento nesta vida
carregou- o aos anos de escola, quando estudava literatura. Um verso de um
poema que gostava muito. Como era mesmo? Ah sim, lembrou-se e recitou baixinho
enquanto seus olhos pesavam, fechando-se sozinhos:
“E o corvo disse:
Nunca mais!”
Fim
Meus queridos, me perdoem o sumiço! Ando meio
ocupado ultimamente, e o tempinho que tenho tento dedicar ao livro no qual estou
trabalhando, a saga de Sean Ridell, o mesmo Renegado que criou vida neste blog,
graças ao incentivo de vocês.
Agradeço a companhia de sempre, espero que tenham
gostado do conto. Vou estar meio sumido às vezes, mas sempre lembro de vocês,
vou dar um jeito de sempre aparecer para postar algo aqui. Vocês merecem.
Boa semana!
Abraços
Danilo Alex