quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Dilema de Dean Winchester - Parte IV




Conforme esperava o tempo passar, aguardando o momento de agir, Dean Winchester sentou-se na beira de sua cama de hotel. Sozinho no quarto, pacientemente dedicou-se ao minucioso processo de limpar cada uma de suas armas.
Testava molas. Ele as desmontava, lubrificava peça por peça, limpava o cano delas com o que parecia uma pequena bucha, erguia as armas desmontadas e, fechando um olho como um homem que fizesse pontaria, olhava através do cano, a fim de certificar-se de que removera toda e qualquer sujeira, bem como para saber se o uso frequente não havia causado danos; se fosse esse o caso, seria necessário realizar os devidos reparos, já que uma arma de fogo avariada pela utilização pode ter seu desempenho comprometido, o que seria letal para qualquer um, principalmente para um caçador. Depois de limpar e lubrificar cada arma, ele a municiava, acionava a trava de segurança daquelas que possuíam, e colocava a arma de lado, repetindo todo o processo com a próxima.
Meticuloso como um barbeiro afiando sua navalha ou como um músico de orquestra afinando seu instrumento, Dean Winchester cuidava de seu arsenal com a perícia de um fuzileiro naval. Orgulhava-se de nunca uma arma sua ter emperrado na hora de um tiroteio. Na expressão concentrada e nos seus olhos atentos percebia-se a maior das habilidades que herdara de John Winchester: o profissionalismo.
Na verdade, Dean preparara todo seu arsenal como sempre fazia, por disciplina e precaução, embora soubesse que, para o confronto daquela noite, ele precisaria de apenas uma arma: Sua poderosa escopeta calibre doze de cano duplo serrado, carregada com cápsulas de sal grosso, munição que ele e o pai desenvolveram especialmente para as caçadas que envolvessem fantasmas. Estando com os canos serrados, a potente arma tinha maior dispersão no disparo (é exatamente o que se necessita ao combater um fantasma, a precisão não é tão importante porque o tiro é praticamente “à queima-roupa”), era mais fácil de transportar e esconder sob o casaco, por exemplo, e oferecia mais praticidade porque pode ser empunhada com apenas uma mão. Além da escopeta, no porta-malas do Impala também não poderiam faltar uma pá, saleiro grande, próprio para churrasco, um galão médio de gasolina e um isqueiro. O ritual era sempre o mesmo quando se caçava um espírito vingativo: encontrar a cova, cavar, salgar e queimar o corpo. No cartucho da arma, o sal grosso repele a aparição. No saleiro para churrasco, serve para purificar o corpo. O fogo serve como purificador definitivo, pois o processo crematório liberta o espírito atormentado para o descanso eterno. O problema é que muitas vezes o fantasma aparecia para tentar impedir o caçador. Por isso Dean portava sua escopeta cano duplo serrado, parecida com aquelas que seus heróis dos filmes de faroeste portavam.
Exatamente quinze minutos passados da meia-noite, Dean deixou o quarto de hotel carregando suas “ferramentas de trabalho”, entrou no Impala e dirigiu até o cemitério. Chegando lá, localizou a cova e pôs-se ao trabalho: pendurou a jaqueta marrom na lápide, enfiou a curta escopeta na cintura, empunhou a pá e começou a cavar. Era uma noite sem lua e de poucas estrelas, e a cova de Jayden Alyssa Grace situava-se junto à base de uma frondosa árvore, o que reduzia bastante a já escassa luminosidade. Por esse motivo, Dean entrara com a Baby no campo santo, dirigindo cuidadosamente ao longo da via própria para cortejos, a qual serpeava entre as numerosas lápides e sepulturas.
 Deixara o carro apontado para o túmulo de Jayden com os faróis ligados, a fim de iluminar seu trabalho, enquanto ele cavava e fazia o que tinha de fazer. Banhado pela potente luz sépia de seu Impala, Dean descansou por um momento, enfiando a pá na terra e apoiando-se nela depois de enxugar o suor da testa. Olhou ao redor, vendo-se cercado por trevas e silêncio. Grilos cricrilavam na escuridão e uma coruja solitária piou ao longe. O silêncio mortal apenas foi quebrado pelo som rascante da pá revirando a terra tão logo o caçador voltou ao trabalho. Instantes mais tarde, a pá atingiu uma superfície de madeira. Na borda da cova, Dean removeu com a ferramenta a tampa do esquife. O cheiro que surgiu não era agradável. A visão do esqueleto também não.
Virando o rosto para evitar ao menos em parte o mau cheiro, Dean muniu-se do saleiro e sacudiu-o repetidamente acima da cova, espalhando o tempero de alto a baixo sobre o caixão e os restos mortais daquela que um dia fora uma bela jovem.
Depois de salgar o corpo, pôs de lado o saleiro, despejou uma quantidade considerável de gasolina sobre o caixão aberto e procurou no bolso da calça o isqueiro. Sacou-o e o acendeu. Estava prestes a queimar o corpo e finalizar o serviço quando, o que parecia ser um trabalho tranqüilo, começou a mudar.
Os faróis da Baby inesperadamente piscaram e depois se apagaram; Dean estaria mergulhado na escuridão total não fosse o isqueiro aceso em sua mão. O caçador sentiu a temperatura cair dez graus. Uma brisa sinistra e repentina soprou forte dentro da noite, extinguindo a chama de seu isqueiro.
