terça-feira, 24 de julho de 2012

A Arca de Pandora - Parte IX - Final



Embora o inglês do homem fosse bem articulado, ele misturava muitas expressões espanholas no meio da fala, não se sabe se por hábito, ou se propositalmente para irritar Hope, lembrando-o a cada frase de sua origem adversária. Terminou de falar e mirou o capitão pirata de um modo indecifrável. O inglês, apesar de ter os nervos abalados, sustentou o olhar do espanhol com altivez, tentando aparentar calma e sua costumeira arrogância. Olhou seu interlocutor de alto a baixo e reprimiu a custo um estremecimento.
O homem era justamente como os marujos haviam descrito. Estatura mediana, aparentando uns quarenta anos, pele morena, mas pálida, cabelos escuros, longos e anelados presos por uma faixa de seda, olhos escuros, cavanhaque, roupas espalhafatosas e um punhal na cintura. Anéis, brincos e colares exóticos em número exagerado. Semblante e posturas próprias de um espanhol. Vestimenta típica de um cigano. Olhar frio como uma lápide. Sorriso maldoso que, quando esboçado, deixou à mostra alguns dentes de ouro. Cruzou os braços e observou o inglês com arrogância.
- Vejo que sabe quem sou. – replicou Hope sem tirar os olhos do outro.
- Difícil no saber algo acerca del hombre que tem causado tantos dissabores a mi pueblo.
Foi a vez de Hope sorrir:
- Se sabe o que fiz ao seu povo, de fato me conhece, melhor até do que eu poderia imaginar. Eu, entretanto, não o conheço. Quem é você?
Fazendo um floreio com as mãos, executando uma pomposa mesura, o homem curvou-se para frente antes de se apresentar:
Mi nombre es Esteban Ramirez. Trago os cumprimentos del Rey de España, Don Filipe II.
Ao ouvir isso, Hope titubeou. Seu rosto empalideceu imediatamente, perdendo por instantes sua expressão soberba. O inglês então viu que o espanhol a poucos metros de si, banhado pela luz da lua cheia, não projetava sombra no convés. A sombra de Hope estava lá, mas a de Ramirez curiosamente, não.
- Então Filipe II enviou você, heim? Agora compreendo, você é uma espécie de arma secreta da Espanha. Veio naquela arca maldita, soterrado pelo tesouro. Mas estava morto; eu vi com meus próprios olhos. Como pode ter voltado à vida?
Dom Esteban soltou uma gargalhada sombria ao perceber a confusão nos olhos do inglês. Apenas riu, essa foi sua resposta.
- Você não é humano... é? – indagou Hope temeroso, sentindo o coração acelerar subitamente.
No, mi amigo, yo no soy humano como tu. Deixei de ser faz alguns séculos. Entre vós, sou Esteban, o cigano. Mas entre os meus, soy conocido como El Diablo.
- Se não é humano, o que você é?
Nova gargalhada de deboche escapou dos lábios pálidos do espanhol, antes que ele respondesse de modo funestamente enigmático:
- Tenha calma, hombre. Em breve irás saber.
Permitindo que o silêncio angustiante reinasse por alguns segundos e, desse modo torturando psicologicamente ainda mais seu odiado interlocutor, Esteban continuou:
- Eu caminho por esta tierra há muy tiempo. Nasci, cresci e fui transformado na minha pátria, España. Enquanto era mortal, vivi entre mi pueblo, aquellos que usted conhece por ciganos. Mas um dia un hombre, un amigo em quem confiava, presenteou-me com a inmortalidad. Pratiquei o mal contra aqueles que foram meu povo. Levei a eles la muerte, el miedo y el dolor. Pero um dia descobriram alguns de mis pontos fracos, e fui capturado. Estive em poder da Inquisição.
Parando um momento nesse ponto, Dom Esteban Ramirez fitou seu inimigo com intensidade e prosseguiu;
- Creia-me, mi compañero, no fue divertido... La iglesia sabe como tratar a sus enemigos... Sólo não fui destruído porque  el rey da época não o permitiu. Dizia que eu podia ser útil em algún momento... Entonces, permaneci aprisionado por muito tempo, tanto que perdi la noción de quanto... Meses, anõs, décadas, séculos, não tinha como saber. Pero un día Don Filipe quis me ver... Foi hablar comigo no calabouço donde yo me achava preso, alimentando-me principalmente de ratos. Ele me disse que mi país, mi madre, España, necessitava de mim.
Neste ponto da narrativa, Esteban parou de falar por mais um instante e voltou-se para Hope com ódio mortal chispando em seus olhos negros. Apontando o dedo acusadoramente para seu interlocutor, o espanhol continuou:
- Como estive muito tempo isolado nas trevas de minha prisón, eu ignorava o que acontecia aqui fora. Y el rey, Don Filipe II, falou-me de vocês, lós británicos. Saqueando e matando meu povo... Afundando nuestros barcos... Trazendo enormes perdas financieras à Coroa Española... O rei disse que eu tinha a chance de reparar os males que había causado ao meu país. Além disso, eu estaria livre novamente. Apenas precisava dar a los británicos una lección.
Enquanto falava, o espanhol andava de um lado para outro no convés sombrio do galeão, como se contasse a história mais a si do que ao inglês, propriamente. Hope, estático, apenas seguia o outro com o olhar sem nada dizer.
Yo aceitei la oferta de imediato, claro! Quería ser libre pero, antes de qualquer coisa, yo soy español, hombre! Acho que me compreende, capitán; usted me parece o tipo de hombre que también faria tudo por su país.
O hispânico fez mais uma pausa e, diante do insistente silêncio do outro, prosseguiu:
Don Filipe contou-me tudo o que yo necesitaba saber sobre vocês. Soube de El Dragón, Francis Drake, el temible pirata. Mi rey me contou sobre sua forte amizade con él, Drake. Son prácticamente hermanos, não é assim, Don Jason Hope? 
Vendo que o inglês, muito pálido, passava a língua sobre os lábios ressecados, Esteban sorriu maldosamente antes de completar:
- Pelos crimes contra o meu povo, morrer era muito pouco para El Dragón. Ele merecia algo peor que eso. Por isso, você é o alvo, capitán. Por isso, fui enviado. Francis Drake merece perder um amigo querido. Ele deve viver para carregar este dolor. Assim talvez aprenda a no más prejudicar mi gente, mi tierra.
Segundos angustiantes se arrastaram pesadamente dentro da densidão do silêncio mortal em pleno oceano.
- Se queria a mim, por que matou tantos irmãos meus? Por que me salvou naquele motim? – indagou Hope, confuso.
- Porque era yo quem deveria tirar sua vida, capitán. Você também odeia meu povo, e também fez minha gente sofrer, señor. Merece murir. Pero antes de encontrarse con la muerte, usted devia sofrer, inglês. Devia ver seus homens morrerem, ser castigado por fome, sede e  peste, ser traído e abandonado pelos seus, beirar à loucura.  Sabe cómo es mi rey; Don Filipe II es un hombre muy religioso... Por isso adotou todas essas simbologias bíblicas em sua vingança. Reparou nos detalhes? Morte, fome, pestes... Parecido con las diez plagas. Como él também aprecia mitologia grega, resolveu batizar este navio de modo sugestivo. Por isso o barco se llama Pandora. A abertura da arca maldita a través de sus manos, señor Hope, foi o que provocou todos esses males. Usted abriu a arca de Pandora, capitán. Tudo por causa de sua ganância. Tu culpa. Como se sentiu, vendo seus homens sofrendo e morrendo, sem poder ajudá-los, Jason Hope?
Esteban Ramirez percebeu que o rosto e as mãos do capitão pirata inglês se crispavam de ódio. Muito tranquilo, o cigano soltou uma risada impertinente.
- Frustrante, não é, británico? Agora sabe como Don Filipe II se siente quando vocês atacam nuestros hermanos e fazem llorar a Mãe Espanha.  Pero tengo que darle las gracias. O plano funcionou perfeitamente por sua causa. Inglés arrogante! Foi facilmente enganado. A escolta espanhola que se deixou abater tão fácil... O galeão, tão poderoso, que fugiu de ti e ainda assim foi capturado... Todos tínhamos nossas ordens, comandante; inclusive eu. Tudo deveria acontecer exatamente como aconteceu. Y ahora se aproxima o momento do seu fim, capitán Hope.
