Ele
observava o fraco movimento de carros através da vidraça. Olhava para a rua
enquanto a mente vagava incansavelmente pelos caminhos insondáveis do nada.
Tinha muito para resolver. Uma dúvida torturante o castigava interiormente. Um
jovem saudável como ele não deveria ter de carregar o peso de tanta
responsabilidade sobre seus ombros. Basicamente, salvar o mundo todos os dias —
ou melhor, todas as noites — era o seu malfadado ofício. Aos vinte seis anos de
idade, Dean Winchester estava no meio
de um dilema. Precisava de uma luz. Qualquer uma.
Em uma lanchonete quase vazia em algum lugar do interior do Colorado, optara
por sentar próximo da janela, que era a única coisa a separá-lo da rua escura,
regada por uma chuva miúda insistente. De onde estava, Dean podia ver
perfeitamente a grade cromada do radiador de seu belíssimo Impala 67. Imóvel diante do estabelecimento, para o qual estava
posicionado frontalmente na área de estacionamento preferencial para fregueses,
o carro, negro como a noite, aguardava seu dono para pegarem a estrada mais uma
vez.
O
jovem Winchester detivera seu fabuloso automóvel ali cerca de quarenta minutos
antes. Fizera uma parada para abastecer a “Baby”
e, como o posto de gasolina era coligado à lanchonete, resolveu esticar até lá
para forrar o estômago. Não foi uma escolha a qual pudesse levantar
arrependimentos, pois tivera uma agradável surpresa ao descobrir na garçonete
que o atenderia uma bela loira de olhos verdes, de corpo escultural, seios
fartos, bem a seu gosto. Devia ter uns vinte e dois anos, no máximo.
Após
saudá-lo e se apresentar como Myla, a
atendente anotou o pedido. Pouco depois, esboçando um sorriso sedutor, ela
colocou diante de Dean um cheeseburger duplo
bastante acebolado e uma Budweiser, a qual ele bebia agora
diretamente do gargalo enquanto fitava pensativamente o escasso trânsito local.
Concentrou-se em seguida na tarefa de dar uma grande mordida no apetitoso
sanduíche. Meneando a cabeça com um gesto de aprovação, abocanhou o lanche uma
segunda vez, dizendo para si mesmo de boca cheia:
—
Que maravilha! Eu tava cheio de fome!
Em
dado momento, sentiu um olhar pesar sobre si e levantou seus olhos. Percebeu
que Myla, mesmo atrás do balcão, atendendo outros clientes, sempre arranjava
alguns instantes para encará-lo fixamente. Dean devorava o sanduba, e Myla
devorava Dean com os olhos. A paquera da garota era ostensiva, ela nem se preocupou
em ser discreta. Com a bochecha inchada devido o excesso de comida na boca,
Dean sorriu para a jovem, que sorriu de volta.
—
Cheeseburger no capricho, garçonete
bonita... Acho que essa noite vou me dar bem!
A
possibilidade de diversão o animou, ajudando-o até mesmo a esquecer
temporariamente seu duro dilema. Minutos mais tarde, depois de ter devorado por
completo seu hambúrguer e esvaziado sua cerveja, fez sinal para a bela jovem, a
qual se aproximou imediatamente.
—
Estava ótimo, querida. Bonzão mesmo. Você merece uma boa gorjeta pelo
atendimento. Agora, traga a conta para mim, sim?
—
Gostaria de algo mais? — ela indagou com uma piscadela maliciosa.
Ao
notar as intenções da moça, Dean Winchester esboçou seu característico sorriso
safado. Inclinando-se para frente e apoiando os cotovelos na mesa, olhou para
ela de modo sedutor. Limpando a garganta, disse sem rodeios:
—
Bem, na verdade, sim. Sabe, eu adoraria uma bela de uma sobremesa, mas o
problema é que não sei se você está incluída no cardápio.
Rindo
ela, respondeu:
—
É, realmente não faço parte do menu.
Porém, acho que podemos resolver isso depois do meu turno. Que tal? Saio em uma
hora.
