quinta-feira, 31 de maio de 2012

A Noite da Besta





- Depressa, vamos saltar aqui! – disse o homem aos outros quatro que o acompanhavam.
Estavam a bordo clandestinamente de um trem, cujos numerosos vagões chacoalhantes, carregados de soja e milho, seguiam rumo à capital. Naquele momento, a composição avançava ruidosamente sobre os trilhos que cruzavam serpenteando a extensa área rural. Naquele momento o cenário era hostil; a mata fechada margeava os trilhos. Encontravam-se no meio do nada, e foi exatamente no meio do nada que os cinco passageiros clandestinos resolveram desembarcar, tão silenciosa e furtivamente como tinham subido a bordo.
Pularam do trem ainda em movimento e aterrissaram pesadamente, rolando pelo chão. Em seguida, embrenharam-se na cerrada vegetação, crescida na beira dos trilhos e que recobria grande parte do solo no local onde se encontravam. Uma vez ocultos pela vegetação, começaram a correr na direção que aquele que parecia ser o líder determinou. Eram pouco mais de vinte e três horas quando aquele intrigante quinteto apeou do trem e se entranhou no matagal. E eles corriam em plenos pulmões, como se fossem seguidos de perto pela sombra espectral do anjo ceifador.
Aqueles cinco homens eram foragidos da lei e, menos de quatro horas antes, seguindo minuciosamente um audacioso plano elaborado por aquele que parecia ser o chefe, haviam conseguido burlar a intensa vigilância e escaparam de uma penitenciária de segurança máxima, com fama em todo estado de ser praticamente inescapável.
Ao se verem livres da famigerada cadeia, os cinco companheiros correram através da mata cerca de um quilômetro e meio, até chegar ao rio. Durante todo o trajeto, com a respiração ofegante e o pulso extremamente acelerado, eles ouviram o berro estridente do alarme da prisão, alertando sua fuga. Luzes vermelhas intensas e holofotes poderosos vasculhavam a noite em várias direções. Viram lanternas varrendo poderosamente a escuridão, e ouviram latidos de cães de caça furiosos que farejavam seu rastro. Escutaram vozes exaltadas e gritos de comando. E correram o máximo que puderam, escondendo-se da melhor maneira possível.
Finalmente alcançaram a borda do rio e não tiveram dúvidas: atiraram-se na água enquanto os fachos das lanternas se aproximavam perigosamente. Antes de mergulhar, ainda ouviram o som de rifles sendo engatilhados. Desapareceram nas águas impetuosas e escuras. Enquanto se deslocavam, buscando se afastar o máximo que conseguissem da superfície, viam os traços espumantes que as balas descreviam ao cortar a água e perder força, passando rente seus corpos imersos em fuga. A correnteza, embora ameaçasse afogá-los, auxiliou-os a escapar.
Quando saíram do rio, ensopados, correram mais algumas dezenas de metros e conseguiram embarcar no trem que passava por ali naquele exato momento, onde os trilhos faziam uma curva. Horas depois, ao saltar do trem, os cinco fugitivos prosseguiram em sua fuga e adentraram um bosque escuro e sombrio, onde as copas das árvores se entrelaçavam, em uma espécie de abraço assustador. Tudo estava acontecendo exatamente como o líder planejara. Logo chegaram a uma velha e enorme árvore, cujo tronco estava marcado com um grande X entalhado a canivete. O chefe do grupo, que se chamava Robson, sorriu. Seus outros capangas, do lado de fora das grades, cumpriram corretamente suas ordens. Atrás da árvore havia uma pá, que usaram para cavar junto à base do tronco.
Depois de algum tempo, acharam um saco de lixo preto, dentro qual havia roupas, sapatos, algum dinheiro, documentos e algumas armas. Livraram-se dos uniformes laranjas de reclusos, e vestiram roupas normais, jeans, camisetas e calçaram tênis. Cada um ficou com um revólver calibre 38, que municiou rapidamente. Feito isso, prosseguiram em sua fuga mata adentro. Tiveram sorte por ser noite de uma exuberante lua cheia, de modo que a luz prateada do satélite natural da Terra, filtrada pelos galhos e copas das árvores, projetava seu holofote pálido sobre os fugitivos, iluminando seu caminho, ainda que de maneira precária.