Mal o espanhol acabou de falar, um estampido seco soou a bordo do Pandora. De olhos arregalados, com um grito que expressava dor e surpresa, Dom Esteban viu-se projetado brutalmente para trás, indo cair pesadamente de costas aos pés do mastro. Seu peito desnudo cobriu-se de sangue negro e apodrecido.
A poucos passos dele, de pé, com rosto sério e olhar raivoso, Hope ainda empunhava a pistola fumegante, a qual havia sacado com rapidez e disparado com maestria. A sombra de um sorriso vitorioso surgiu em seus lábios, mas foi fugaz como a brisa. O espanhol estava se mexendo no chão. Hope recuou um passo, sustendo a respiração. O que era aquilo que tinha aparência de gente, mas na verdade, era uma das crias do inferno? O cigano petulante havia recebido um tiro de pistola no meio do peito, à queima-roupa. Qualquer ser humano estaria morto ao ser alvejado daquele modo, daquela distância tão curta.
No entanto, o espanhol não era mesmo um ser humano como qualquer outro mais. Dom Filipe fora sábio ao escolher sua espada vingadora para enviar aos ingleses. O cigano, ainda caído de costas, após tossir um pouco daquele sangue escuro e pútrido, começou a rir tenebrosamente e abriu os braços como se fosse voar.
 Enquanto isso, desprezando a gravidade, seu corpo se ergueu de modo fantasmagórico, sobrenatural. Sem que ao menos precisasse fazer o mínimo esforço ou sequer flexionar os joelhos, Dom Esteban foi içado do chão e, de modo flutuante, o ângulo de seu corpo mudou, endireitando-se até que estivesse de pé novamente, como se mãos invisíveis o estivessem levantando. A bala foi expulsa da carne e o rombo no peito se fechou milagrosamente. Incrédulo, Hope esfregou os olhos, sem poder acreditar no que eles enxergavam. Com um grunhido, Esteban fitou Hope de modo irônico e exclamou:
Ê, cabrón! Bom disparo, mas a dor me deixa muito furioso. Prepara-te, que sua hora chegou! Vai entender porque me chamam de El Diablo e vai saber, de una vez por todas, o que soy yo!
Em seguida, Dom Esteban Ramirez rugiu como fera. Seus olhos negros transformaram-se em duas bolas infernais, vermelhas como sangue e ardentes como brasas. Sua pele estava mais pálida e tétrica do que nunca. Abriu a boca e exibiu seus dentes; os caninos haviam crescido incrivelmente e eram perigosamente pontiagudos. Tinha olhos injetados de demônio e presas de lobo.
- Vampiro? – murmurou Hope, entre perplexo e apavorado.
A coisa com dentes afiados e olhos malignos riu com voz inumana diante do inglês, realçada de maneira fantasmagórica pelo luar frio e mortal.
Si, mortal orgullosoUn vampiro. Eu sou seu último pesadelo. Don Filipe predisse que eu seria sua última aflição. Sua última praga. Me gusta pensar assim, capitán. Que soy un ángel vengador español. Comandante Jason Hope, esta noche soy tu castigo de Dios!
Com mãos trêmulas, Hope olhou para a pistola ainda quente em suas mãos. Era uma arma inútil, já que o monstro não lhe daria tempo para recarregar. Atirou longe a pistola, desesperado. Percebeu então que o cigano sobrenatural fitava a espada em sua cintura. Não era um olhar de sarcasmo, mas de certo temor. Hope sentiu uma faísca de esperança surgir em seu interior. A rapieira espanhola tinha a lâmina feita de prata pura. Se a criatura por algum motivo temia esse metal, talvez houvesse um modo de destruí-la ou, pelo menos, detê-la.
Depositando toda sua vontade e energia no gesto, Hope levou a mão ao cabo da espada e conseguiu puxá-la da bainha. Todavia, não teve tempo de usá-la. Veloz como o vento, antevendo a manobra do oponente, o cigano sacou seu punhal da cintura e o arremessou com força e precisão, demonstrando uma habilidade que estarreceria um artista circense. A lâmina cruzou o ar zunindo, atravessando a escuridão com rapidez.
Hope soltou um grito e largou a espada quando uma dor atroz surgiu inesperadamente. A lâmina arremessada cravara-se firme e dolorosamente em sua carne, atravessando a mão que usava para esgrimir. A palma fora trespassada pelo punhal hispânico. O sangue brotou, vermelho e quente, em meio a espasmos de dor. O cheiro metálico emanado pelo sangramento fez com que o vampiro ficasse fora de si. Esboçou um sorriso psicótico para o inglês que fazia careta de dor e segurava a mão ferida.
- Está escrito que o sangre es la vida. – disse o monstro se aproximando, agarrando violentamente a mão ferida do pirata e lambendo-a com sofreguidão, sem que Hope, tomado de asco, pudesse evitar.
Com uma expressão de deleite, o cigano espectral parou de lamber o machucado e ergueu a cabeça para a noite que flutuava acima da altíssima mastreação do galeão. Lambeu os lábios rubros e fitou o inimigo amedrontado:
- Quem escreveu estava certo. Sangue é vida. E por isso necessito dele. Preciso dele em mim, porque yo soy la Muerte!
Hope sentiu que garras afiadas o envolviam num abraço mortal. Viu-se jogado com força sobrenatural, de costas contra o mastro principal, e a pancada foi muito grande, a ponto de fazê-lo imaginar que sua espinha havia se partido. O ar entrando em seus pulmões parecia repleto de fogo. Dificuldade para respirar. Uma porção de costelas quebradas, com certeza.
Antes que fosse ao chão, tão rápido quanto um piscar de olhos, o maldito cigano já o havia alcançado novamente. Hope arrancou o punhal da mão ferida e bravamente tentou golpear a fera, tendo em seguida, entretanto, sua mão segura com irritante facilidade. Como se ele fosse uma criança tentando socar um adulto. Dom Esteban Ramirez, após tirar o punhal das mãos sangrentas do pirata, segurou-o rudemente pelo pescoço e decolou junto ao mastro principal. O movimento, de tão rápido, quase destroncou o pescoço do inglês, que arfou. Hope, embora tendo os olhos marejados pela dor e pelo quase estrangulamento, percebeu que estavam subindo. Voavam? Seu cérebro já embotado compreendeu que mais uma vez o espanhol estava desafiando as regras que regiam o mundo natural. As botas do monstro produziam um rangido seco ao atingir a madeira do poste.
Segurando a presa pelo pescoço, o vampiro estava correndo ao longo do mastro. Correndo na vertical! Tão tranquilo, como se fosse a coisa mais habitual que fizesse. Seus olhos em brasa ardiam bem perto do rosto do agonizante pirata. Enquanto escalava a mastreação com a agilidade de um macaco diabólico, Esteban cantarolava sua canção espanhola, que imprimia em seu olhar insano um quê de saudosismo.
Jason Hope estava sufocando. Fervendo em ódio impotente nas garras do inimigo praticamente indestrutível. Humilhado no momento de sua morte por aquele ser que nascera em terras espanholas. Hope notou que o outro parara de cantar. Continuavam subindo, como se não fossem parar nunca, como se viajassem rumo ao céu noturno onde boiava uma belíssima lua cheia.
O capitão pirata viu dentes longos e afiados se aproximando. Uma fisgada no pescoço. Estremeceu. Seu sangue, sua vida sendo sugados com avidez para o interior do morto-vivo que o assassinava. Desespero. Aflição. Ódio. Dor. Impotência.  A última visão de Jason Hope, antes que tudo se apagasse, a derradeira lembrança que levou desse mundo foi envolta por alucinações. Ele viu o mar, mas o mesmo estava vermelho. O mar revolto tinha a cor do sangue. Do seu sangue. Uma maré de sangue onde, vagarosamente, o bravo pirata inglês naufragou solitário naquela noite de terror.