Trevas.
Ele se preparou para o pior.
Assim que seus olhos se habituaram à falta de luz, parado dez metros à sua direita o rapaz visualizou o assustador espectro de Jayden Alyssa Grace encarando-o fixamente com ódio mortal em seus olhos negros e assassinos.
— Ei, olá! — saudou Dean aparentando calma extrema — Estava me perguntando se você não ia aparecer para o churrasco. Chegou bem a tempo.
O fantasma continuou encarando-o furiosamente, sem se mexer. Por vezes sua imagem tremeluzia, como uma lâmpada vitimada por falha elétrica ou uma projeção holográfica com defeito.
— Jayden Alyssa Grace — falou Dean e depois acrescentou com seu senso de humor característico, mesmo em face dos piores perigos — Seu último nome, Grace, foi inspirado naquele hino, Amazing Grace? — à medida que falava, o jovem Winchester deslizava lentamente a mão até a arma na cintura.
No momento em que a assombração o atacou, ele ergueu rapidamente a escopeta e puxou o gatilho que disparava apenas um tiro de cada vez. A arma dispunha de dois gatilhos: um para disparos em sucessão, e um para desfechar dois projéteis ao mesmo tempo.  Percebeu que sua escolha de desferir um tiro de cada vez fora acertada ao entender a artimanha do espectro, que desapareceu no momento em a arma trovejou escoiceando na mão do atirador. O tiro alvejou o nada. Jayden reapareceu atrás de Dean antes que ele pudesse esboçar reação e o empurrou brutalmente com as duas mãos.
O caçador sentiu os pés saírem do chão e viu-se projetado violentamente contra o tronco da árvore, ao qual sentiu as costas se chocarem. Uma explosão aguda de dor. Uma fisgada na altura das costelas. Achou que alguma delas tinha se partido quando se estatelou. Perdeu o fôlego. Sentiu a arma firmemente presa na mão direita, mas percebeu que o isqueiro escapulira de seus dedos. Praguejando, procurou se levantar.
As costas ardiam. A respiração era difícil. Seus olhos não distinguiam quase nada na escuridão. Tinha que achar o isqueiro. Percebeu uma movimentação sobrenatural um pouco à frente e levantou a escopeta. Sem o isqueiro, tudo aquilo seria em vão. Dispunha de apenas mais uma bala. Depois desse tiro, seria preciso recarregar a arma, introduzindo mais duas cápsulas na câmara. Isso exigiria tempo, um tempo que não tinha. Se recarregasse a arma, não conseguiria achar o isqueiro. Precisava optar. Deveria gastar a última bala com sabedoria.
“O que papai faria se estivesse aqui no meu lugar?” – perguntou-se.
Teve uma ideia. Jayden avançava novamente em sua direção, levitando com rapidez. Dean ergueu a escopeta e bradou:
— Gosta de empurrar os outros, não é, sua maldita? Sente só o “empurrãozinho” que vou te dar agora.
O espírito parecia determinado a acabar com seu caçador. Avançou com uma careta de ódio. Sem esperar mais, Dean apertou o gatilho. A escopeta rugiu com ferocidade em sua mão. A língua de fogo provocada pelo tiro rasgou a noite, clareando por um curto instante a área diante do rapaz. A nuvem de sal grosso dispersada repeliu Jayden, incapacitando-a temporariamente. Antes que a escuridão voltasse a reinar por completo, Dean Winchester avistou o isqueiro caído a poucos passos da cova aberta.
Tinha pouquíssimo tempo antes de o fantasma voltar. Em questão de segundos Jayden ressurgiria. Sem mais esperar, o jovem caçador correu e saltou, mergulhando na escuridão, seguindo o instinto em direção ao último lugar onde avistara o isqueiro.
No exato momento em que seus dedos se fecharam ao redor do precioso objeto, uma força sobrenatural fez com que Dean se virasse de barriga para cima. Dedos gelados comprimiram sua garganta ferozmente, garras tenazes da morte tentando esmagar sua traqueia, obstruindo a passagem de ar, que já era dificultada pela dor extrema na altura das costelas. Debatendo-se vigorosamente, lutando para se desvencilhar, o rapaz começou a sentir a visão embaçar, mas, mesmo através da névoa, divisou o rosto aterrador de Jayden Alyssa Grace flutuando acima dele.
Ele sentiu que sua vida se esvaía. Se não reagisse, em poucos instantes estaria tão morto quanto Jayden.
À beira de perder a consciência, esticou-se ao máximo, acendeu o isqueiro e alcançou a borda da cova. O objeto caiu aceso dentro do buraco, aterrissando em cheio no caixão. Uma pequena centelha encontrou a gasolina e o fogo se alastrou rapidamente. Logo todo o esquife foi tomado pelas chamas, e corpo sofreu a devida cremação.
Dean Winchester viu o fantasma acima de si assumir um tom laranja-avermelhado; Jayden jogou a cabeça para trás e soltou um grito pavoroso de dor. Depois, se dissipou, transformando-se em uma nuvem de infinitas fagulhas ardentes, idênticas àquelas que surgem quando atiçamos carvão em brasa numa lareira.
A temperatura voltou ao normal e os faróis do Impala se acenderam, como se fossem olhos sonolentos na escuridão.
Caído de barriga para cima na beira da cova, ofegando, mais morto do que vivo, Dean exclamou com voz rouca:
— Cara, eu preciso de férias.

***

Continua...


Danilo Alex da Silva


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