Dean
consultou seu relógio de pulso. Passavam cinco minutos das vinte e três horas.
—
Uma hora, heim? Ok, boneca. Não vou a lugar algum, pode apostar. A propósito,
meu nome é Dean Winchester.
—
Encantada, Dean. Trago a conta em um minuto.
O
jovem caçador pagou em dólares. Dinheiro vivo. Seu “dinheiro suado”, como
costumava chamar a grana obtida em bilhar. Ao pensar nisso, seu rosto se
iluminou. Ainda tinha uma hora pela frente, e precisava encontrar uma maneira
de matar o tempo. Olhou para as mesas de bilhar. Uma estava vazia. A outra era
circundada por três jogadores soturnos. Dean esfregou as mãos. Algumas rodadas
de sinuca não fariam mal.
Aproximando-se,
indagou:
—
Cabe mais um aí nesse jogo?
Foi
aceito. Empunhou o taco. Usou giz para polir a superfície da ponta do mesmo. Inclinou-se
e se preparou para jogar. Desferiu a tacada certeira. Encaçapou a bola
desejada. Ouviu o resmungo dos outros jogadores e sorriu. Aquilo não era um
jogo, era um massacre. Dean Winchester se mostrava imbatível no bilhar.
Aprendera a jogar com o pai. “Não se pode
pagar tudo com cartão de crédito fraudado.” — sempre dizia John, e
explicava: “Dinheiro às vezes é
imprescindível durante as investigações que precedem nossas caçadas. Dinheiro
compra informações. Nada abre tantas portas como as boas e velhas verdinhas
americanas. Por isso, vamos jogar bilhar e ganhar grana.”
Sam
detestava sinuca. Interessava-se mais por outras coisas. Coisas que não eram
úteis para caçadores. Ele e o pai já haviam discutido por causa disso. Dean
presenciara brigas terríveis entre os dois. Agora, o pai estava desaparecido. E
Sammy tinha ido embora há quase dois anos. Jurara não mais caçar. Nunca
mais. Queria fazer faculdade. O pai
dissera que se ele fosse não precisava voltar. Sammy não voltou.
Semanas antes, John havia se separado de
Dean, incumbindo seu filho mais velho de resolver um caso de vodu em Nova Orleans, enquanto ele
próprio seguia para Jericho, na
Califórnia, onde, numa estrada, em um trecho de oito quilômetros, homens
estavam desaparecendo inexplicavelmente havia quase duas décadas. O carro do
último fora encontrado, mas o motorista, nunca. John Winchester partira para
investigar esse caso e não dera mais notícias. Não atendia nenhum dos
celulares, não deixava mensagens. Sumira.
Resumindo:
Dean estava sozinho.
Sentia
que o pai estava em perigo. Seus instintos apurados de caçador, que raramente
falhavam, lhe diziam isso. Talvez pudesse até mesmo estar... (morto?) Nem queria
pensar numa coisa dessas. John precisava dele. Dean sabia o que fazer. Tinha
que ir procurar o pai. Mas não queria fazer isso solitariamente. E também
relutava em ir pedir ajuda ao irmão mais novo. Nisso consistia seu terrível
dilema.