Uma semana, depois, numa tarde ensolarada que dourava o mar, o navio The Golden Hind, que era o gigantesco galeão inglês do pirata Francis Drake, deparou-se com outro galeão no meio do oceano. Um enorme navio espanhol chamado Pandora. Estavam perto da costa africana. Como o galeão espanhol parecia desabitado e navegava à deriva, Drake ordenou que se aproximassem, lançassem os ganchos para prender o barco espanhol e baixassem âncoras. Assim foi feito, e imitado pelas dez embarcações pirata que acompanhavam o Golden.
  Quando atravessou sobre a prancha e pisou o convés daquele sombrio galeão espanhol, o grande pirata inglês teve um mau pressentimento. Um rangido na mastreação principal fê-lo olhar para o alto. Seu sangue inglês gelou nas veias. Então, enquanto seus marujos debruçavam-se sobre as amuradas do Pandora para vomitar devido o terrível mau cheiro de corpos em decomposição proveniente do castelo de proa, Francis Drake erguia os punhos cerrados e urrava, tomado por fúria e ódio. Seu melhor amigo, Jason Hope, estava pendurado pelo pescoço na trave mais alta da mastreação, branco como leite, enrolado zombeteiramente em uma bandeira da Espanha.
 Depois daquele dia chocante para Drake, seu ódio pelos hispânicos triplicou e o pirata dedicou-se com redobrado afinco a caçar os galeões latinos, bem como a dizimar a gente de Dom Filipe II. Era esse mesmo ódio que levaria o capitão pirata inglês favorito da rainha Elizabeth I a, oito anos mais tarde, liderar e conduzir a uma estrondosa vitória a Armada Inglesa em combate contra a Invencível Armada Espanhola da qual, a bordo do Golden Hind, Francis Drake afundou vinte e três navios.
Eis os fatos, meus queridos amigos e leitores. Acredite ou não, devo adverti-los: muitos são os perigos do mar, sobretudo os preternaturais, como o Kraken, os espíritos dos navegantes e o sedutor canto das sereias. Mas nada disso se compara a visualizar um navio fantasma. Se por acaso estiverem na costa, e em noite de lua cheia, que é quando ele surge, virem um galeão espanhol, podem se preparar para o pior.
Caso vejam um navio imenso, de três andares, com majestosa mastreação e duas âncoras, com uma figura de proa de uma mulher jovem de cabelos revoltos segurando uma caixa, estão em perigo. Verão piratas espectrais trabalhando a bordo, regidos por um capitão morto-vivo, em decomposição, com uma corda no pescoço e claras marcas de mordida no mesmo, gritando e praguejando sem parar. Se por ventura virem isso, façam uma oração. Desviem a vista. Fujam. Salvem suas vidas!
Afastem-se, pois o Mal está por vir. Enquanto correm para longe, tapem os ouvidos; não ouçam os marujos cantando, pois, quando a canção for entoada, nenhum dos viventes que a escutar poderá escapar.

Fim

Danilo Alex da Silva


24/07/2012


“Eu vejo os fantasmas de navegadores, mas eles estão perdidos
Ao navegarem para o por do sol, medirão as consequências
Enquanto seus esqueletos acusam emergir do mar
As sereias das rochas, elas me acenam”

(Ghost of the Navigator – Iron Maiden)

domingo, 22 de julho de 2012

Não é todo mundo





Não é todo mundo que sabe ouvir
E nem todo mundo que pode falar
Para muitos, nada é mais difícil que sorrir
Para outros, nada é mais démodé do que amar.

Valores antigos hoje são desprezados
É por isso que vemos o mundo de pernas para o ar
De quem acha difícil ser, no mínimo educado,
O que mais, por ventura, podemos esperar?

Não é todo mundo que espalha o bem
Nem todo mundo que sabe ser agradável
Caímos em abismo ao maltratar alguém
E assim nosso fim é certo, é fato, é inexorável.

Se não posso curar, não farei sangrar
Se não faço sorrir, tampouco trarei dor
Mas nem todos pensam assim, querem ser grandes,
Querem ser notados, pisando nos outros para se exaltar.


