Obedecendo
ao capitão, os corsários se prepararam para arremessar os ganchos. Todavia,
algo realmente surpreendente ocorreu, adiando a abordagem por mais alguns
minutos. No último instante, o Pandora
guinou vivamente. Os marujos espanhóis demonstravam sua extrema habilidade ao
manobrar os mastros. O galeão, antes aparentemente vulnerável, rapidamente
girava sobre si, em um ângulo de 180 graus. Desse modo, em pouco tempo
apresentava seus quarenta canhões de estibordo, ou seja, do lado direito, ao
inimigo, prontos para disparar.
O
comandante do Pandora ordenara essa
manobra pois percebia que, se virasse o navio, podia disparar com as
peças de artilharia desse lado, enquanto as do outro estivessem sendo
rapidamente recarregadas. Economizaria
tempo e apanharia o adversário desprevenido. E tudo aconteceu de acordo com o
planejado. Percebendo que a artilharia inimiga os esfacelaria, os barcos
ingleses precisaram se separar para desviar-se às pressas da fuzilaria, abrindo
mão do assalto por mais algum tempo.
O
Ghost Bride e o Red Diamond foram capazes de escapar com agilidade do repentino
contra ataque hispânico; para o Lady
Storm, porém, aquilo foi o fim da batalha, o último prego no caixão. O
canhonear infernal vindo do galeão varreu a água numa linha de destruição que
apanhou em cheio o navio pirata inglês, o qual, navegando desfalcado pela perda
de alguns mastros, se achava bem no meio da chuva de projéteis.
Colhido pela tempestade de fogo, o barco
estremeceu violentamente com a selvageria do impacto, tal qual um animal
alvejado. A mastreação quebrou-se por inteiro e as velas murcharam, emboladas,
semelhantes às asas de um pássaro ferido. Então, com um longo rangido da
madeira, que parecia um lamento, dolorosamente o Lady Storm despediu-se da incrível batalha, afundando em seguida,
tão rapidamente quanto chumbo lançado ao oceano.
No
local onde a embarcação submergiu, restaram apenas barris, caixas e tábuas de
madeira boiando, aos quais estavam agarrados os náufragos. Um fato interessante
sobre os piratas é que, embora passassem boa parte da vida no mar, era
minoria os que sabiam nadar. Tinham verdadeiro pavor pela água e, não fosse
pelos destroços flutuantes do barco a lhes servir de bóia, pereceriam todos
afogados.
Enquanto
o Lady Storm era engolido pelo mar, e
o Bride e o Diamond tinham que se deslocar para os lados a fim de escapar da
perigosa sucessão de tiros, o Pandora
executava a segunda manobra idealizada por seu capitão, a de fuga. No meio da
confusão de vozes exaltadas e da gritaria dos náufragos, ingleses ou espanhóis,
o líder pirata Jason Hope começou a perceber que talvez tivesse subestimado
aqueles espanhóis.
Hope
sentiu que o vento mudava de direção subitamente, como se o próprio destino
houvesse resolvido ajudar os fugitivos. O inglês viu quando as velas do galeão
desdobraram-se com um farfalhar, o pano inchado pelo sopro vigoroso. Os
gigantescos mastros se moviam com energia, acompanhando o movimento do leme, e
fazendo com que o barco espanhol começasse a ganhar distância de seus
perseguidores.
Empunhando
o sabre com medonha firmeza, Hope sentiu-se tão furioso que teve ímpetos de
decapitar alguns de seus marujos. Berrou freneticamente, agitando de modo
ameaçador a lâmina no ar:
-
Maldição!!!! Atrás deles, seus cães! Que o Diabo me carregue se eu conseguir
arrumar uma tripulação mais incompetente! Bastardos! Inúteis! Tragam-nos para
perto do vento outra vez! Se aqueles porcos latinos conseguirem escapar, eu vou
comer o fígado de cada um de vocês, e exigirei que suas cabeças me sejam
servidas em um prato!
A
nada sutil repreensão do capitão irado pareceu surtir efeito sobre os piratas,
que trabalhavam com mais afinco ainda, para que alcançassem rapidamente o
galeão em fuga. Jason Hope continuava proferindo sua
série de maldições e xingamentos, usando palavras de baixo calão aprendidas de
vários idiomas, transformando sua revolta numa mistura obscena de expressões despudoradas
que escapavam de seus lábios crispados de ódio. Estava absolutamente furioso. Via
o Pandora afastar-se empurrado pelo
vento, ganhando velocidade e distância dos saqueadores marítimos. Isso
enfurecia Hope a tal ponto, que ele julgava estar à beira de um infarto, um
ataque de nervos.