Rodeando
a mesa forrada com pano verde, ele usou novamente o giz na ponta do taco e
posicionou-se, buscando o melhor ângulo para a próxima jogada. Fez um esforço
para afastar Sammy dos pensamentos por ora. Diante de seus olhos esverdeados
dançaram imagens vívidas do pai. Gostaria que John estivesse ali com ele,
depenando aqueles vacilões metidos a mestres do bilhar, os quais, na verdade,
mal sabiam segurar o taco. John e seu filho Dean costumavam chamar aquilo de “Caçar patos.” Tinham bolado até uma estratégia
para atrair “patos” e ganhar deles um bom dinheiro. O plano era o seguinte:
John
entrava em um bar que contasse com mesas de bilhar. Passados dez minutos, Dean
entrava também e desafiava John para jogar. Dizia para quem quisesse ouvir que
era invencível na sinuca. Atuando magistralmente, fingindo ver Dean pela primeira vez na
vida, John aceitava e ambos jogavam. Tanto barulho atraía curiosos, que se
aproximavam para acompanhar o desempenho do petulante rapaz. Durante a partida,
na qual apostavam ficticiamente cinqüenta dólares, Dean era sobrepujado pelo
pai. Fingia não saber segurar um taco direito, jogava mal, deixava o taco
escorregar na hora da jogada. Ao fim da partida, o vitorioso John pegava o
dinheiro e deixava o bar. Simulando estar furioso com as risadas dos presentes,
Dean explicava que o outro sujeito tivera sorte. Afirmava que ganharia a
próxima rodada, e apostava cem dólares contra qualquer um que quisesse jogar
com ele. Os patos viam ali uma ótima
oportunidade de granjear dinheiro fácil, acreditando na imperícia daquele rapaz
maluco. Casavam as apostas. E perdiam feio, porque dessa vez Dean não mais
encenava, e empregava toda a sua habilidade na partida. Rapelava os demais
jogadores, pegava o dinheiro e ia embora.
Claro
que diversas vezes os jogadores se indignavam ao perceber o golpe, e alguns
mais exaltados partiam para cima de Dean, que rapidamente era socorrido por
John. Afinal, quando é que os Winchester fogem de alguma briga?
Uma
hora se passou em um piscar de olhos. Quando Myla se aproximou para chamar Dean
a fim de irem embora, o rapaz tinha os bolsos cheios de cédulas e acenou uma
despedida para os jogadores os quais, falidos, acenaram de volta com expressões
infelizes.
Segurando
a porta, Dean virou-se para Myla e avisou:
—
É melhor se agasalhar bem, gatinha. A noite está fria e chuvosa. Pelo visto, o
clima desse fim de Outubro não está para brincadeira.
Aceitando
o conselho, ela subiu o zíper do casaco e envolveu o pescoço em uma echarpe
vermelha. Saíram da lanchonete.
Conforme
o rapaz caminhava, a bela garçonete o seguia. Deram alguns passos em direção à Baby, ao mesmo tempo em que o caçador
sacava as chaves do bolso de sua indefectível jaqueta marrom de caça. Quando
ele abriu a porta de seu sensacional veículo, a linda garota estacou de repente
arregalando os olhos:
—
Uau! Esse carro é seu?
—
Sim. — respondeu ele com um sorriso orgulhoso — É o xodó do papai aqui. Gostou?
—
Demais! Muito maneiro! É um Chevy Impala,
não é? — quis saber Myla deixando seus olhos verdes correrem pelo belo carro
negro, antigo e de quatro portas. A lataria estava brilhando, mesmo molhada
pela garoa persistente.
—
Isso aí. — Dean abriu um sorriso radiante — Garota esperta. Quer dizer então
que gosta dos clássicos? To vendo que é bem mais do que um rostinho bonito.
—
Você nem faz ideia... — retrucou ela, enigmática e sedutora.
Com
um assobio brincalhão, Dean entrou e puxou a porta. A moça o imitou. O rapaz
acomodou-se atrás do volante de seu magnífico Impala. Deu a partida. O motor imenso roncou baixo, ainda que de
forma possante. Sempre olhando pelos retrovisores, Dean engrenou a ré, desceu o
carro para o asfalto, manobrou e subiu a rua, admirando vitoriosamente de
soslaio sua invejável passageira.
O
futuro de Dean Winchester parecia nebuloso. Sua família nunca fora exatamente
aquilo que se pode chamar de comum. Seu trabalho era assombrado. E ele ainda
tinha um dilema muito delicado para resolver. Mas não naquela noite. Naquela
noite ele precisava de descanso. De companhia. De diversão. Mais do que precisava,
ele queria isso. E não somente queria, como merecia.
Se
Dean Winchester decidiu isso, então estava decidido.
O
Impala acelerou noite adentro.
***
Continua...
Danilo Alex da Silva
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