Um olhar sobre a sociedade para saber que é preocupante
Ver pessoas que não pensam em viver, apenas existir.
Viver insultando o outro, nada mais é
Do que ferir a Deus, e apunhalar a si.


Danilo Alex da Silva


sábado, 21 de julho de 2012

A Arca de Pandora - Parte VIII



Rapidamente organizou-se o procedimento para decidir, de modo democrático, o futuro do Pandora, do capitão Jason Hope, da arca maldita e da tripulação. O velho Crawford foi o esteio para que tudo acontecesse dentro da ordem, na medida do possível. Depois de uma acirrada discussão, apurados os votos, descobriu-se que a maioria optara por abandonar o navio.
- Me parece uma decisão justa. – opinou o cozinheiro – Podemos usar os botes para escapar. Vamos revezando nos remos, dentro em breve encontraremos algum tipo de ajuda.
- Certo, mas e o nosso capitão? – lembrou Carrasco, que, a despeito de suas crueldades contra os inimigos, era um marinheiro inquestionavelmente leal ao seu comandante.
Sob os protestos da maior parte da tripulação, acompanhado por alguns poucos companheiros, Carrasco seguiu para o camarote do capitão, imbuído do desejo de fazer com que Hope partisse com eles. Mal surgiram na porta, e os piratas imediatamente perceberam que o cômodo recendia a bebida alcoólica. Encontraram o capitão com expressão de embriagado desalento, sentado a um canto, no chão, tomando rum direto do gargalo.
Disseram a ele que estavam partindo, mas o capitão pirata nem se moveu. Quando pediram que fosse com eles, lentamente ele voltou os olhos anuviados e mirou seus marujos:
- De fato, é como dizem por aí; em caso de perigo, os ratos são os primeiros a abandonar o navio. Mas eu não os culpo, marujos. Falhei com vocês, falhei com todos. Não pude protegê-los dessa coisa que vem dizimando nossos amigos em forma de doença, embora saibamos que não se trata de uma enfermidade. Podem ir, transmitam a minha ordem de “salvem-se quem puder” ao resto da tripulação. Quanto a mim, honrarei meu compromisso como capitão, e permanecerei aqui. Vou enfrentar o mal que tomou esse navio. É a mim que ele quer; não é justo que vocês continuem pagando por isso. Vão, meus amigos. Ficarei para vingar nossos mortos, ou morrerei tentando. Se sobreviverem, tomem um drinque por seu velho capitão. – e dizendo isso, Hope ergueu a garrafa que segurava em direção aos companheiros, como se oferecesse um brinde, para em seguida beber diretamente do bico mais uma vez, deixando a cabeça pender para trás enquanto degustava o longo gole.
Percebendo que a conversa tinha sido encerrada, os corsários partiram decepcionados e foram se reunir aos outros nos convés. Quando o grupo que retornou da cabine do comandante repetiu as palavras de Hope aos companheiros, houve um silêncio breve e respeitoso. Todos sabiam o que a decisão do comandante significava.
- Deixá-lo aí é crueldade demais até para nós. – protestou um dos piratas que estimava o capitão – Depois de tudo o que ele fez por nós, simplesmente abandoná-lo como se faz com um cão raivoso... Seria mais humano alguém ir até lá e dar-lhe um tiro de pistola.
- Vamos embora. – comandou alguém – Fizemos nossa votação, propusemos a Hope que viesse conosco, e ele tomou sua decisão. Terá de arcar com as consequências. Agimos de acordo com o que julgamos certo, e ele também. Estamos partindo, vamos descer estes botes e remar para longe. Quem quiser, que fique com o capitão.
- E os doentes? – lembrou outro corsário.
- Infelizmente, também terão de ser deixados. Não podem se mover, precisam ser carregados, darão trabalho e consumirão suprimentos que não podemos mais dividir. Sobrevivência tem lá seu preço.
Diante do olhar espantado de todos, o pirata que puxava a turma prosseguiu:
- São nossos amigos, mas nada mais podemos fazer por eles. Sabemos que não restam chances, porque a doença mata muito rápido. Depressa, vamos descer os botes. Alguém fica lá embaixo para receber as provisões que restam, e acomodá-las sob os bancos. O mar imóvel nos ajudará pelo menos nisso, a calmaria não atrapalhará nosso desembarque.
Rapidamente cumpriu-se o ritual de trazer os suprimentos para os botes, os quais ficavam elevados junto à amurada do galeão, pendendo de um tipo de estrado. Cordas presas à popa, à proa e às laterais mantinham os mesmos suspensos. Desataram alguns nós e desceram o primeiro bote com provisões e um marujo dentro. A longa descida, já que o galeão possuía três andares, era controlada pelos homens a bordo, os quais seguravam uma corda que deslizava por uma roldana barulhenta.
Um a um, os botes foram descidos com agilidade ao longo do imenso costado. A já reduzida tripulação embarcou. Sem demora os piratas se puseram a remar. O sol vespertino a tudo presenciava das alturas, cravado em um céu divinamente azul e limpo de qualquer nuvem. O som dos remos cortando a água absolutamente estagnada. A respiração ruidosa e pesada dos homens, os quais suavam pelo esforço e pela ausência total de ventos.
Enquanto se afastavam, os piratas, unidos por um silêncio solene, fitaram a figura majestosa do galeão espanhol estacado no meio do mar. O navio lembrava uma montanha em pleno oceano. O Pandora estava silencioso como um túmulo. E em breve, era nisso que ia se transformar: numa grande sepultura que abrigaria o capitão Jason Hope e os companheiros doentes que estavam encerrados nas cabines do castelo de proa. Alguns bandidos do mar sentiam certo remorso em ter deixado os companheiros para trás, mesmo sabendo que não havia alternativa.  Em pouco tempo, o vulto do navio imóvel desapareceu da vista dos sobreviventes, e eles se concentraram em resistir, em chegar a terra. Preocuparam enfim com suas próprias vidas, e deixaram de lado as dos amigos.
O sol descrevia seu arco implacável no céu, rumando de maneira inexorável para o horizonte o qual, dentro de poucas horas, tocaria, dando a impressão de que estava beijando a água parada, cuja superfície azul espelhava o céu fabuloso. Hope nem se mexera. Continuara em seu lugar, sentado, bebendo sem parar. Imaginou que houvesse homens doentes na ala de quarentena sem, no entanto, se erguer ou fazer menção de ir ajudá-los. Não podia fazer mais nada por eles. A morte deles ocorreria em breve, seria rápida e pouco sofrida. Hope quase os invejava. Sabia que com ele a coisa haveria de ser completamente diferente. O Diabo estava a bordo, dormindo na arca maldita no porão, esperando. Assim que o sol desaparecesse no horizonte, o inimigo sobrenatural viria buscar Jason Hope. Não restavam dúvidas.
Num acesso de fúria, Hope arremessou com força e raiva contra a parede da cabine a garrafa de vinho quase cheia que estava entornando. Som de vidro se despedaçando. Cacos chovendo para todos os lados. O vinho, escarlate, tingindo as paredes, escorrendo pelo assoalho, e respingando no capitão pirata bêbado e jogado a um canto. Ainda sentado, as costas apoiadas na quina da parede, o inglês observou o halo de luz que entrava pela janela, coado pelas cortinas confeccionadas e bordadas artesanalmente pelas mulheres que ele chamava de “aquelas espanholas imundas.” Sentiu um ódio insano e repentino por aquele navio, ao lembrar que o mesmo fora feito em uma estalagem hispânica, pelas mãos de seus inimigos. Desejou estar bem longe daquele barco infecto e maldito. Arrependeu-se por um momento da decisão de ficar ali.