Esbravejava
com seus marinheiros como se sua vida dependesse disso. Tinham de por as mãos
naquele fabuloso navio. Tinham de ser donos do tesouro que o galeão
transportava. Era uma questão de honra, principalmente agora que haviam perdido
o Lady Storm na batalha. O capitão
inglês nunca estivera tão determinado a caçar algum barco para pilhar antes.
Aqueles espanhóis causaram prejuízo. Estavam fazendo com que perdesse tempo,
bons homens e uma excelente embarcação. Cães! Precisavam pagar por isso. Não
permitiria que eles escapassem bem debaixo do seu nariz. Não tolerava que sua
vitória praticamente certa estivesse ruindo diante de seus olhos, assim como um
castelo feito com cartas se desfaz ao mínimo toque da brisa mais sutil.
O
Pandora, apesar de seu tamanho e peso
enormes, navegava à frente, de velas enfunadas, todos os marujos de sua
numerosa equipe de bordo trabalhando em conjunto, ritmicamente, para manter a
velocidade daquele gigante dos mares, o qual já obtinha uma boa distância dos
adversários ingleses. E logo atrás vinham os dois navios pirata. Quando
tudo parecia perdido para Hope, o vento variou sua direção mais uma vez. Usando
isso a seu favor, o capitão inglês agiu rápido, antes que a brisa, sua maior
aliada naquele momento, decidisse soprar em outro rumo novamente.
Atendendo
às ordens de seu exigente, porém experiente comandante, as tripulações do Ghost Bride e do Red Diamond fizeram com que os barcos navegassem lado a lado com
sua presa. Houve nova e estrondosa troca de tiros de canhão, possante o
suficiente para estremecer aqueles mares. Os piratas posicionaram-se junto às
amuradas de seus barcos e, tão logo o Pandora
entrou mais uma vez em seu alcance, lançaram os arpéus com precisão, sem
hesitar.
Manuseados
pelas mãos experientes dos corsários, os ganchos de ferro cravaram-se
firmemente na amurada do galeão espanhol. Em seguida, sem demora os piratas
começaram a puxar. Flanqueando o galeão, os navios pirata foram aproximados
pelo puxar vigoroso das cordas, até que se chocassem com estrondo. O Pandora, preso pelos ganchos de
abordagem do inimigo, tinha à sua direita, colado ao seu casco, o brigue pirata
Ghost Bride, e à esquerda, a escuna
corsária Red Diamond. Quando a
situação chegava àquele ponto, não havia volta. Não havia salvação para o
galeão hispânico, tampouco para seus tripulantes.
-
Atacar! – rugiu Jason Hope com o que lhe restava de energia na voz, após gritar
durante vários minutos até o momento de êxito ao lançar os arpéus.
Como uma matilha de cães treinados, os piratas deram início ao assalto. Tendo em vista que o Pandora era um navio de três andares,
obviamente seu tamanho era superior ao das embarcações que o atacavam. Logo,
sua estrutura erguia-se imponentemente acima dos tombadilhos do opositor. Desse
modo, para que alcançassem o convés do barco a ser pilhado, os corsários
precisavam utilizar as cordas dos ganchos para escalar até a amurada do outro
navio.
Gritando
como loucos, produziam uma algazarra infernal que tinha como objetivo principal
intimidar o inimigo. Rugiam diabolicamente como os velhos lobos do mar que
eram. Emitiam seu grito pavoroso de guerra. Com facas presas entre os dentes, içando
o peso do corpo por meio de seus braços musculosos devido o árduo trabalho de
bordo, os piratas subiam com agilidade pelas cordas, semelhantes a aranhas
velozes e repugnantes. Sombreados pelas velas dos navios, emergindo da fumaça
negra da pólvora dos tiros de canhão, os sapatos apoiados com firmeza e prática
no escorregadio costado de madeira, eles logo surgiam no convés do barco atacado
e se arremessavam ao combate.
Durante
a subida, muitos eram precipitados ao mar porque lá no alto, apoiando-se na
amurada do Pandora, os espanhóis
atiravam para baixo, disparando seus mosquetes e pistolas contra os invasores. O
problema é que, na ponta de uma corda de onde despencava um corsário, logo em
seguida surgiam mais três escalando. Isso acontecia nas duas laterais do navio.
Os defensores do barco tinham a desvantagem de o processo para recarregar suas
armas ser extremamente demorado. Tinham
de despejar e socar a pólvora nos canos dos mosquetes, depois inserir a bala, e tornar a
usar a bucha. Perdiam muito tempo com isso. Tempo suficiente para que os
bandidos subissem a bordo e sacassem suas espadas, levando o combate para o
corpo a corpo.
