quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O Dilema de Dean Winchester







Ele observava o fraco movimento de carros através da vidraça. Olhava para a rua enquanto a mente vagava incansavelmente pelos caminhos insondáveis do nada. Tinha muito para resolver. Uma dúvida torturante o castigava interiormente. Um jovem saudável como ele não deveria ter de carregar o peso de tanta responsabilidade sobre seus ombros. Basicamente, salvar o mundo todos os dias — ou melhor, todas as noites — era o seu malfadado ofício. Aos vinte seis anos de idade, Dean Winchester estava no meio de um dilema. Precisava de uma luz. Qualquer uma.
 Em uma lanchonete quase vazia em algum lugar do interior do Colorado, optara por sentar próximo da janela, que era a única coisa a separá-lo da rua escura, regada por uma chuva miúda insistente. De onde estava, Dean podia ver perfeitamente a grade cromada do radiador de seu belíssimo Impala 67. Imóvel diante do estabelecimento, para o qual estava posicionado frontalmente na área de estacionamento preferencial para fregueses, o carro, negro como a noite, aguardava seu dono para pegarem a estrada mais uma vez. 
O jovem Winchester detivera seu fabuloso automóvel ali cerca de quarenta minutos antes. Fizera uma parada para abastecer a “Baby” e, como o posto de gasolina era coligado à lanchonete, resolveu esticar até lá para forrar o estômago. Não foi uma escolha a qual pudesse levantar arrependimentos, pois tivera uma agradável surpresa ao descobrir na garçonete que o atenderia uma bela loira de olhos verdes, de corpo escultural, seios fartos, bem a seu gosto. Devia ter uns vinte e dois anos, no máximo.
Após saudá-lo e se apresentar como Myla, a atendente anotou o pedido. Pouco depois, esboçando um sorriso sedutor, ela colocou diante de Dean um cheeseburger duplo bastante acebolado e uma Budweiser, a qual ele bebia agora diretamente do gargalo enquanto fitava pensativamente o escasso trânsito local. Concentrou-se em seguida na tarefa de dar uma grande mordida no apetitoso sanduíche. Meneando a cabeça com um gesto de aprovação, abocanhou o lanche uma segunda vez, dizendo para si mesmo de boca cheia:
— Que maravilha! Eu tava cheio de fome!
Em dado momento, sentiu um olhar pesar sobre si e levantou seus olhos. Percebeu que Myla, mesmo atrás do balcão, atendendo outros clientes, sempre arranjava alguns instantes para encará-lo fixamente. Dean devorava o sanduba, e Myla devorava Dean com os olhos. A paquera da garota era ostensiva, ela nem se preocupou em ser discreta. Com a bochecha inchada devido o excesso de comida na boca, Dean sorriu para a jovem, que sorriu de volta.
Cheeseburger no capricho, garçonete bonita... Acho que essa noite vou me dar bem!
A possibilidade de diversão o animou, ajudando-o até mesmo a esquecer temporariamente seu duro dilema. Minutos mais tarde, depois de ter devorado por completo seu hambúrguer e esvaziado sua cerveja, fez sinal para a bela jovem, a qual se aproximou imediatamente.
— Estava ótimo, querida. Bonzão mesmo. Você merece uma boa gorjeta pelo atendimento. Agora, traga a conta para mim, sim?
— Gostaria de algo mais? — ela indagou com uma piscadela maliciosa.
Ao notar as intenções da moça, Dean Winchester esboçou seu característico sorriso safado. Inclinando-se para frente e apoiando os cotovelos na mesa, olhou para ela de modo sedutor. Limpando a garganta, disse sem rodeios:
— Bem, na verdade, sim. Sabe, eu adoraria uma bela de uma sobremesa, mas o problema é que não sei se você está incluída no cardápio.
Rindo ela, respondeu:
— É, realmente não faço parte do menu. Porém, acho que podemos resolver isso depois do meu turno. Que tal? Saio em uma hora.
Dean consultou seu relógio de pulso. Passavam cinco minutos das vinte e três horas.
— Uma hora, heim? Ok, boneca. Não vou a lugar algum, pode apostar. A propósito, meu nome é Dean Winchester.
— Encantada, Dean. Trago a conta em um minuto.
O jovem caçador pagou em dólares. Dinheiro vivo. Seu “dinheiro suado”, como costumava chamar a grana obtida em bilhar. Ao pensar nisso, seu rosto se iluminou. Ainda tinha uma hora pela frente, e precisava encontrar uma maneira de matar o tempo. Olhou para as mesas de bilhar. Uma estava vazia. A outra era circundada por três jogadores soturnos. Dean esfregou as mãos. Algumas rodadas de sinuca não fariam mal.
Aproximando-se, indagou:
— Cabe mais um aí nesse jogo?
Foi aceito. Empunhou o taco. Usou giz para polir a superfície da ponta do mesmo. Inclinou-se e se preparou para jogar. Desferiu a tacada certeira. Encaçapou a bola desejada. Ouviu o resmungo dos outros jogadores e sorriu. Aquilo não era um jogo, era um massacre. Dean Winchester se mostrava imbatível no bilhar. Aprendera a jogar com o pai. “Não se pode pagar tudo com cartão de crédito fraudado.” — sempre dizia John, e explicava: “Dinheiro às vezes é imprescindível durante as investigações que precedem nossas caçadas. Dinheiro compra informações. Nada abre tantas portas como as boas e velhas verdinhas americanas. Por isso, vamos jogar bilhar e ganhar grana.”
Sam detestava sinuca. Interessava-se mais por outras coisas. Coisas que não eram úteis para caçadores. Ele e o pai já haviam discutido por causa disso. Dean presenciara brigas terríveis entre os dois. Agora, o pai estava desaparecido. E Sammy tinha ido embora há quase dois anos. Jurara não mais caçar. Nunca mais.  Queria fazer faculdade. O pai dissera que se ele fosse não precisava voltar. Sammy não voltou.
  Semanas antes, John havia se separado de Dean, incumbindo seu filho mais velho de resolver um caso de vodu em Nova Orleans, enquanto ele próprio seguia para Jericho, na Califórnia, onde, numa estrada, em um trecho de oito quilômetros, homens estavam desaparecendo inexplicavelmente havia quase duas décadas. O carro do último fora encontrado, mas o motorista, nunca. John Winchester partira para investigar esse caso e não dera mais notícias. Não atendia nenhum dos celulares, não deixava mensagens. Sumira.
Resumindo: Dean estava sozinho.
Sentia que o pai estava em perigo. Seus instintos apurados de caçador, que raramente falhavam, lhe diziam isso. Talvez pudesse até mesmo estar... (morto?) Nem queria pensar numa coisa dessas. John precisava dele. Dean sabia o que fazer. Tinha que ir procurar o pai. Mas não queria fazer isso solitariamente. E também relutava em ir pedir ajuda ao irmão mais novo. Nisso consistia seu terrível dilema.
Rodeando a mesa forrada com pano verde, ele usou novamente o giz na ponta do taco e posicionou-se, buscando o melhor ângulo para a próxima jogada. Fez um esforço para afastar Sammy dos pensamentos por ora. Diante de seus olhos esverdeados dançaram imagens vívidas do pai. Gostaria que John estivesse ali com ele, depenando aqueles vacilões metidos a mestres do bilhar, os quais, na verdade, mal sabiam segurar o taco. John e seu filho Dean costumavam chamar aquilo de “Caçar patos.” Tinham bolado até uma estratégia para atrair “patos” e ganhar deles um bom dinheiro. O plano era o seguinte:
John entrava em um bar que contasse com mesas de bilhar. Passados dez minutos, Dean entrava também e desafiava John para jogar. Dizia para quem quisesse ouvir que era invencível na sinuca. Atuando magistralmente, fingindo ver Dean pela primeira vez na vida, John aceitava e ambos jogavam. Tanto barulho atraía curiosos, que se aproximavam para acompanhar o desempenho do petulante rapaz. Durante a partida, na qual apostavam ficticiamente cinqüenta dólares, Dean era sobrepujado pelo pai. Fingia não saber segurar um taco direito, jogava mal, deixava o taco escorregar na hora da jogada. Ao fim da partida, o vitorioso John pegava o dinheiro e deixava o bar. Simulando estar furioso com as risadas dos presentes, Dean explicava que o outro sujeito tivera sorte. Afirmava que ganharia a próxima rodada, e apostava cem dólares contra qualquer um que quisesse jogar com ele. Os patos viam ali uma ótima oportunidade de granjear dinheiro fácil, acreditando na imperícia daquele rapaz maluco. Casavam as apostas. E perdiam feio, porque dessa vez Dean não mais encenava, e empregava toda a sua habilidade na partida. Rapelava os demais jogadores, pegava o dinheiro e ia embora.
Claro que diversas vezes os jogadores se indignavam ao perceber o golpe, e alguns mais exaltados partiam para cima de Dean, que rapidamente era socorrido por John. Afinal, quando é que os Winchester fogem de alguma briga?
Uma hora se passou em um piscar de olhos. Quando Myla se aproximou para chamar Dean a fim de irem embora, o rapaz tinha os bolsos cheios de cédulas e acenou uma despedida para os jogadores os quais, falidos, acenaram de volta com expressões infelizes.
Segurando a porta, Dean virou-se para Myla e avisou:
— É melhor se agasalhar bem, gatinha. A noite está fria e chuvosa. Pelo visto, o clima desse fim de Outubro não está para brincadeira.
Aceitando o conselho, ela subiu o zíper do casaco e envolveu o pescoço em uma echarpe vermelha. Saíram da lanchonete.
Conforme o rapaz caminhava, a bela garçonete o seguia. Deram alguns passos em direção à Baby, ao mesmo tempo em que o caçador sacava as chaves do bolso de sua indefectível jaqueta marrom de caça. Quando ele abriu a porta de seu sensacional veículo, a linda garota estacou de repente arregalando os olhos:
— Uau! Esse carro é seu?
— Sim. — respondeu ele com um sorriso orgulhoso — É o xodó do papai aqui. Gostou?
— Demais! Muito maneiro! É um Chevy Impala, não é? — quis saber Myla deixando seus olhos verdes correrem pelo belo carro negro, antigo e de quatro portas. A lataria estava brilhando, mesmo molhada pela garoa persistente.
— Isso aí. — Dean abriu um sorriso radiante — Garota esperta. Quer dizer então que gosta dos clássicos? To vendo que é bem mais do que um rostinho bonito.
— Você nem faz ideia... — retrucou ela, enigmática e sedutora.
Com um assobio brincalhão, Dean entrou e puxou a porta. A moça o imitou. O rapaz acomodou-se atrás do volante de seu magnífico Impala. Deu a partida. O motor imenso roncou baixo, ainda que de forma possante. Sempre olhando pelos retrovisores, Dean engrenou a ré, desceu o carro para o asfalto, manobrou e subiu a rua, admirando vitoriosamente de soslaio sua invejável passageira.
O futuro de Dean Winchester parecia nebuloso. Sua família nunca fora exatamente aquilo que se pode chamar de comum. Seu trabalho era assombrado. E ele ainda tinha um dilema muito delicado para resolver. Mas não naquela noite. Naquela noite ele precisava de descanso. De companhia. De diversão. Mais do que precisava, ele queria isso. E não somente queria, como merecia.
Se Dean Winchester decidiu isso, então estava decidido.
O Impala acelerou noite adentro.

*** 

Continua...     



Danilo Alex da Silva

Nenhum comentário:

Postar um comentário