Ao fitar o ângulo da luz e sua intensidade, calculou mentalmente a posição do sol, concluindo que a tarde partia com rapidez. Em breve seria noite. Logo viriam as trevas em seu encalço. Estava chegando a hora do confronto. O momento de ajustar contas com a criatura que assombrava o navio sob a forma detestável de um cigano. Seria tudo ou nada. Era a hora de lutar como nunca e, dessa vez, sozinho. O tempo, implacável, devorava minutos. O ar estagnado da tarde ardia como fogo ao penetrar as narinas do capitão, fazendo seus pulmões queimar como se cheios de brasas. O momento final se aproximava, e essa certeza apocalíptica invadia a mente de Hope com uma clareza cortante. Estava chegando o momento inevitável de vingar seus companheiros mortos, ou de se juntar a eles no Além.
Sacando da cintura sua pistola, Hope observou-a atentamente. Limpou-a e carregou-a sem pressa. Executava aquela tarefa sombria pela milésima vez na vida, mas dessa vez sua mão não estava tão firme. Pensar que aquela seria provavelmente a última batalha de sua vida. Enfrentar um inimigo que não deveria existir nesse mundo. Um adversário em quem sua razão se recusava a acreditar. Pagar o preço por ter aberto o baú maldito. Ele abrira a arca de Pandora literalmente, libertando no âmago do galeão todo o mal que se pudesse imaginar: morte, ódio, doenças, violência, cobiça, traição, deslealdade. Riu sozinho, um riso afogado de bêbado, que mais lembrava um latido áspero de cão doente. Riu alto como um alucinado. Sua situação era tão miserável que ele acabou achando graça.
Ele, Jason, abrira a arca maldita. Cometera o mesmo erro que alguém da mitologia grega, povoando o mundo com o que podia haver de pior sob os céus, as coisas mais temíveis que pudessem existir acima dos mares e sobre a terra. E apenas ele, praticamente apenas ele restara a bordo do galeão amaldiçoado. Ele permanecera ali. Jason Hope. Na mitologia grega, após a abertura da caixa de Pandora e liberação dos males no mundo dos homens, apenas a Esperança restara dentro da caixa. E Hope significa Esperança em inglês. Jason soltou uma sonora e insana gargalhada.
Somente agora percebia a macabra coincidência, a irônica ação do destino. Mas parou de rir tão subitamente quanto começara. Ele era apenas um homem cheio de maldades e amargor. A despeito de seu belo sobrenome, não havia qualquer resquício de esperança em seu coração negro. Terminando de carregar a pistola, Jason Hope encostou-a na própria testa e posicionou o dedo no gatilho. Respirou fundo.
O contato frio e áspero do metal contra a sua pele provocava ondas de arrepio. Hope foi invadido pela tentação de disparar a arma e acabar logo com tudo aquilo. Seu pensamento vagou para longe, buscando imagens confusas de sua vida, trazendo à tona imagens de um passado que ele perdera, ou desejava esquecer. Dizem que isso é o que acontece a todo homem à beira da morte; relembrar a vida. Apenas precisava acionar o gatilho e Bam! Aqui jaz o capitão pirata Jason Hope... Era isso o que ele era. Seria lembrado, talvez até com deferência pelos bandidos do mar, mas com desprezo pelas outras pessoas. O opróbrio dos homens. Além de capitão corsário, quem havia sido Jason Hope nesse mundo?
Um guerreiro destemido. Um pirata impiedoso. Um assassino talentoso. Um bandido vil. Alguém que não temera Deus nem Diabo durante toda a vida, pelo menos até botar o pé naquele galeão. Um inglês movido pelo ódio. Ignorava a segurança trazida por uma família. Desconhecia o amor verdadeiro de uma mulher. Um homem que era prezado por poucos. Que não tinha para quem voltar quando estava em terra. Sem família. Sem mulher ou filhos para deixar como herança nessa vida.
Seu único amigo era alguém chamado Francis Drake, para muitos, um pirata odioso. Para ele, um irmão. Jason Hope morreria por seu amigo e comandante sem hesitar, se fosse preciso. Daria a vida para defender a vida, a honra, a reputação de seu devotado amigo inglês, o qual deveria estar a léguas de distância, vasculhando cada milha marítima à sua procura. E foi a lembrança da amizade que Francis Drake nutria por ele que impediu Jason Hope de apertar aquele gatilho. Imaginou o olhar de decepção de Drake ao ver Hope caído naquele camarote, um furo sangrento entre os olhos, os miolos espalhados pelo cômodo, a pistola na mão, denunciando sua atitude covarde. Hope estremeceu.
Envergonhado pelo que pensara em fazer, o capitão sentiu asco do contato da arma e a afastou rapidamente, devolvendo-a a seu devido lugar, prendendo-a na faixa de seda que ele trazia na cintura.
Então, Hope notou que o camarote estava imergindo na penumbra. A noite se avizinhava silenciosamente. Angústia trazida principalmente pela situação. Solidão profunda. Com um grunhido, Jason Hope esfregou os olhos, colocando um ponto final em seus devaneios de agora há pouco. Era hora de calar o coração e por a mente em funcionamento. Que seus instintos perversos aflorassem, precisava deles para sobreviver. Subitamente algo estilhaçou o silêncio mortal, fazendo Hope virar a cabeça bruscamente. Uma voz de homem. Sotaque espanhol. Entoava uma canção de sua terra natal. Música cigana lhe chegava aos ouvidos, procedente do convés. Não se tratava apenas de alguém cantarolando. Aquilo era um indício de presença sobrenatural. Um chamado. Um convite ao combate.
 Diante disso, sem mais delongas, Jason Hope se colocou de pé e cambaleou para fora de seu camarote, alcançando o corredor para em seguida, com passos trôpegos, deixar o castelo de popa e encarar seu destino. A maresia embriagou Hope, devolvendo-lhe um pouco de lucidez. A lua cheia mais uma vez boiava no céu, e sua luz prateada banhava inteiramente a figura fúnebre do Pandora. Quando o inglês surgiu no convés, o luar o atingiu em cheio, como se ele fosse alvo de um holofote.
Hope ouvia a voz proferindo as notas da melodia e, com o olhar, procurou sua origem. Havia a sombra de um homem parado junto da base do mastro principal, voltado para a proa, de costas para o pirata. Lentamente Hope desceu as escadas, buscando apoio onde era possível, já que o mundo girava vertiginosamente devido o álcool que circulava em suas veias, misturado ao sangue. Ouvindo seus passos, o outro homem se voltou vagarosamente, como se cumprisse um ritual. Olhando diretamente para o inglês, o intruso ainda cantava alegremente. Possuía uma voz de barítono e era bastante afinado. Pousando os olhos em Hope, parou de cantar de repente e sorriu cinicamente antes de dizer:
- Buenas noches! Usted deve ser el gran capitán Jason Hope, el pirata inglés. Ouvi hablar mucho a seu respeito. Gostaria de dizer que é un placer conhecê-lo, mas não seria verdad. 