A zona rural à noite podia ser um lugar extremamente perigoso e intimidador, mesmo para aqueles cinco criminosos em fuga. Corujas piavam agourentamente aqui e ali. A sombra das árvores contra a lua era fantasmagórica. Grilos cricrilavam incessante e irritantemente, e sapos coaxavam de maneira repetitiva e monótona. Vez ou outra ouviam o bater das asas de algum morcego que passava voando pouco acima deles. Durval, que era o mais jovem dos criminosos, era o mais amedrontado também. Arregalava os olhos a todo momento, sobressaltado quando ouvia algum farfalhar suspeito na mata ou algum estalido nas proximidades. Acalmava-se relativamente ao perceber que era apenas um dos companheiros que havia pisado em algum galho seco. Com o coração martelando no peito, enxugou o suor da testa com as costas da mão e cutucou o chefe, que se virou para olhá-lo com mau humor.
- Que foi dessa vez, Durval?
- Robson, estou um pouco apreensivo. Ouço barulhos estranhos na mata, e tenho a impressão de ver olhos amarelos e malignos flutuando na escuridão. Sinto como se algo nos vigiasse.
- Deixe de ser frouxo, homem. Vou dizer pela terceira e última vez, preste atenção: É coisa da sua imaginação! Onde já se viu sujeito barbado ter medo de assombração?
- Meu pai foi criado numa roça como essa, chefe. Ele recontava para mim as histórias que ouviu de meu avô. Causos sobre coisas do além que pegam gente desavisada como nós, em noites sombrias como essa. Para mim, o diabo anda por essas bandas e nos espreita do meio da mata!
- Então o diabo anda pelo campo? Talvez ele esteja pensando em adquirir um pedacinho de chão, ué! – zombou Robson e, enquanto os outros riam, continuou – Durval, faça um favor a todos nós e feche o bico! Ah, e vê se não vai me borrar essas calças, porque senão vai ter que andar com elas sujas mesmo; não temos outra, e vamos demorar a trocar de roupa agora.
Enquanto os companheiros gargalhavam, Durval calou-se e fechou a cara, emburrado. Os homens ainda estavam rindo quando um som sinistro flutuou noite adentro, fazendo o riso morrer em seus lábios e seu sangue gelar de repente. Um uivo possante e aterrador era lançado em direção à lua cheia, vindo de algum lugar da mata cerrada. Aquele ruído estridente, prolongado e aterrador era capaz de despertar o medo no coração do homem mais corajoso, e poderia tirar o sono de qualquer um. Todos os outros bichos emudeceram, como se a própria natureza se encolhesse de pavor diante daquele chamado ferino, selvagem. Coisa de filme de terror americano. 
- Mas que diabo foi isso? – indagou Robson francamente intrigado, fitando seus companheiros trêmulos.
- Não pode ser um cão, chefe. – opinou Amós – Parece ser um bicho grande. Acho que nessa mata tem lobo.
- Eu não falei? Eu não falei? – sussurrava Durval aterrorizado, gesticulando nervosamente.
- É o troço mais esquisito que já ouvi na vida. – comentou Waldir espantado.
- Precisamos dar o fora dessa mata. – afirmou Joel – Encontrar um lugar seguro.
Todos concordaram. Sacando seus revólveres, os engatilharam e começaram a se mover mais rápido, olhando atentamente ao redor. Para alívio geral, avistaram ao longe as luzes de uma casa ilhada por lavouras. Demoraram cerca de vinte e cinco minutos para cobrir a distância que os separava da residência iluminada, onde, acreditavam, estariam seguros. Uma densa atmosfera de apreensão, de inquietude, os envolvia. Sentiam como se algo os perseguisse no escuro. Ouviam uma respiração animalesca e um rosnado feroz de algo que vinha em seu encalço. Uma presença rápida e maligna parecia caçá-los protegida pela mata escura. Toda vez que apontavam a arma para trás, era como se a presença obscura desaparecesse. A mata não se movia então, a não ser pela ação do vento.