Dentro em pouco, os hispânicos tiveram que se
afastar da amurada para se concentrar em esgrimir suas espadas contra os
invasores no convés. Então, os piratas de ambos os navios logo estavam a bordo
do impressionante navio espanhol. E a luta se desenvolvia com uma ferocidade
assustadora.
Urros de ódio e de dor de ingleses e espanhóis
se misturavam, bem como as imprecações proferidas de ambos os lados. O retinir
metálico das espadas se encontrando violentamente. O som inesquecível e
nauseante do aço dilacerando a carne e destruindo ossos. Sangue e suor lavando
o convés, tornando-o escorregadio. Corpos forrando o solo em qualquer direção
que se dirigisse a vista. O cheiro pútrido da morte empesteando o ar, mesclado
ao odor fétido da pólvora e o perfume embriagante da maresia. A luta, que a
princípio estivera equilibrada, agora pendia contra os espanhóis que, embora
lutassem bravamente, estavam sendo gradativamente derrotados, caindo mortos aos
pés de seus inimigos ingleses, a bravura hispânica sucumbindo à selvageria
pirata inglesa.
Tal
triste fato se dava porque, diferentemente das duas tripulações de corsários,
que inteiramente eram treinadas tanto para manobrar os barcos, quanto para
pilhar e lutar, a equipe de bordo espanhola era dividida entre marujos e
soldados. Uns não executavam a função dos outros. Para isso precisavam de uma
esquadra de escolta, mas, como sabemos, não mais podiam contar com o apoio dos
barcos Dom Filipe e El Vigilante, afundados no combate. E isso os deixava em uma situação
terrivelmente complicada.
Em
certo momento, percebendo que os soldados não estavam conseguindo vencer o
inimigo, os marujos espanhóis tentaram pegar em armas para ajudar no combate,
mas não houve sucesso nem melhora. Sem a prática necessária para manusear as
espadas, foram, um a um, abatidos impiedosamente pelo bárbaro adversário. O
máximo que os soldados espanhóis conseguiram com a ajuda vinda dos marujos na
luta, foi atrasar o início do assalto alguns minutos, e cansar um pouco mais os
bandidos do mar. O rugido das lâminas encobria o clamor do mar se chocando
contra os cascos. O caos se instalara a bordo. Em desespero, temendo a morte
brutal iminente, muitos marujos e soldados espanhóis atiravam-se ao mar.
Caminhando
orgulhosamente pelo convés do Pandora,
onde os homens se atracavam de modo sangrento no duro combate pela posse do
galeão, Jason Hope parecia alguém invencível. Os gritos de dor e fúria, o cheiro
de morte e o clangor das espadas à sua volta aparentemente não o incomodavam.
Sua frieza era assustadora, sua face denotava indiferença quando usava seu sabre
para se defender com maestria de algum golpe ou esquivar-se rapidamente de
alguma lâmina que buscasse perfurá-lo. Em oposição aos golpes de seus piratas,
os movimentos de Hope eram firmes, velozes, precisos e infalíveis. Movia o
sabre três, no máximo quatro vezes quando os inimigos surgiam diante dele. Esquivar
ou defender, atacar e continuar andando, como se os espanhóis não merecessem
mais atenção do que aquela. Estocava um ponto vital e seguia em frente, sem se
importar com o ser humano que acabava de deixar morto no piso atrás de si.
Jason
Hope rumava direta e determinadamente rumo ao castelo de popa. Queria adentrar
o camarote do capitão, onde provavelmente havia uma parte dos tesouros que o
galeão transportava. Algo o puxava para lá, uma espécie de imã. Quando ia começar
a subir os degraus para o tombadilho, seus instintos de guerreiro o preveniram
a tempo. Girou para o lado e a folha metálica de uma espada silvou no ar,
descrevendo uma curva mortal onde se projetara o capitão segundos antes. Hope
voltou-se e apertou os olhos com dureza para fitar que ousara atacá-lo pelas
costas.
Um
homem de tez morena e cabelos negros, elegantemente vestido, trajando roupas
vistosas, chapéu emplumado e empunhando um florete espanhol, parado a menos de
um metro e meio de Hope, o mirava com desprezo e intensidade.
-
Eu sou o almirante Guilhermo Antunes. – falou o homem em um inglês correto –
Sou o capitão deste navio e não permitirei que ele seja saqueado por um verme
britânico como você. Para entrar naquele camarote, vai ter que passar sobre meu
cadáver, pirata dos infernos!
Ao
concluir a frase cuspindo ameaçadoramente as palavras, o espanhol tinha o cenho
franzido e apontava o florete em riste para Hope. O inglês o fitou de alto a
baixo com um olhar recheado de desdém. A seguir, brandindo seu sabre, rosnou
ironicamente:
-
Que assim seja.