  Continua...



Danilo Alex da Silva


“A maldição prosseguia nos seus olhares
O marinheiro desejou ter morrido
Juntamente com as criaturas do mar
Mas elas vivem, e ele também.”

(Rime of the Ancient Mariner – Iron Maiden)


segunda-feira, 16 de julho de 2012

A Arca de Pandora - Parte VII




O panorama que se descortinava diante dos olhos aterrados dos piratas era realmente fantástico, impossível de crer mesmo para aquelas testemunhas oculares, tão destemidas em todos os cantos do mundo, em cada mar por eles navegado, onde realizassem suas pilhagens impiedosas.
Para que algo assuste um corsário, é necessário que tenha origem sobrenatural, pois praticamente tudo o que é normal neste mundo já foi contemplado pelos bandidos do mar, e seu coração de pedra já se habituou a todas essas situações naturais. Mas aquilo que eles veem e não são capazes de explicar ou compreender, isso sim os amedronta. Ainda mais quando se trata do mistério que estavam divisando naquela noite de calmaria, no meio do mar ermo e sombrio, cuja superfície, liberta da ação do vento, estava plácida e silenciosa como a de um lago.
Hope e seus homens, tomados por verdadeiro assombro mesclado ao desespero, observavam a cena macabra sem ousar dizer nada. O som se recusava a sair de suas gargantas secas e arranhadas. Apenas seus olhos esbugalhados se moviam de um lado para outro nervosamente, fixos na embarcação que estava agora bem próxima, navegando ao lado do Pandora, que continuava totalmente parado no meio do oceano. O barco que estavam enxergando não pertencia a esse mundo, não fazia parte desta realidade.
Bem diante de seus olhos, um navio fantasma singrava o Atlântico naturalmente, como se sua existência fosse tão aceitável quanto à do barco perante o qual a aparição se apresentava. Como se já não bastasse o navio que vissem ser uma projeção sobrenatural, havia algo ainda pior: os corsários foram gradativamente percebendo que o conheciam, e isso triplicou seu pânico.
O barco que agora estava ao lado do Pandora também navegava sob as cores da Espanha. Era imenso: possuía cerca de três andares e dispunha de mais de oitenta canhões para enfrentar os inimigos em alto-mar. Duas âncoras colossais equipavam o costado titânico. As velas enfunadas garbosamente na mastreação imponente e reforçada, proporcionavam um ar ainda mais majestoso à elegante embarcação. Um galeão espanhol muito bem construído, próprio para confrontar tempestades e piratas. Um opulento gigante dos mares.
Uma neblina fantasmagórica envolvia o sinistro barco, ocultando seu nome escrito no costado, bem como a figura de proa. Mas os piratas não precisavam disso para que soubessem de qual embarcação se tratava. Aquelas velas, aquela mastreação era inconfundíveis... Uma grossa camada de musgo recobria a espessa corrente que sustentava as âncoras. O pano das velhas parecia puído e tinham alguns rasgos em algumas partes. A madeira que estruturava o navio, embora forte e poderosa, aparentava estar velha e rangia mais do que o comum.
Mais do que nunca, o som do vento incomum assobiando no cordame era espectral, assemelhava-se ao gemido doloroso das almas condenadas. Indiferente aos pasmos espectadores, a tripulação do funesto navio se movia com agilidade pelo convés do barco preternatural. Piratas. Homens musculosos e tatuados, o suor escorria em seus corpos repletos de cicatrizes de combate, brilhando à luz prateada da lua cheia. Todavia, os tripulantes não eram pessoas normais.
A bordo do outro navio, os piratas eram todos mortos-vivos. Seres sem alma, que trabalhavam mecanicamente, de modo resignado, executando repetitivamente o serviço enfadonho que desenvolveriam eternidade adentro. Quando se voltavam para fitar o pessoal a bordo do Pandora, seus olhos eram mortos, sem brilho. Alguns tinham ossos expostos, em outros se podiam ver, por crateras abertas no corpo, órgãos funcionando. Marujos em decomposição; faces esqueléticas voltadas para a lua, e dedos descarnados cumprindo meticulosamente todos os serviços de bordo, os quais seriam bem mais apropriados aos vivos.
De seu posto junto da amurada, Hope assistia à cena de olhos esbugalhados, como os de um louco. Marinheiros fantasma tripulavam o outro descomunal galeão, que naquele momento descrevia uma curva para emparelhar com o Pandora. O capitão inglês viu então, cheio de perplexidade, o comandante da embarcação espectral. O homem, se é que se podia chamar assim aquela criatura horripilante, estava de pé na ponte de comando, observando enquanto seus marujos piratas mortos-vivos trabalhavam arduamente para que o navio realizasse corretamente a manobra que traria o barco fantasma para junto do navio dos vivos.
Hope pousou seus olhos na figura do outro capitão. Era um homem alto e magro, empertigado, um ar levemente arrogante e postura digna. Um inglês! O que estaria um britânico fazendo a bordo de um navio espanhol? A pele asquerosa do homem, repleta de chagas, estava tomada por uma palidez mortal e seus olhos opacos tinham um brilho vulpino. Do alto da ponte, ajeitando seu amarfanhado chapéu de três pontas, o abominável capitão espreitava sua tripulação e gritava com uma voz inumana:
- Ao trabalho, bastardos! Mais rápido! Pensam que tenho todo o tempo do mundo, energúmenos? É longa a viagem até o inferno, e o bojo de nosso barco está cheio de almas a ser entregues no reino maldito das chamas. O Príncipe Caído se orgulhará de nós, já que é em nome dele que pilhamos e matamos. Vamos, condenados! Apressem-se, cães! O tempo urge, e há muito trabalho a fazer!
E sob os gritos enérgicos do capitão sombrio, os piratas cadavéricos trabalhavam mais e mais, como se as palavras de seu superior estalassem, soando tal qual um chicote em seus ouvidos apodrecidos. Das gargantas mortas, onde jaziam cordas vocais entrando em processo de decomposição, escapava um grunhido sobrenatural, seguido por um cântico próprio para aquelas ocasiões. Os mortos entoavam um canto que haviam aprendido em vida, antes de se tornarem aquelas criaturas repulsivas e pútridas, cujos pedaços iam ficando caídos no convés, à medida que eles se esforçavam no trabalho de bordo.