Chegaram finalmente a casa e esmurraram a porta, pedindo ajuda. Estavam lívidos. A reforçada porta de madeira se abriu com um rangido e, assim que eles passaram, foi fechada rapidamente outra vez. Arrastaram uma pesada mobília para frente dela, bloqueando desse modo a entrada de qualquer intruso. Então os cinco recém-chegados, ofegantes, olharam a família moradora daquela rústica casa, iluminada por lamparinas e lampiões já que, aparentemente a luz elétrica não vinha até ali. Havia cinco pessoas na residência quando os fugitivos chegaram: uma mulher muito bonita e jovem com uma criança de colo, um rapaz que parecia ser o esposo da moça, um garotinho magrelo e pálido de uns onze anos e uma senhora doente, de cama. Eles naturalmente se encolheram ao ver as armas dos cinco homens, mas já aparentavam estar muito assustados quando os desconhecidos entraram pela porta.
- Somos foragidos da justiça, porém, não se preocupem: não vamos fazer mal a vocês – disse o líder guardando o revólver na cintura e sendo imitado por seus companheiros. – Meu nome é Robson, e quero agradecer por terem nos acolhido. Estamos sendo procurados pela polícia, e precisamos de um veículo para continuar nossa fuga. Apena isso.
- Temos só o velho caminhão que meu pai usa para levar e trazer as coisas da cidade. – disse a moça embalando o bebê, amedrontada.
- Ótimo – disse Robson – Vamos levar o caminhão de vocês, mas o abandonaremos na margem da estrada, alguns quilômetros a leste. Poderão recuperá-lo pela manhã. E ninguém vai tocar em vocês, eu garanto. – disse o líder lançando um significativo e duro olhar em direção a Waldir, que já fitava a moça com olhos brilhantes e cobiçosos. Waldir havia sido preso por inúmeras acusações de estupro. Ante o olhar severo do chefe, o criminoso se encolheu. Ele não desobedeceria Robson; respeitava sua autoridade e liderança. Afinal, foi Robson que tirou todos eles da prisão.
O garotinho, assustado, se escondeu atrás da moça, e o rapaz apreensivo, em atitude protetora, se interpusera entre os forasteiros e sua família. Diante disso, Joel soltou uma risadinha e exclamou:
- Se aquiete, meu jovem. O chefe disse que ninguém vai tocar vocês, e se ele falou, a água parou. Ele é um homem de palavra, e nenhum de nós aqui é doido para desafiá-lo.
Mesmo depois dessas palavras o rapaz permaneceu olhando-os com desconfiança. Ignorando esse fato, Robson dirigiu uma pergunta aos anfitriões:
- Sabem se nessa mata aqui ao redor mora algum bicho grande, como um lobo ou uma onça, algo assim? Alguma coisa estava nos perseguindo antes de chegarmos aqui.
Assim que o chefe do bando acabou de falar, os moradores da casa se entreolharam de modo assustado e significativo. Estavam prestes a abrir a boca para responder quando a velha senhora enferma, deitada na cama resmungou algo.
- O que foi que ela disse? – indagou Durval arregalando os olhos, duvidando de sua audição.
- Não se preocupem, ela está delirando. Deve ser a febre. – disse a moça timidamente, com olhos assustados, tentando desconversar.
- Não estou louca! – protestou a velha deitada, enquanto o garotinho corria a pousar um pano úmido em sua testa, e repetiu a frase que tinha resmungado antes – Essa é a noite da Besta!
- Noite da Besta, senhora? – repetiu Waldir, incrédulo.
- Isso mesmo, meu jovem! – prosseguiu a velha com uma voz esganiçada – Há tempos não me levanto dessa cama. Digam-me, meus filhos, em qual lua estamos?
- Hoje é noite de lua cheia. – respondeu Joel, começando a acreditar que a senhora enferma delirava de fato.
- Pois é. – disse a mulher acamada – Toda vez que a lua cheia se levanta no céu, a Besta caminha sobre a terra.

Continua...

Danilo Alex da Silva



“Brilhante é a lua alta no firmamento
Gelado é o ar frio como aço esta noite
Nós mudamos, chamado selvagem
Medo nos seus olhos, é mais tarde do que você achava."

(Of Wolf and Man – Metallica)

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