Os
capitães atiraram-se avidamente ao duelo, enquanto a carnificina acontecia ao
seu redor. Aquela era uma luta fascinante, digna de ser assistida. Antunes e
Hope esgrimiam com uma maestria espantosa, movimentos rápidos e certeiros. As
lâminas tilintavam em atrito, brilhando ao sol daquela manhã mortífera. O jogo
de pés, tão essencial aos esgrimistas quanto aos pugilistas de hoje, era
atrapalhado pelo convés, que se tornara escorregadio devido ao sangue que o
encharcava. Os dois moviam-se cautelosamente, tomando cuidado onde pisavam, mas
sem tirar os olhos um do outro. Algumas vezes, quando suas espadas cruzavam-se,
seus rostos contraídos ficavam tão próximos que os duelistas podiam sentir o
hálito um do outro.
Sempre
atacando e defendendo, foram de um lado a outro, no meio da confusão da
batalha. As lâminas tentavam alcançar os corpos do adversário; todavia, eram
desviadas ou defendidas com destreza, tanto por um, quanto pelo outro. Passaram
pelo mastro e então Hope começou a bolar um plano. Antunes era um bom soldado,
um espadachim hábil. Seria difícil vencê-lo daquele modo, pois sua prática com
o florete se igualava à de Hope ao manusear o sabre. Começou então a desferir
golpes velozes e poderosos, obrigado Antunes a se defender recuando para perto
da amurada.
Quando
o espanhol estava no ponto onde Hope desejava, o inglês agarrou pela gola o
primeiro marujo que passou perto de si e o arremessou contra o inimigo. Surpreendido
pelo gesto, Antunes teve que se desviar e, por isso abriu a guarda momentaneamente.
Não foi muito tempo, mas bastou para que Hope traiçoeiramente enterrasse o
sabre em seu peito, errando por pouco o coração, mas ainda assim, ferindo-o
mortalmente.
Com
sua espada cravada na carne do inimigo, Jason Hope foi empurrando o espanhol
até que o corpo do mesmo se chocasse contra a amurada. Largando o florete, e
expelindo uma golfada de sangue pela boca, Antunes olhou para o pirata cheio de
desprezo, surpresa e revolta.
-
Maldito espanhol! – bradou Hope com um misto de sarcasmo e desdém – Por sua
causa, suei a camisa!
Agonizante,
Guilhermo esboçou um sorriso sangrento, que se transformou numa careta de dor a seguir, quando ele tossiu mais sangue. Mesmo assim, arfante, conseguiu
dizer:
-
Sua hora... vai chegar... seu verme
pirata! Sua morte... será muito pior... que a minha... e El Dragón... chorará
sobre seu corpo... não como seu comandante... mas como seu amigo...
-
Já basta, espanhol. – rosnou Hope e sorriu com ironia – Fala demais para um cão
que está morrendo. Dobre a língua ao falar de meu comandante. E, a propósito, o
nome dele é Francis Drake.
E,
tendo dito isso, Hope arrancou sua espada do corpo do inimigo, ao mesmo tempo em
que, apoiando o pé direito no centro de seu peito, empurrava o
capitão espanhol moribundo sobre a amurada. Sem um pio, o homem girou e foi
projetado ao mar. Se não morreu com a imensa queda, provavelmente se afogou em
seguida, mais em seu sangue do que propriamente na água do oceano.
Friamente
Jason Hope limpou o sangue de seu sabre na camisa do morto caído mais próximo,
para que o líquido vital rubro não enferrujasse sua lâmina. Guardou a espada na
bainha e correu para o camarote do capitão. Teve que arrombar a pesada porta
depois de atirar com sua pistola na maçaneta de bronze. A porta se abriu com um
estrondo. O som feroz da batalha, agora quase finalizada, chegava aos ouvidos
do capitão pirata inglês.
Ao
entrar na cabine, o homem viu diversas caixas e baús contendo preciosidades.
Entretanto, o que seduziu sua atenção da mesma forma que moscas são atraídas
para a luz, foi uma pesada arca, misteriosa e imensa, decorada com jóias e
desenhos antigos, colocada a um canto, próximo à cama do falecido capitão
Antunes. Jason Hope ainda não sabia, mas assim que pousou os olhos naquela
estranha arca, havia acabado de selar seu destino.
Continua...
Danilo Alex da Silva
“A
morte e ela, a morte em vida,
Jogaram
os dados para a tripulação
Ela
ganhou o marinheiro
E
ele pertence a ela agora.
Então...
a tripulação, um a um,
Caíram
mortos, duzentos homens
Ela...
ela, morte em vida
Ela
o deixou viver, o seu Escolhido”
(Rime of the Ancient Mariner – Iron Maiden)