Hope tinha certeza que havia algo de peculiar naquela cena. Captara certa familiaridade no timbre do capitão fantasma. O modo como o mesmo se expressara, o ritmo em que os homens labutavam, a canção que se elevava no ar estagnado... De repente, sentindo o ar faltar nos pulmões, Hope exclamou:
- Só posso estar maluco! Que os cães do inferno me mordam se isso for verdade!
Como se pudesse ouvir as palavras do pirata inglês, a bordo do galeão fantasma, o capitão espectral voltou a cabeça e notou o olhar abismado de Hope. Sim, exatamente como Jason Hope havia imaginado: aquele comandante cadavérico era... ele! Jason Hope também, mas uma versão erguida da escuridão do sepulcro, onde deveria permanecer em seu repouso eterno, aguardando o dia do Juízo, do qual nenhum homem pode escapar. Sentindo a cabeça girar, Hope imaginou estar fitando um personagem arrancado de seu pior pesadelo, um ser que surgisse especialmente para atormentá-lo. O capitão fantasma mirou Hope e sorriu com escárnio.
O galeão fantasma estava tão perto agora, que os tripulantes do Pandora podiam divisar, com riqueza de detalhes, o outro navio e seus horrendos tripulantes. E então, assim como Hope, os outros marujos identificaram sua réplica macabra na tripulação a bordo do outro navio e grunhiram, angustiados. O Hope cadavérico fitava o capitão do Pandora intensamente, como num desafio. Era, com certeza, a mais aterradora figura a bordo daquele navio fantasma.
 Os seus globos oculares estavam apodrecendo, e enquanto giravam nas órbitas, moscas imensas teimavam em pousar sobre eles. Grande parte do rosto estava em carne viva, o que resultava numa massa purulenta por onde passeavam vermes necrófagos.  Os ossos do maxilar tinham perfurado a carne e estavam expostos, de modo que, quando o infernal capitão sorria, o que se via era uma boca horrenda e sangrenta, com poucos dentes, parcialmente recoberta de carne. As roupas de capitão, embora bem feitas, estavam puídas, e, envolvendo-lhe o corpo magricela, davam a impressão de estar cobrindo um espantalho, ao invés de algo que um dia fora um homem. De onde estava, Hope conseguiu sentir o mau cheiro que seu sósia repugnante emanava.
Ciente do asco e pavor que sua imagem causava, o capitão fantasma esboçava seu sorriso tenebroso. Erguendo a mão esquelética, coberta de pele necrosada, moveu os dedos descarnados e acenou zombeteiramente para Jason Hope, o qual estremeceu e cobriu a boca com as mãos, achando que ia vomitar.  Um vento repentino varreu por instantes a névoa mística que envolvia o navio fantasma e então, os viventes que a tudo assistiam, enxergaram o costado e a proa do galeão tenebroso. Se até aquele ponto tinham alguma dúvida, ela se dissipou naquele momento.
A figura de proa do temível navio era uma ameaçadora e bela jovem grega, de olhar sombrio e cabelos revoltos, segurando uma caixa ornada. No costado corroído por cupins e castigado pelas intempéries, estava gravado o nome do barco. Um nome que, ao ser lido, fez falhar o coração pulsante de cada pirata sob as ordens de Jason Hope. Como já podem imaginar, meus amigos e leitores, o galeão espanhol fantasma não poderia ter sido batizado de outra forma. Chamava-se Pandora.
Sim, aquele barco adiante era o Pandora. A despeito dos rasgões nas velas, o musgo na corrente, a deterioração nas cordas que compunham o cordame e na madeira que alicerçava a imensa mastreação, bem como as manchas de sangue na figura de proa e no costado apodrecido pelo tempo e pelo mar, os diversos esqueletos de enforcados pendentes das traves do mastro principal. Apesar de tudo isso, e da funesta tripulação, o que inclui o vulto repulsivo de seu capitão, aquele navio era o Pandora.
Hope percebeu que aquela visão aterradora era um espelho dantesco de sua embarcação. Um reflexo terrível do que viria a ser aquele galeão espanhol tão imponente, e de todos aqueles que o tripulassem. Cadáveres sem vontade, criaturas sem almas, escravizados pelo Diabo e condenados a vagar pelos mares por todo o sempre, ceifando almas em plena beleza divina da paisagem marítima. Um vislumbre assustador do futuro, era isso que significava a aparição tétrica do Pandora infernal diante do Pandora comandado pelo Jason Hope vivente.
O navio fantasma estava lado a lado com o galeão espanhol, desde então amaldiçoado. Como foi dito no princípio, navios fantasma são interpretados como presságio de morte. Logo, aquela aparição era uma mensagem funesta, um recado impiedoso do Anjo Ceifador, mostrando que ninguém a bordo daquele galeão espanhol escaparia com vida. Aquele era o destino de seus tripulantes; morrer e se tornar um servo das trevas por toda a eternidade. Não havia outro caminho. Não havia chance ou esperança de salvação. Escuridão era o que vivenciavam, e escuridão era o que os aguardava no futuro. Hope teve total consciência disso no momento em que colocou seus olhos naquele barco assombrado que navegava ao lado do seu. Os piratas que respiravam olhavam para suas cópias cadavéricas e permaneciam mudos de espanto.
A bordo do navio fantasma, obedecendo ao seu abominável capitão, os piratas mortos-vivos fitaram seus correspondentes vivos, ergueram as armas numa saudação sinistra e, como se tivessem ensaiado, cantaram a uma só voz, de modo grave e amedrontador:
- “Ahoy! Aproveitem cada gota de rum, e embebedem sua espada com sangue inimigo! Amem as donzelas e desprezem o perigo. Sejam devotados ao mar, pois seu tempo é escasso. A canção foi entoada, e seu caminho já foi traçado. Quando selar-se o vosso destino, nenhum de vocês poderá escapar! Yo-ho-yo-ho!”.
Então, embalado por essa canção agourenta, o Pandora fantasmagórico guinou vivamente mais uma vez e a cortina de névoa sobrenatural, erguendo-se do oceano, se adensou, envolvendo o barco quase inteiramente enquanto ele se afastava. Durante algum tempo ainda foi possível avistar a claridade avermelhada das grandes lanternas de popa que oscilavam, enquanto o navio fantasma se afastava empurrado pelo vento espectral que beneficiava apenas a ele, pois o restante do mar continuava parado, silencioso, morto.
Para aflição dos homens de Hope, também foi possível escutar a canção tenebrosa dos piratas cadavéricos durante algum tempo, a qual foi, em dado momento, superada por uma gargalhada mortal e escabrosa, a que só podia ter escapado da garganta do capitão fantasma. A seguir, tão silenciosamente quanto chegara, o Pandora pertencente ao reino dos mortos sumiu-se na escuridão e na distância marítima, envolvido em neblinas que não pareciam nunca haver existido.
Entretanto, para infelicidade dos piratas ingleses, o navio infernal que prenunciava a morte se foi, mas a calmaria ficou. Mortal, silenciosa, envolvendo com seus tentáculos, pegajosos e inescapáveis como os do Kraken, o galeão espanhol amaldiçoado pelas forças sobrenaturais obscuras.
A lua e a noite foram embora, e o sol voltou, ardente, castigador, fazendo suar os marujos semimortos, cujas gargantas estavam ressecadas e as línguas pareciam lixas.  A ausência de vento era mesmo sua sentença de morte. Os homens continuavam amanhecendo com marcas de picada no pescoço, no estômago e nas mãos. Reclamavam de cansaço, surgiam pálidos e não gostavam de se expor ao sol. Preferiam a escuridão acolhedora e úmida dos porões.
Aquilo que Hope classificara como escorbuto não se cansava de atacar os marujos. Parecia drenar-lhes as forças, o sangue. Talvez Hope houvesse chamado isso de escorbuto porque alguns sintomas eram semelhantes, tais como palidez, hemorragia e anemia, que parecia ser o que acometia os piratas, já que eles morriam apresentando não possuir mais sangue nos corpos. Mas escorbuto não deixava marcas de picada. E não matava tão rápido também. Tinha de ser outra coisa.
Depois de vislumbrar o navio fantasma, os marujos não tinham mais dúvidas que o Pandora estava amaldiçoado. Quem precisava ir até o porão fazia questão de ficar bem longe do local onde jazia a maldita arca. Certa tarde, a tripulação ouviu um homem cantando em espanhol, a música vinha do porão, justamente do ponto onde repousava o funesto baú. Carrasco se dispôs a ir verificar. Minutos depois, ouviu-se um grito de horror do pirata, seguido de um estampido seco.
Foram ver o que se passava e acharam o destemido corsário meio agachado, trêmulo, empunhando a pistola fumegante. A custo ele conseguiu explicar que descera as escadas seguindo a voz hispânica que cantava. Ao se aproximar, o silêncio reinou.  Então ele vira, no escuro do porão, um cão negro grande e de olhos perversamente vermelhos, que mostrou-lhe os dentes rosnando e retesou-se nas patas traseiras, pronto para saltar sobre ele. Gritando de horror, dando dois passos para trás, Carrasco sacou rapidamente a arma e disparou, tropeçando em um barril e indo ao chão.
O tiro raspou o sinistro cão, que fugiu para o fundo do porão e abrigou-se atrás da arca amaldiçoada, onde ninguém tinha coragem de ir. Ouvindo a história do homem, e ajudando-o a se erguer, os piratas foram em grupo vasculhar o local onde o bicho havia se escondido, mas, como era de se esperar, não acharam nem sinal do cão. Todavia, nenhum dos piratas duvidou da veracidade do que o companheiro contara.
É verdade que, devido à inesperada imobilidade do barco preso na calmaria, boa parte da comida estragara ou fora roída por ratos, e a água potável estava quase se esgotando, assim como as bebidas alcoólicas. Portanto, a fome, a sede, e a misteriosa doença que atacava os tripulantes poderiam contribuir para que os piratas fossem vitimados por alucinações; porém, todos sabiam, não era o que acontecera a Carrasco. O homem vira mesmo algo estranho no porão naquela tarde. Precisavam se livrar daquela arca infernal. Resolveram atirá-la ao mar.
Decidiram comunicar o fato ao capitão Hope, mas ele se opôs imediatamente. Furioso, bradou que ninguém devia tocar naquele baú. Falava e brandia ameaçadoramente sua rapieira de prata, para intimidar os homens, todos tomados por palidez mórbida e suor febril.
Hope reagiu de um modo inesperado quando citaram a arca. Desde a noite em que tinham avistado o navio fantasma, o capitão não fazia mais nada senão permanecer em sua cabine entornando, uma por uma, as garrafas de vinho espanhol que ali havia. Mais do que nunca, vivia bêbado, e parecia mal se importar com sua tripulação. Parecia totalmente alheio ao que acontecia ao seu redor; exceto, é claro, quando o assunto era a maldita arca. Aquela urna sombria o havia enfeitiçado, não havia outra explicação. E, apesar de tudo, sua vontade foi respeitada.
Mas os homens estavam descontentes. Dos cinquenta marujos que tinha permanecido ao lado de Hope durante o motim incitado por William Mathison e sobrevivido à batalha, restaram apenas trinta e sete que estavam relativamente bem. Os enfermos portadores do mal misterioso, que rapidamente se tornavam moribundos, eram levados para o castelo de proa; havia sido determinada uma ala de quarentena lá pelos próprios marujos, pois havia entre os mesmos temor de que, de alguma forma, aquela enfermidade não identificada fosse contagiosa.
 Com a falta de comida e bebida, tiveram de racionar, e isso afetou principalmente os doentes, os quais dependiam de boa alimentação para conseguir contar com alguma chance de recuperação, por mais ínfima que fosse. A situação, gerando o caos e o pânico, chegou ao ápice de desespero, pois, quando um marujo era encaminhado para a área isolada para quarentena, sabia que não tinha escapatória.
Tomados pelo desespero, enlouquecidos, muitos marinheiros começaram a culpar o capitão, maldiziam a hora em que ele havia aberto aquela arca. Estavam se mobilizando para atirar Hope e o baú ao mar porque desse modo, imaginavam, talvez aplacassem um pouco a ira de Deus e o vento voltasse a soprar. Outros achavam que deviam abandonar o navio, com ou sem o capitão, para que tentassem se salvar, já que permanecer a bordo do Pandora naquelas condições não era somente inviável, pois também se tornara impensável.
Para impedir que estourasse um novo motim a bordo do galeão espanhol, o cozinheiro Peter Crawford, que era um homem velho e sábio, logo, imensamente respeitado pela tripulação, disse que queria falar com todos. Esboçando um gesto para que fizessem silêncio, assim que a tripulação se calou, o cozinheiro disse de modo cauteloso e solene:
- Vamos fazer uma votação.

Continua...


Danilo Alex da Silva


“O albatroz começou a sua vingança
Uma terrível maldição, uma sede começou
Os companheiros culpam o marinheiro pela má sorte
Sobre seu pescoço é pendurado o pássaro morto”


(Rime of the Ancient Mariner – Iron Maiden)